sábado, 29 de maio de 2010

Viver no Afeganistão é ruim, mas para as mulheres é ainda pior

Revista Veja - 19 de maio de 2010

Afeganistão - Um inferno para as mulheres

Nascer no Afeganistão não é um bom começo de vida para ninguém. No país que é um dos cinco mais pobres do mundo e o segundo mais corrupto, 70% da população sofre de desnutrição e a expectativa de vida é a mesma de um adulto na Inglaterra da Idade Média: 43 anos. As arcaicidades de origem tribal, acrescidas de três décadas de guerra, deixaram o Afeganistão num tal estado de atraso que Cabul, a capital, só recentemente recebeu seu primeiro semáforo – que poucos viram funcionando, já que ele está quebrado dia sim e o outro também. Na tentativa de controlar o trânsito, policiais gesticulam inutilmente em meio às vias sem faixas, por onde carros velhos trazidos do Japão ziguezagueiam entre mendigos, mutilados e crianças, que vendem de frutas a galinhas.

Thaís Oyama, de Cabul
Fotos de Adam Dean, para VEJA


VIDAS ROUBADAS
Afegãs rezam diante de um túmulo em cemitério de Cabul: sete em cada dez ainda usam burca e mais da metade se casa com homens escolhidos pela família antes dos 16 anos de idade

No caminho do aeroporto para o centro da cidade, as barreiras de soldados armados com anacrônicos fuzis Kalashnikov e os muros de concreto erguidos diante das embaixadas lembram a todo instante que a desgraça está à espreita. Só nos dois primeiros meses do ano, a capital do Afeganistão foi alvo de duas séries de atentados cometidos por homens-bomba, nas quais 21 pessoas morreram. O país foi apontado, no último relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), como o lugar mais perigoso do mundo para gerar uma criança. Mas pior do que vir à luz é nascer mulher no Afeganistão.

Nove anos depois da queda do regime do Talibã, as afegãs continuam pagando a parte mais pesada da conta do fundamentalismo religioso. Nas ruas, a maioria ainda usa a burca, a roupa que cobre o corpo feminino dos pés à cabeça e que era uniforme compulsório no tempo da milícia talibã. Embora as escolas para mulheres não sejam mais proibidas, as estudantes representam uma porcentagem ínfima da população feminina e mais da metade das afegãs ainda se casa antes dos 16 anos de idade – salvo raríssimas exceções, com homens escolhidos por sua família. Sob o totalitarismo medieval do Talibã, as que saíam às ruas desacompanhadas do marido ou de um parente do sexo masculino eram castigadas a chibatadas. Hoje, a proibição não existe mais, mas as afegãs continuam ausentes da paisagem. Para elas, qualquer lugar onde haja aglomeração masculina é considerado impróprio, o que inclui mercados, feiras, cinemas e parques. A segregação sexista faz com que até nos saguões dos aeroportos e nas festas de casamento exista um "setor feminino" – só no primeiro caso não formalmente delimitado. Nas bodas em que as mulheres comparecem maquiadas e com belos vestidos, quase sempre há dois salões – um para eles e outro para elas. Poucas se arriscam a desafiar as proibições sociais. A aplicação de castigos físicos a mulheres de "mau comportamento" continua a ser vista como um dever e um direito da família. Uma pesquisa feita em 2008 com 4 700 afegãs mostrou que 87% já tinham sido vítimas de espancamentos ou abusos sexuais e psicológicos – em 82% dos casos, infligidos por parentes. O Afeganistão livrou-se do jugo do Talibã, mas não conseguiu varrer o obscurantismo religioso que ele ajudou a disseminar. A interpretação radical e misógina dos princípios do Islã é a principal causa da tragédia das mulheres afegãs.

A prática da autoimolação é um dos sinais mais cruéis de sua magnitude. Entre 2008 e 2009, ao menos oitenta afegãs tentaram o suicídio ateando fogo ao corpo. Na província de Herat, a oeste de Cabul, a incidência desse tipo de episódio é tão alta que o principal hospital da região montou uma unidade para atender exclusivamente a casos assim. Quando a reportagem de VEJA visitou o lugar, havia três mulheres internadas por queimaduras autoinfligidas. Todas tinham menos de 26 anos e eram analfabetas. No Afeganistão, apenas 15% das mulheres com mais de 15 anos sabem ler e escrever. Rahime, de 25 anos, deu entrada no hospital com 35% do corpo queimado. Ela disse que tentou se imolar porque "estava cansada de viver". Contou que se casou aos 10 anos de idade e, desde então, engravidou seis vezes (sofreu três abortos espontâneos). A mãe estava com ela no hospital. Indagada sobre as razões que a fizeram permitir que a filha se casasse tão cedo, explicou que, na verdade, não a deu em casamento, mas foi obrigada a vendê-la. O marido era lavrador em uma plantação de ópio e não conseguia sustentar a família, de oito filhos. "Ficávamos três ou quatro noites sem ter o que comer", afirmou ela. Rahime foi entregue a um comerciante da região em troca de 200 000 afeganes, o equivalente a 4 300 dólares, divididos em dez pagamentos. O comerciante, hoje seu marido, é "bem mais velho" do que ela, mas nem a jovem nem a mãe souberam precisar quanto.


"CANSADA DE VIVER"
Rahime, de 25 anos, ateou fogo ao corpo jogando querosene sobre a cabeça.
Ela foi dada em casamento aos 10 anos de idade

Para atear fogo em si próprias, as mulheres costumam recorrer a óleo de cozinha ou ao querosene usado para acender lampiões. Apenas 6% das casas na zona rural do país têm eletricidade. O óleo provoca queimaduras mais graves do que o querosene, porque gruda na pele, o que faz com que o calor permaneça por mais tempo em contato com o corpo. Tanto o óleo quanto o querosene superam a água fervente, já que a fumaça que produzem pode causar, além de intoxicação, queimaduras internas. A maior parte das mulheres que tentam imolar-se não morre na hora, mas depois de alguns dias, vítima de falência de múltiplos órgãos resultante da perda de água. Rahime tinha o rosto e o corpo enfaixados. Ela verteu querosene sobre a cabeça, e não sobre o peito, como ocorre com mais frequência. Enquanto falava, uma policial se aproximou da sua cama para interrogá-la sobre os motivos da tentativa de suicídio. A investigadora Zulaikha Qambari trabalha há três anos no Departamento para Solução de Conflitos Familiares da Delegacia de Herat. Rahime disse a ela que decidiu atear fogo ao corpo porque a sogra passou a maltratá-la desde que o seu marido foi trabalhar no Irã. As duas mulheres deitadas ao lado da jovem também culparam alguém da família pelo ato extremo: uma diz que decidiu se matar depois de apanhar do padrasto do marido e outra afirmou que tomou a decisão por causa de uma briga com a cunhada em torno de um cosmético que havia ganho de presente. A policial Zulaikha afirmou estar habituada a ouvir justificativas como essas. "Algumas mulheres demoram para contar a história inteira, que muitas vezes inclui estupros e espancamentos sistemáticos. Outras nem são capazes de explicar por que fizeram aquilo. Apenas dizem que não querem mais viver." Quando a reportagem se preparava para deixar o hospital, deparou com a chegada de uma quarta vítima. Ruquia, de 15 anos, proveniente da província vizinha de Badghis. Ela apresentava 45% do corpo queimado. A mãe disse aos médicos que a filha havia se acidentado fazendo chá. "Mentira", sussurrou o enfermeiro. "Sinta o cheiro de querosene que exala do corpo dela." A menina estava casada havia um ano.

