Crise de Beagle, entre Chile e Argentina, completa 30 anos
Disputa por ilhas do Pacífico levou países vizinhos a quase entrar em guerra, que só foi evitada por uma intervenção do papa João Paulo II
Ariel Palacios, BUENOS AIRES
Há exatamente 30 anos, pouco antes da meia-noite, a América do Sul estava à beira de ingressar no maior confronto bélico da região no século 20, o conflito do Canal de Beagle. Ao longo da Cordilheira dos Andes, tropas argentinas começavam a avançar em direção à fronteira com o Chile. Os chilenos preparavam-se para resistir e retaliar. O conflito prometia espalhar-se para o resto da região, envolvendo a Bolívia e o Peru, aliados informais da Argentina. Mas, no último minuto, quando - segundo fontes militares - diversas patrulhas de vanguarda da Argentina já haviam entrado em território chileno, chegou a inesperada ordem de Buenos Aires: "Abortar a invasão!"
Veja especial sobre o conflito
Por trás da súbita paralisação das tropas argentinas, estava o papa João Paulo II que, eleito havia apenas dois meses, enviou um dos mais hábeis cardeais, Antonio Samoré - chamado de "Kissinger do Vaticano" - a Buenos Aires e Santiago para evitar a guerra.
Hoje, 30 anos depois, nada resta do conflito. As ilhas ficaram para o Chile, mas a Argentina teve o controle da área marítima. Os dois países realizam exercícios militares conjuntos. A integração comercial bate recordes. A presidente Michelle Bachelet, do Chile, e a argentina, Cristina Kirchner, assistirão hoje a missas em seus respectivos países pelos 30 anos da bem-sucedida intervenção papal.
DISCÓRDIA
Os pivôs do conflito eram Picton, Lennox e Nueva, três ilhas situadas na entrada do Canal de Beagle. Ambos países reivindicavam sua posse desde que o acordo de fronteiras de 1881 havia "esquecido" de definir sua soberania. A tensão ficou latente, tornando-se evidente apenas em 1977, quando um laudo da coroa britânica foi favorável ao Chile. A Argentina considerou o laudo nulo.
A posse das ilhas levaria as fronteiras chilenas até o Atlântico, mas Buenos Aires estava disposta a fazer prevalecer a regra "a Argentina no Atlântico e o Chile no Pacífico". Além disso, também pesava a possibilidade de que a região tivesse gás e petróleo, o aumento da projeção do proprietário das ilhas sobre a Antártida e uma maior área pesqueira.
Dentro da junta militar argentina, o general Jorge Videla, ditador que governou o país de 1976 a 1981, preferia evitar o conflito, mas outros integrantes do Exército e da Marinha pressionavam pelo conflito.
A estimativa era de até 50 mil baixas nas três primeiras semanas. O cenário englobava o Equador, que por disputas com o Peru, entraria na guerra do lado do Chile. A eventual posição brasileira no conflito preocupava os argentinos, que tentaram desativar a tensão com Brasília por causa da construção de Itaipu. Na dúvida, o general Leopoldo Galtieri ficou de prontidão com o Segundo Corpo do Exército, para repelir um eventual ataque brasileiro.
O atual vice-presidente argentino, Julio Cobos, é de Mendoza, província que estava na linha de fogo em 1978. Na época, com 23 anos, era tenente da reserva. "Fui enviado ao Paso Pehuenche, na Cordilheira dos Andes", declarou ao Estado. "Estive ali, pronto para defender a fronteira contra o Chile. Mas, paradoxos do destino, hoje, dentro do Mercosul, eu trabalho pela integração dos dois países."
"O Chile teria ganhado a guerra", afirmou em suas memórias o general argentino Martín Balza, que 15 anos depois transformou-se em chefe do Estado-Maior. O analista Rosendo Fraga, autor de Balanço Militar da América do Sul, indicou que o Peru e a Bolívia entrariam na guerra do lado argentino e ocupariam o norte do Chile.
"Brindaremos com champagne no Palácio de La Moneda (sede do governo do Chile) e depois limparemos nossas botas nas águas do Pacífico", afirmou confiante às suas tropas o general Luciano Benjamín Menéndez, encarregado da invasão. Seu braço direito, general Jorge Maradona, completou: "Após beber o champanhe, irei uriná-la no Pacífico."
"Operação Soberania" era o plano para a invasão do Chile. A idéia era cortar o país em várias partes, com uma violenta batalha naval no Cabo Horn. "Eu tinha 10 mil homens só para a missão de conquistar Baía Blanca (o mais importante porto argentino)", admitiu o general Augusto Pinochet, ditador que governou o Chile de 1973 a 1990. Os chilenos pretendiam atacar a usina nuclear de Atucha, mas, de manhã, o Vaticano havia detido a guerra.
Quando Videla soube, respirou aliviado. Militares argentinos já tinham atravessado a fronteira e estavam três quilômetros dentro de território chileno quando receberam ordem de voltar. "Foi por puro acaso que não houve choques", disse um general chileno.
Estadão - 22 de dezembro de 2008
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