A quantidade de mulheres que tentam imolar-se no Afeganistão atingiu o auge em 2004, quando só o hospital de Herat recebeu 350. Desde então, o número de vítimas tem-se mantido estável – e surpreendentemente mais alto do que o registrado no tempo em que o Talibã mandava no país. "Naquele período, quase não recebíamos casos como esses", afirma o diretor da unidade de queimados, Hamayoon Azizi, que há doze anos trabalha no hospital. Isso não quer dizer que as mulheres tinham menos motivos para sofrer no passado. Durante os cinco anos em que esteve no poder, o Talibã proibiu-as de trabalhar e de estudar. Instituiu a pena de apedrejamento para adúlteras e baniu qualquer tipo de entretenimento, incluindo cinema, televisão e até a brincadeira de empinar pipas, tradicional no país. A música também foi vetada, e quem fosse achado com uma fita cassete no carro era preso. Para o médico Azizi, o aumento no número de casos de autoimolação em relação àquele período é fruto do contato que muitas afegãs tiveram com o Irã, onde a prática está disseminada há mais tempo. O Irã faz fronteira com a província de Herat e, com o Paquistão, foi escolhido como refúgio por milhões de afegãos que deixaram o seu país no fim dos anos 90. Com a queda do Talibã, esses refugiados começaram a retornar ao Afeganistão – trazendo, na hipótese do médico, o "know-how" da autoimolação.

A engenheira civil Sabzina Hasanzada foi uma das muitas mulheres que abandonaram o Afeganistão para fugir do Talibã. Ela ficou viúva aos 31 anos e perdeu seu único irmão na guerra civil que antecedeu a vitória da milícia. Sem um homem para acompanhá-la na rua, como exigiam os radicais, ela tinha dificuldades até mesmo para abastecer a despensa da casa em que morava com as duas filhas. Resolveu mudar-se para o Paquistão e só voltou quando o regime caiu, em 2001. Hoje, está de volta ao seu trabalho no Ministério da Energia, onde ganha o equivalente a 400 dólares por mês. Mora na área antiga de Cabul, próxima ao mercado principal, aonde só vai de burca, embora deteste a roupa. "Evita que os vizinhos façam fofocas e que os homens cheguem perto", disse a VEJA. No mercado, a frequência é predominantemente masculina. É costume no país os homens fazerem as compras domésticas, orientados pelas mulheres, cujo lugar, supõem, é dentro de casa. Além disso, fica nesse mercado a maior feira de pássaros da capital, e criá-los para rinhas é um dos passatempos masculinos. Na verdade, qualquer briga é um passatempo para os afegãos. Há lutas organizadas de faisões, cães e camelos. Até as pipas brigam pela supremacia no céu, o que é compreensível num país que se vangloria da valentia de seus guerreiros e se orgulha de exibir na sua história a expulsão de duas potências invasoras, a britânica e a russa.

Sabzina, que se formou na Universidade de Cabul, faz questão de que as filhas, Frieshta, de 15 anos, e Silsila, de 12, frequentem a escola. Embora no ano passado 102 colégios para meninas do país tenham sido alvo de ataques atribuídos a membros do Talibã contrários à educação para mulheres, as escolas da capital eram consideradas seguras. Isso mudou no último dia 27, quando 22 meninas e três professoras foram hospitalizadas depois de ter sido expostas a um gás não identificado e caído inconscientes na sala de aula. Segundo a polícia, o ataque seguiu o padrão de três outros atribuídos ao Talibã, ocorridos pouco antes na província de Kunduz, no extremo norte do país. Os episódios reforçaram a sensação de que nuvens escuras continuam a pairar sobre o Afeganistão – mais precisamente, sobre a cabeça das mulheres do Afeganistão. Outros indícios recentes foram a aprovação de uma lei que obriga a esposa xiita a fazer sexo com seu marido sempre que ele exigir, sob pena de ser privada de sustento por ele, e a série de ataques a mulheres parlamentares. A ex-deputada Malalai Joya teve o mandato cassado ao defender
a secularização do estado afegão e Fawzia Koofi sofreu um atentado a tiros, em março, depois de ter recebido seguidas ameaças de morte por criticar a aprovação do chamado "estupro marital" para a minoria xiita.

Analistas da situação política afegã acreditam que a "talibanização" do país é fruto principalmente da aliança firmada pelo presidente Hamid Karzai com lideranças de partidos religiosos fundamentalistas nas eleições do ano passado – um apoio que ele agora precisa retribuir. O governo Karzai é fraco e corrupto. No ranking da Transparência Internacional dos países mais honestos do mundo, o Afeganistão era, até 2005, o 117º entre 180. Na última classificação, em 2009, caiu para o 179º posto. A corrupção lá chega a ser palpável. No bairro mais rico de Cabul, Sherpur, o conjunto de casas originalmente pertencentes aos "barões do ópio" (o Afeganistão produz 92% da substância usada no mundo para a fabricação de heroína) foi rebatizado de "Char-pur" – algo como "lugar de saqueadores". Isso porque, desde o início do governo Karzai, ele passou a abrigar também funcionários públicos cujo salário, estima-se, não seria suficiente para comprar nem um dos muitos lustres de cristal que pendem das varandas das casas – repletas de vidros verdes espelhados e outros itens de decoração compatíveis com a fineza atribuída aos seus moradores. Um dos poucos sinais de que os rumos do Afeganistão podem mudar um dia é um ainda incipiente, porém crescente, interesse dos jovens pela política, motivado em parte por uma campanha lançada por organizações não governamentais em 2009. A corredora Robina Jalali está entre esses jovens. Aos 25 anos, ela foi a primeira atleta afegã a participar de uma Olimpíada. De família rica (o pai, informou seu irmão, trabalha com exportação), ela ouve Shakira e Jennifer Lopez, veste roupas compradas em Dubai e conhece mais de vinte países. Cursa ciências políticas na Universidade de Karwan e já está em campanha para concorrer a uma vaga no Parlamento. "Quero que o Afeganistão se orgulhe de mim, mas também quero me orgulhar dele", diz.


CORRIDA CONTRA O ATRASO
A corredora Robina Jalali foi a primeira atleta afegã a participar de uma Olimpíada.
Ela se maquia, veste roupas compradas em Dubai e agora planeja concorrer a uma vaga no Parlamento. Diz que quer um dia sentir orgulho do seu país, o segundo mais corrupto do mundo e o mais perigoso para uma criança nascer, segundo o Unicef. Ao lado, menina diante da casa dos pais, no centro de Cabul

O presidente Hamid Karzai, segundo relatório do Pentágono divulgado no mês passado, conta com o apoio de apenas 29 das 121 áreas do país consideradas estratégicas para o seu governo – muitas delas sob comando de líderes tribais. As demais, conforme o relatório, ou não têm posição firmada ou apoiam os insurgentes do Talibã. Esse é um dos motivos pelos quais, em visita aos Estados Unidos na semana passada, Karzai reafirmou que, por ele, a "reconciliação nacional" do Afeganistão tem de passar por uma negociação com os chefões do Talibã. Os mesmos que foram apeados do poder em setembro de 2001 por sua cumplicidade com os terroristas da Al Qaeda. Trata-se de um pacto com o demônio. Caso ele vingue, mulheres como Robina, Rahime, Sabzina e suas filhas continuarão a arcar com uma conta não só pesada demais, como a perder de vista.


REDUTO FEMININO
Os shoppings estão entre os poucos lugares que as afegãs podem frequentar. Nos demais, onde há aglomeração masculina, existem restrições. Até em saguões de aeroportos e festas de casamento elas têm de ficar em setores separados dos destinados aos homens

A CAPITAL
Rodeada por montanhas, Cabul tem vias sem faixas, poucas calçadas e menos mulheres ainda nas ruas

MANSÕES DO ÓPIO
As casas de Sherpur, onde vivem grandes traficantes e, agora, também funcionários do governo.
Ao lado, afegãos rezam no parque Qargha – como todo parque, "inapropriado" para mulheres.
Nos fins de semana, só homens são vistos divertindo-se na roda-gigante e nos pedalinhos

"MERCADO DO BUSH"
Assim os moradores de Cabul chamam a feira que vende produtos desviados da base militar americana de Bagram. À esquerda,, vendedor exibe suas aves no mercado de pássaros da capital

Um celeiro de homens-bomba

O PAQUISTANÊS Muhibullah, preso em Pul-e-Charkhi (à esq.) por planejar explodir-se num atentado

Se houvesse um ranking das penitenciárias mais explosivas do mundo, Pul-e-Charkhi estaria no topo. Entre os seus 4 622 detentos, estão 72 homens-bomba – afegãos e paquistaneses –, condenados em pelo menos uma instância judicial por planejar ou tentar cometer um atentado suicida. A prisão de Pul-e-Char-khi fica num descampado poeirento na periferia leste de Cabul. Ganhou notoriedade por ter sido palco da execução de milhares de prisioneiros políticos no tempo em que o Afeganistão esteve sob o regime comunista (1979-1989) e por abrigar, até dois anos atrás, quase setenta crianças e bebês. No Afeganistão, as presas podem manter os filhos pequenos junto a si. Até 2008, as crianças de Pul-e-Charkhi, além de ter de cumprir pena com as mães, eram obrigadas a conviver com milhares de homens condenados. A situação só mudou depois que o governo afegão criou a primeira penitenciária feminina de Cabul.

VEJA entrevistou seis presos de Pul-e-Charkhi acusados de planejar ou tentar levar a cabo um ataque suicida em território afegão. Diante da reportagem, todos alegaram inocência – mesmo os já condenados em segunda instância pelo crime, como o paquistanês Muhibullah, de 22 anos, ex-estudante de um madraçal em Peshawar, e os que foram pegos com a boca na botija, como o afegão Malin, 26 anos, pintor de paredes em Cabul, com quem a polícia encontrou um colete recheado de explosivos. O único a ser apresentado algemado à reportagem foi o afegão Abdul Jalil, preso há um ano e meio, depois de tentar explodir-se em Nangrahar, província na fronteira com o Paquistão. Jalil não se deixou fotografar nem quis relatar sua versão para a prisão. No entanto, a um carcereiro que lhe perguntou o que faria se fosse solto, respondeu imediatamente: "Morreria em nome de Alá".

Como é vestir uma burca


O MUNDO ATRÁS DA TELA
O visor da burca impede a visão lateral e torna difícil enxergar os pés

A primeira constatação é que ela permite enxergar melhor do que se imagina. À luz do dia, os olhos aprendem rapidamente a ignorar a interferência da trama quadriculada que serve de visor da roupa. Ao menos quando se olha para a frente, dá para ver tudo com clareza. Já a visão lateral desaparece de dentro de uma burca. Olhar para os lados requer virar completamente a cabeça, e o primeiro tropeção ensina que enxergar os pés – assim como os muitos buracos que surgem diante deles nas ruas sem calçada e sem asfalto de Cabul – é outra tarefa complicada para uma mulher nessa situação. É por isso que quase todas caminham com uma das mãos sobre o peito, pressionando o tecido contra o corpo. Só assim conseguem ver um pouco melhor onde pisam. A sensação ao usar a roupa é a de estar dentro de uma barraca de camping, de onde se pode espreitar o mundo sem ser visto, já que ninguém presta atenção numa mulher de burca – você é só mais um ponto azul movimentando-se na paisagem.

Até vinte anos atrás, as burcas eram feitas de algodão e plissadas a mão. Hoje, são de poliéster e fabricadas na China. Custam o equivalente a 20 dólares e, ao contrário das antigas, não amassam, não desbotam e não perdem as pregas jamais. Mas são abafadas como o inferno – e causam dor de cabeça, resultado da pressão do elástico interno que prende a peça em torno do crânio. Em compensação, as burcas protegem contra as moscas que sobrevoam os muitos esgotos a céu aberto de Cabul. Embora só as mãos fiquem visíveis, quem quiser perscrutar quem está sob uma burca pode começar prestando atenção na cor do tecido. Quanto mais claro o tom de azul (sempre azul, já que a ideia é não ser original), mais jovem é a mulher que está debaixo dela.

Conforme o dia escurece, a visão vai piorando. A quantidade de tropeções aumenta e a sensação de claustrofobia começa a dar comichão nas mãos. Puxo finalmente o véu e descubro o rosto. Burcas podem proteger contra a poeira, a gripe A e o "bad hair day", mas tirá-las – e sentir a lufada de ar fresco que adentra os pulmões – é a melhor parte da experiência de vesti-las.

O Jackie Chan afegão

SOCOS E LÁGRIMAS
Cartaz do filme O Fim, 103º produzido pelo ator e diretor Salim Shaheen (à esq.):
tragédias do Afeganistão para quem está longe dele

Roteirista, produtor, diretor e ator autodidata, Salim Shaheen acaba de terminar seu 103º longa-metragem. Como todos os anteriores, Farjam (O Fim) não custou mais do que 30 000 dólares e demorou menos de cinco meses para ficar pronto. Tem socos e pontapés em abundância – Shaheen é fã do diretor e ator chinês Jackie Chan, de quem empresta os golpes de kung fu e um certo humor, às vezes involuntário – e lágrimas suficientes para encher o Rio Helmand, o maior do Afeganistão. Só nos primeiros cinco minutos da fita, três parentes do personagem principal vão ao encontro de Alá: a irmãzinha, vítima da pobreza da família, que não pôde comprar-lhe remédios; o pai, atropelado quando tentava buscar socorro para a menina; e a mãe, fulminada por um ataque cardíaco ao receber a notícia do atropelamento do marido.

Ao falar dos sofrimentos impostos pela pobreza – e também das tragédias de amor decorrentes de casamentos forçados, das histórias de devoção filial, sacrifícios maternos e honra familiar –, Shaheen leva um pouco do Afeganistão para os que estão saudosos dele. Ao longo de trinta anos de guerras, estima-se que quase um terço da população tenha abandonado o país. Só no Paquistão e no Irã vivem até hoje 3 milhões de afegãos desterrados. Eles estão espalhados também pela Índia, Alemanha e Canadá e são o principal público dos DVDs de Shaheen, cujas personagens femininas quase sempre aparecem sem véu. As ousadias do cineasta já fizeram com que diversas de suas atrizes fossem agredidas na rua. Suspeita-se que uma delas, Mursal Negah, de 22 anos, tenha tido sorte pior. Recentemente, ela surgiu em uma fita de Shaheen dançando numa roda de homens com os cabelos descobertos. Pela cena, recebeu ameaças de parentes e decidiu mudar-se para o Canadá. Antes que isso ocorresse, no entanto, foi encontrada morta. Seus pais só comunicaram o fato ao diretor e aos amigos da atriz em março, um mês depois de ela ter sido enterrada, sem autópsia. Segundo a família, Mursal foi vítima de ataque cardíaco.

O livreiro de Cabul quer fazer as pazes


SHAH RAIS, que inspirou o best-seller da noruguesa Asne Seierstad, em sua livraria no centro de Cabul (à direita, a fachada que, como todas da capital afegã, implora por uma tinta)


Shah Muhammad Rais diz que cansou de brigar. Depois de seis anos percorrendo os tribunais noruegueses em busca de "reparação" pelos supostos danos decorrentes da publicação do best-seller O Livreiro de Cabul, inspirado nele e em sua família, Rais afirmou a VEJA que vai retirar o processo contra a autora, a jornalista norueguesa Asne Seierstad. "Ela já reconheceu o mal que fez", disse. Na obra, a jornalista descreve o livreiro, chamado na história de "Sultan", como um pai tirano e um marido insensível, que, entre outras coisas, fez a mulher chorar por vinte dias ao adotar uma segunda e adolescente esposa, para a qual reservava frutas e guloseimas negadas aos demais integrantes da família.

Para escrever o livro, Asne morou por três meses na casa de Rais – hoje, vazia. Ele agora vive no andar superior de sua livraria, no centro da capital afegã, com os dois filhos mais velhos. A primeira mulher mora no Canadá. A segunda, em Oslo. Rais chegou a declarar que foi obrigado a tirá-las do Afeganistão, juntamente com seis de seus oito filhos, porque trechos do livro de Asne poriam em risco a segurança delas e das crianças. Hoje, no entanto, admite que a família nunca recebeu nenhuma ameaça e que, no caso da primeira mulher, a mudança para o Canadá se deu "apenas por precaução". Quanto à segunda, que Rais nega ser a sua preferida, ele explica que o que ocorreu foi que ela, grávida de nove meses, o acompanhou numa viagem a Oslo para tratar do processo contra a jornalista e lá deu à luz o caçula do casal, que nasceu com graves problemas respiratórios. "Meu filho teria morrido se não fossem os médicos noruegueses", conta. Hoje, com 4 anos de idade, a criança ainda sofre de complicações respiratórias sérias que lhe valeram asilo humanitário e tratamento gratuito em Oslo. "A generosidade do povo norueguês é um dos motivos pelos quais quero acabar com esse processo", diz Rais. Há dois anos, ele esteve no Brasil. O que mais o impressionou na visita? A diversidade da população ("Negros, brancos, orientais, tudo misturado") e o restaurante Porcão. "Maravilhoso. Pretendo voltar lá um dia e levar a minha mulher. Quer dizer, as minhas mulheres."
19 de maio de 2010
Revista Veja

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Nossa melhor aposta

Artigo André Petry

A tecnologia é moralmente neutra - cura um câncer e explode a bomba -, mas
é a via mais segura para resolver muitos dos problemas atuais
Fotos Album/Latinstock e Divulgação


VELHA ANGÚSTIA
Frankenstein e Avatar, enredos que mostram a mesma ansiedade em relação à tecnologia



Filha de uma feminista e de um filósofo radicais, e já casada com um poeta revolucionário, Mary Shelley tinha apenas 19 anos quando mandou às favas a ambição dos pais e do marido de criar o "homem novo" e criou um "novo monstro": Frankenstein. Escrito sob o impacto da Revolução Industrial e publicado em 1818, seu livro mais famoso é interpretado como marco zero da demonização da tecnologia. Em Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, a autora compara a tecnologia a uma força autônoma, que pode resultar em aberração e monstruosidade e acabar voltando-se contra seu criador. Passados dois séculos, só cresceu a estridência da denúncia contra a força maligna das invenções de laboratório. Hoje, a tecnologia é o saco de pancada predileto da geração mais tecnológica da história da humanidade. Acusa-se a tecnologia de poluir as cidades, devastar rios e florestas, aquecer o planeta, causar acidentes, destruir empregos, provocar dilemas morais, afastar as pessoas. Diante disso, é notável que o vento ande soprando na direção contrária - e a tecnologia, finalmente, comece a ser vista não mais como parte do problema, mas como a solução.

Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos e célebre ecoapóstolo do fim do mundo, sustenta exatamente esse ponto de vista em Nossa Escolha, seu último livro sobre o aquecimento global. Em Avatar, o diretor James Cameron denuncia a devastação ecológica provocada pela tecnologia justamente no filme mais tecnológico de todos os tempos. Cameron concede que "a solução para salvar nosso planeta também passa pela tecnologia". Mesmo a dramática profecia de 1984, o romance em que George Orwell alerta para os perigos totalitários do avanço tecnológico, foi demolida pelos avanços tecnológicos. Em vez de enfraquecerem a democracia, as conquistas digitais são agora um pesadelo para as ditaduras.

A internet carrega em si um gene democrático. Em março, o Google, o maior site de buscas do mundo, abandonou o mercado da China, com 400 milhões de usuários, em repúdio à censura da ditadura chinesa na internet. "É um momento histórico", festejou o professor Xiao Qiang, da Universidade da Califórnia, que estuda os efeitos da internet na imprensa e na política da China. No ano passado, os jovens iranianos chamaram atenção para seus protestos contra a fraude eleitoral através do Twitter. Yoani Sánchez denuncia ao mundo a vida sob a ditadura cubana através do seu blog. Diz Nina Hachigian, da American Progress, que estudou a internet na China: "A internet, incluindo blogs e Twitter, é uma ameaça política no sentido de que mudou, em definitivo, a dinâmica dos eventos políticos. Os governos não podem esconder informações com a facilidade de antes, mas a internet não é uma ameaça incontornável".

Como força que armazena e difunde informação, a internet é arrebatadora. A Biblioteca de Alexandria, a mais vasta da Antiguidade, reunia 700 000 volumes, até ser criminosamente incendiada. Marco Antônio ofereceu os 200 000 volumes da biblioteca de Pérgamo como prova de amor por Cleópatra. Hoje, só a Amazon tem 500 000 títulos à venda on-line - cada um leva sessenta segundos para ser transmitido por ondas eletromagnéticas ao Kindle, o leitor eletrônico. É impossível censurar o conteúdo de nuvens (o termo técnico para a rede difusa de armazenamento de dados digitais acessados via internet), e as ondas não podem ser incineradas.

A internet criou o "paradoxo da modernidade". Ele se traduz pela absoluta necessidade que regimes de força têm das novas tecnologias para modernizar suas economias de modo a saciar a fome do povo. Mas, junto com o empuxo econômico, a tecnologia digital, baseada no conhecimento, traz a necessidade e a possibilidade do arejamento político. A "diplomacia digital" dos Estados Unidos aposta na força desse paradoxo para enfraquecer regimes ditatoriais. Procura revestir a liberdade de expressão na rede mundial de computadores dos mesmos atributos de bens universais, como o espaço aéreo ou as rotas de navegação. Em março, a Casa Branca anunciou o fim da restrição à exportação de serviços de internet para o Irã, Cuba e Sudão. A ideia é que essas nações hostis sejam contaminadas pelo "paradoxo da modernidade". Em artigo publicado no The Wall Street Journal, o professor Evgeny Morozov, da Universidade Georgetown, resumiu, provocativamente: "Google, Facebook e Twitter são agora meras extensões do Departamento de Estado". É improvável que a "diplomacia digital" obtenha sucesso em um prazo curto. Mas também não parece razoável que, por ser americana, dê ensejo a um "neoludismo", cujos seguidores saiam à noite cortando cabos de fibras ópticas para impedir a propagação da internet.

A tecnologia não é a invenção de um gênio solitário. Ela é o resultado do acúmulo de conhecimento. A tendência é que, quanto mais conhecimento houver, mais tecnologia venha a ser produzida. Essa é sua força. O caráter cumulativo da criação tecnológica explica a velocidade geométrica das novidades e está na base da "singularidade tecnológica". Essa é uma teoria segundo a qual o tempo e o esforço gastos para dar os primeiros passos em uma determinada tecnologia tendem a diminuir drasticamente no caminho evolutivo. Passaram-se séculos entre o primeiro livro impresso e o pioneiro Kindle. Entre o Kindle e algo tão espetacular quanto, digamos, um projetor holográfico tridimensional miniatura de páginas impressas podem se passar apenas alguns poucos anos. A singularidade assusta por prever que, em um futuro de décadas, as máquinas serão infinitamente mais poderosas do que o cérebro humano na sua capacidade de pensar. Isso porque, na capacidade de processar dados, o cérebro humano já perdeu a corrida no século passado.

Ei-nos de volta ao Frankenstein de Mary Shelley - ou seja, à tecnologia ganhando impulso autônomo e abrindo às máquinas a possibilidade de levantar-se contra a humanidade. A revolução robótica é tema recorrente no cinema desde que o diretor alemão Fritz Lang deu alma ao robô Maria no estupendo Metropolis, de 1927. O enredo já apareceu em enlatados, em obras-primas como Blade Runner, de 1982, e avançou para Matrix, de 1999, em que os humanos, já subjugados, é que se rebelam contra a opressão das máquinas. A ansiedade humana em relação à evolução tecnológica, tão clara na atmosfera claustrofóbica da ficção científica, tende a se ampliar à medida que o conhecimento tecnológico vai se sofisticando. É preciso ensinar tecnologia às massas, prega Alec Broers, ex-presidente da Academia Real de Engenharia da Inglaterra e pioneiro da nanotecnologia. Só assim se vencem os mitos e a ingenuidade. Geração de energia e transporte são as áreas em que a tecnologia é mais criticada porque acumula dióxido de carbono na atmosfera e destrói a camada de ozônio. Mas as duas áreas em que pode trazer as melhores soluções são, exatamente, energia e transporte. É isso que Al Gore percebeu ao reconhecer a tecnologia como a aposta para salvar o planeta - já que renunciar a ela é apenas um atalho para a barbárie.

Sendo moralmente neutra, a tecnologia pode servir ao bem ou ao mal. O rádio transmitiu a voz de Franklin Roosevelt para ajudar os americanos a atravessar o calvário da Depressão nos anos 30 e vencer a II Guerra. Do outro lado do Atlântico, o mesmo rádio amplificou os discursos de Adolf Hitler e hipnotizou os alemães num projeto diabólico. "A tecnologia pode tanto promover o autoritarismo como a liberdade, a escassez como a fartura, pode ampliar ou abolir o trabalho braçal", escreveu o filósofo Herbert Marcuse (1898-1979), em Tecnologia, Guerra e Fascismo. O DDT é um santo remédio contra tifo, malária e febre amarela, porque mata os insetos que transmitem essas doenças. Aplicado às toneladas na agricultura, virou veneno para a ecologia, reduzindo a população de pássaros e peixes. O agente laranja é um eficiente herbicida, foi muito utilizado no manejo de florestas no Canadá e na Malásia, mas virou arma na mão dos militares americanos no Vietnã. Na tecnologia, tudo depende do fim para o qual ela é empregada. Sua demonização é uma inutilidade.

Polly Borland/Getty Images

PARA TODOS
Broers: só o conhecimento da tecnologia vence os mitos e a ingenuidade

Metade da humanidade jamais usou um aparelho de telefone. Há mais telefones em Montreal do que em Bangladesh. A tecnologia, ainda que desigualmente distribuída, é a melhor metáfora da trajetória humana na Terra. A própria civilização começou quando os humanos passaram a utilizar as primeiras tecnologias. "Graças à tecnologia, hoje vivemos o bastante para ver nossos filhos e netos crescer. Quem imagina que estaríamos melhor sem a tecnologia moderna precisa pensar nas durezas da vida da Idade Média", diz W. Brian Arthur, autor de The Nature of Technology, que tem, ele mesmo, uma relação de amor e ódio com a tecnologia. O pensamento religioso, traduzido na ideia de que somos criaturas divinamente concebidas, tende a turvar a percepção de que nossa condição natural é miserável. No tempo das cavernas, tudo era pior: o medo, a dor, a fome, a doença, o frio. A tecnologia nos retirou dessa miséria. Não a todos, mas o pedaço da humanidade que ainda vive na dor e na miséria sairá de lá com mais, e não menos, tecnologia.

A revolução da tecnologia da informação está causando um impacto imenso nas ciências: na sociologia, na psicologia, na biologia, na neurologia. Todas precisam saber, e pouco sabem, do impacto dessa tecnologia e seu imenso volume de informação no comportamento das sociedades e dos indivíduos. O mundo não é mais o mesmo - e faz pouco tempo que mudou. Em Ulysses, que começou a ser publicado em 1918, James Joyce faz seu Leopold Bloom lamentar que a sabedoria popular não encontre vazão na produção literária, sempre tão distante do homem comum. O filósofo Walter Benjamin, morto em 1940, dizia que o homem simples e comum almejava "ser reproduzido", mas a indústria cinematográfica, por cobiça, negava-lhe a realização dessa ambição. Até esse sonho a tecnologia do século XXI materializou. O que é o YouTube senão o púlpito do homem comum com audiência planetária? Singelas mas sábias são as palavras de Alec Broers: "A tecnologia é nossa amiga".
5 de maio de 2010

Revista Veja

Um país loteado

Revista Veja - 5 de maio de 2010

A farra da antropologia oportunista

Critérios frouxos para a delimitação de reservas indígenas
e quilombos ajudam a engordar as contas de organizações
não governamentais e diminuem ainda mais o território destinado
aos brasileiros que querem produzir


Leonardo Coutinho, Igor Paulin e Júlia de Medeiros


Manoel Marques

LEI DA SELVA
Lula na comemoração da demarcação da Raposa Serra do Sol, que feriu o estado de Roraima

As dimensões continentais do Brasil costumam ser apontadas como um dos alicerces da prosperidade presente e futura do país. As vastidões férteis e inexploradas garantiriam a ampliação do agronegócio e do peso da nação no comércio mundial. Mas essas avaliações nunca levam em conta a parcela do território que não é nem será explorada, porque já foi demarcada para proteção ambiental ou de grupos específicos da população. Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território nacional. Ou seja, as próximas gerações terão de se contentar em ocupar uma porção do tamanho de São Paulo e Minas Gerais. E esse naco poderá ficar ainda menor. O governo pretende criar outras 1 514 reservas e destinar mais 50 000 lotes para a reforma agrária. Juntos, eles consumirão uma área equivalente à de Pernambuco. A maior parte será entregue a índios e comunidades de remanescentes de quilombos. Com a intenção de proteger e preservar a cultura de povos nativos e expiar os pecados da escravatura, a legislação brasileira instaurou um rito sumário no processo de delimitação dessas áreas.

Os motivos, pretensamente nobres, abriram espaço para que surgisse uma verdadeira indústria de demarcação. Pelas leis atuQais, uma comunidade depende apenas de duas coisas para ser considerada indígena ou quilombola: uma declaração de seus integrantes e um laudo antropológico. A maioria desses laudos é elaborada sem nenhum rigor científico e com claro teor ideológico de uma esquerda que ainda insiste em extinguir o capitalismo, imobilizando terras para a produção. Alguns relatórios ressuscitaram povos extintos há mais de 300 anos. Outros encontraram etnias em estados da federação nos quais não há registro histórico de que elas tenham vivido lá. Ou acharam quilombos em regiões que só vieram a abrigar negros depois que a escravatura havia sido abolida. Nesta reportagem, VEJA apresenta casos nos quais antropólogos, ativistas políticos e religiosos se associaram a agentes públicos para montar processos e criar reservas. Parte delas destrói perspectivas econômicas de toda uma região, como ocorreu em Peruíbe, no Litoral Sul de São Paulo. Outras levam as tintas do teatro do absurdo. Exemplo disso é o Parque Nacional do Jaú, no Amazonas, que englobou uma vila criada em 1907 e pôs seus moradores em situação de despejo. A solução para mantê-los lá foi declarar a área um quilombo do qual não há registro histórico. Certas iniciativas são motivadas pela ideia maluca de que o território brasileiro deveria pertencer apenas aos índios, tese refutada pelo Supremo Tribunal Federal. Há, ainda, os que advogam a criação de reservas indígenas como meio de preservar o ambiente. E há também – ou principalmente – aqueles que, a pretexto de proteger este ou aquele aspecto, querem tão somente faturar. "Diante desse quadro, é preciso dar um basta imediato nos processos de demarcação", como já advertiu há quatro anos o antropólogo Mércio Pereira Gomes, ex-presidente da Funai e professor da Universidade Federal Fluminense.

Os laudos antropológicos são encomendados e pagos pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Mas muitos dos antropólogos que os elaboram são arregimentados em organizações não governamentais (ONGs) que sobrevivem do sucesso nas demarcações. A quantidade de dinheiro que elas recebem está diretamente relacionada ao número de índios ou quilombolas que alegam defender. Para várias dessas entidades, portanto, criar uma reserva indígena ou um quilombo é uma forma de angariar recursos de outras organizações estrangeiras e mesmo do governo brasileiro. Não é por outro motivo que apenas a causa indígena já tenha arregimentado 242 ONGs. Em dez anos, a União repassou para essas entidades 700 milhões de reais. A terceira maior beneficiária foi o Conselho Indígena de Roraima (CIR). A instituição foi criada por padres católicos de Roraima com o objetivo de promover a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, um escândalo de proporções literalmente amazônicas. Instituída em 2005, ela abrange 7,5% do território do estado e significou a destruição de cidades, de lavouras e um ponto final no desenvolvimento do norte de Roraima – que, no total, passou a ter 46% de sua área constituída por reservas indígenas. Em dez anos, o CIR recebeu nada menos que 88 milhões de reais da União, mais do que a quantia repassada à delegacia da Funai de Roraima no mesmo período. Não é preciso dizer que a organização nem sequer prestou contas de como gastou esse dinheiro.

A ganância e a falta de controle propiciaram o surgimento de uma aberração científica. Antropólogos e indigenistas brasileiros inventaram o conceito de "índios ressurgidos". Eles seriam herdeiros de tribos extintas há 200 ou 300 anos. Os laudos que atestam sua legitimidade não se preocupam em certificar se esses grupos mantêm vínculos históricos ou culturais com suas pretensas raízes. Apresentam somente reivindicações de seus integrantes e argumentos estapafúrdios para justificá-las. A leniência com que a Funai analisa tais processos permitiu que comunidades espalhadas pelo país passassem a se apresentar como tribos desaparecidas. As regiões Nordeste e Norte lideram os pedidos de reconhecimento apresentados à Funai. Em dez anos, a população que se declara indígena triplicou. Em 2000, o Ceará contava com seis povos indígenas. Hoje, tem doze. Na Bahia, catorze populações reivindicam reservas. Na Amazônia, quarenta grupos de ribeirinhos de repente se descobriram índios. Em vários desses grupos, ninguém é capaz de apontar um ancestral indígena nem de citar costumes tribais. VEJA deparou com comunidades usando cocares comprados em lojas de artesanato. Em uma delas, há pessoas que aderiram à macumba, um culto africano, pensando que se tratasse da religião do extinto povo anacé. No Pará, um padre ensina aos ribeirinhos católicos como dançar em honra aos deuses daqueles que seriam seus antepassados.

Casos assim escandalizam até estudiosos benevolentes, que aceitam a tese dos "índios ressurgidos". "Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original", diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Declarar-se índio, no entanto, além de fácil, é uma farra. No governo do PT, basta ser reconhecido como índio para ganhar Bolsa Família e cesta básica. O governo gasta 250% mais com a saúde de um índio – verdadeiro ou das Organizações Tabajara – do que com a de um cidadão que (ainda) não decidiu virar índio. O paradoxo é que, em certas regiões, é preciso ser visto como índio para ter acesso a benesses da civilização. As "tribos" têm direito a escolas próprias, o que pode ser considerado um luxo no interior do Norte e do Nordeste, onde milhões de crianças têm de andar quilômetros até a sala de aula mais próxima. "Aqui, só tinha escola até a 8ª série e a duas horas de distância. Depois que a gente se tornou índio, tudo ficou diferente, mais perto", diz Magnólia da Silva, neotupinambá baiana. Isso para não falar da segurança fornecida pela Polícia Federal, que protege as terras de invasões e conflitos agrários. "Essas vantagens fizeram as pessoas assumir artificialmente uma condição étnica, a fim de obter serviços que deveriam ser universais", constata o sociólogo Demétrio Magnoli.

A indústria da demarcação enxergou nas pequenas comunidades negras mais uma maneira de sair do vermelho e ficar no azul. Para se ter uma ideia, em 1995, na localidade de Oriximiná, no Pará, o governo federal reconheceu oficialmente a existência de uma comunidade remanescente de um quilombo – e, assim, concedeu um pedaço de terra aos supostos herdeiros dos supostos escravos que supostamente viviam ali. Desde então, foram instituídas outras 171 áreas semelhantes em diversas regiões. Em boa parte delas, os critérios usados foram tão arbitrários quanto os que permitiram a explosão de reservas indígenas. Também no caso dos remanescentes de quilombolas, a principal prova exigida para a demarcação é a autodeclaração. Como era de esperar, passou a ser mais negócio se dizer negro do que mulato. "Desde que o governo começou a financiar esse tipo de segregação racial, os mestiços que moram perto de quilombos passaram a se declarar negros para não perder dinheiro", diz a presidente do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, Helderli Alves. Índio que não é índio, negro que não é negro, reservas que abrangem quase 80% do território nacional e podem alcançar uma área ainda maior: o Brasil é mesmo um país único. Para espertinhos e espertalhões.

Os novos canibais

Manoel Marques



A foto acima parece estranha – e é. O baiano José Aílson da Silva é negro e professa o candomblé. Seu cocar é de penas de galinha, como os que se usam no Carnaval. Silva se declarou pataxó, mas os pataxós disseram que era mentira. Reapareceu tupinambá, povo antropófago extinto no século XVII. Ele é irmão do também autodeclarado cacique Babau, que vive em uma área que nunca foi habitada pelos tupinambás. Sua "tribo" é composta de uma maioria de negros e mulatos, mas também tem brancos de cabelos louros. Há seis anos, o grupo invade e saqueia fazendas do sul da Bahia, crimes que levaram Babau à prisão. Seu irmão motorista também esteve na cadeia, por jogar o ônibus sobre agricultores. As contradições e os delitos não impediram a Funai de reconhecê-los como índios legítimos e de oferecer-lhes uma reserva gigantesca, que englobaria até a histórica Olivença, um das primeiras vilas do país.

Teatrinho na praia

Manoel Marques


Os boraris viviam em Alter do Chão, a praia mais badalada do Pará. Com pouco mais 200 pessoas, a etnia assimilou a cultura dos brancos de tal forma que desapareceu no século XVIII. Em 2005, Florêncio Vaz, frade fundador do Grupo Consciência Indígena, persuadiu 47 famílias caboclas a proclamar sua ascendência borari. Frei Florêncio ensinou-lhes costumes e coreografias indígenas. O "cacique" Odair José, de 28 anos, reclamou do fato de VEJA tê-lo visitado sem anúncio prévio. "A gente se prepara para receber a imprensa", disse. Seu vizinho Graciano Souza Filho afirma que "ele se pinta e se fantasia de índio para enganar os visitantes". Basílio dos Santos, tio do "cacique", corrobora essa versão: "Não tem índio aqui. Os bisavôs do Odair nasceram em Belém".

Macumbeiros de cocar

Leonardo Coutinho


Os cearenses de São Gonçalo do Amarante vivem um tormento. Sede do Porto de Pecém, o município espera abrigar uma refinaria, uma siderúrgica e um complexo industrial. Um padre, no entanto, convenceu seus fiéis de que esses investimentos os expulsarão do local. Sua única saída para ficar lá seria declararem-se indígenas. "Querem nos tirar terras que nossos pais e avós compraram com muito suor", reverbera o agente de saúde Francisco Moraes. Eles, então, compraram cocares, maracas e passaram a se pintar. "A gente sempre foi índio, só não sabia", diz Moraes, que agora se apresenta como "Cacique Júnior" e cultiva supostos hábitos dos índios anacés, extintos há 200 anos. "Faço macumba e a dança de São Gonçalo." A questão é que a origem da macumba é africana e a da dança, portuguesa.

Made in Paraguai

Leonardo Coutinho


Há dezoito anos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) importou índios paraguaios e argentinos para o Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. Hoje, vivem lá dezessete famílias. A maioria dos imigrantes só se expressa em espanhol, mas todos foram orientados a se declarar brasileiros. "A Funai e o Cimi falam para a gente dizer que é carijó", diz o guarani Milton Moreira, de 49 anos. Paraguaio, ele chegou a Santa Catarina quando tinha 6 anos, mas foi sua presença no local que embasou o pedido de criação da reserva. Curiosamente, Moreira se opõe à demarcação. "Cresci aqui porque meu pai não tinha mais onde me criar. Se esses antropólogos querem botar índio em qualquer lugar, por que não põem a gente para morar no apartamento deles?", pergunta Moreira.

Índio bom é índio pobre

Claudio Gatti


Em 2000, cinquenta famílias de guaranis se mudaram para uma praia em Peruíbe, no Litoral Sul de São Paulo. A terra que eles ocuparam é infértil, mas ainda assim poderiam ter feito um ótimo negócio. O empresário Eike Batista queria construir um porto no local e ofereceu aos índios uma fazenda produtiva, com infraestrutura, dois rios, um pesque-pague e até caça. Mais: daria 1 milhão de reais a cada família. A tribo tirou a sorte grande – ou quase. A Funai barrou o acordo em 2007. Alegou que os sete anos de ocupação irregular da área converteram os índios em moradores tradicionais do local. A chefe Lílian Gomes (em pé, ao fundo) lamentou. Moradora da região desde 2002, ela é casada com um caminhoneiro (branco), tem carro, TV, computador, faz compras no supermercado e não conseguiu impedir a Funai de enterrar a melhor oportunidade de ascensão social que seus liderados tiveram.

Problema dos brancos



Trezentos pequenos agricultores das gaúchas Erechim, Erebango e Getúlio Vargas estão prestes a perder suas terras. Em 2006, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) transferiu para a região um grupo de 63 guaranis de outros locais do Rio Grande do Sul. Os índios ergueram uma favela em volta de fazendas constituídas por italianos, alemães e poloneses há mais de 150 anos. Estão vivendo em condições subumanas. "A gente veio para cá porque o Cimi prometeu mais terras, mas estamos na miséria", diz um dos líderes guarani Severino Moreira (o primeiro à esquerda). Seu sofrimento é passageiro. A Funai declarou que a terra é uma área tradicional dos índios, sugeriu a criação de uma reserva no local e a expulsão dos colonos. São esses últimos, agora, que terão problemas.

Os "carambolas"

Manoel Marques


Nunca se soube da existência de quilombos no Amazonas. Mas há quatro anos apareceu um em Novo Airão, a noroeste de Manaus. Lá, 22 famílias se declararam herdeiras de escravos fugidos. Até então, elas contavam outra história: descenderiam de sergipanos que, há 100 anos, teriam imigrado para trabalhar na coleta do látex. Em 1980, a comunidade entrou em um limbo jurídico. Naquele ano, o governo incluiu sua vila no Parque Nacional do Jaú. As famílias passaram a viver ilegalmente na área. O Ministério do Desenvolvimento Agrário resolveu o problema convertendo-os em quilombolas – ou "carambolas", como eles se autodenominam. "A gente virou ‘carambola’ para não perder a terra", diz Edneu Mendes.

Não basta ser negro

Fotos Liane Neves


O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) dividiu uma comunidade negra que vive na região central do Rio Grande do Sul desde o início do século XIX. O Incra demarcou na área um quilombo chamado São Miguel. Parte dos negros se opôs ao processo. José Adriano Carvalho explica por quê: "O Incra veio com papo de regularizar minhas terras, mas, quando mostrei que a documentação estava em ordem, eles disseram que a intenção era tirar os brancos daqui", afirma. Carvalho se recusou a declarar que era descendente de quilombolas e, por isso, pode ser expulso da terra onde nasceu, há 68 anos.
5 de maio de 2010

Revista Veja - USP

O desbravador do universo

Mais de meio milhão de imagens feitas pelo telescópio espacial Hubble,
cujo lançamento completa vinte anos, ajudaram a encontrar respostas
para algumas das mais intrigantes questões da ciência: a data em que
ocorreu o Big Bang, como nasceram as galáxias e os buracos negros.
Até nos permitiram estimar quando será o fim do mundo


Alexandre Salvador


Fotos NASA


Espetáculo do cosmo
A galáxia M51 foi observada pela primeira vez pelo astrônomo francês Charles Messier, em 1773,
e pode ser vista da Terra por telescópios amadores. A imagem feita pelo Hubble, porém, é inédita
por revelar um esplendor de detalhes como nunca fora visto antes. Conhecida popularmente
como galáxia do redemoinho, ela está localizada a 31 milhões de anos-luz da Terra
(1 ano-luz significa 9,5 trilhões de quilômetros), em uma pequena constelação chamada Canes Venatici

Desde tempos imemoriais, o homem olha o céu e as estrelas com um misto de medo e fascínio. Nos últimos 400 anos, sinalizado pelo momento em que Galileu Galilei usou seu telescópio para estudar o que não podia ser visto a olho nu, o ritmo das descobertas astronômicas tornou-se frenético. As últimas duas décadas, em especial, compõem a idade de ouro da investigação cósmica – e o responsável por isso é, em boa parte, o telescópio espacial Hubble. Em órbita a 570 quilômetros acima da Terra, o Hubble permitiu pela primeira vez um olhar cristalino do espaço-tempo. Os telescópios instalados na superfície têm a observação prejudicada pela atmosfera, que distorce as imagens e bloqueia parte do espectro visual, como as radiações ultravioleta e infravermelhas. "Antes do Hubble, era como se os astrônomos tentassem olhar o céu do fundo de uma piscina olímpica", disse a VEJA o americano Nolan Walborn, do Instituto Científico de Telescópios Espaciais, em Baltimore.

O Hubble foi colocado em órbita pelo ônibus espacial Discovery, em abril de 1990, e não funcionou muito bem nos primeiros anos. Um erro crasso de fabricação em um de seus espelhos, que distorcia as imagens, impediu sua utilização correta até 1995. Esse e outros problemas foram corrigidos por uma série de visitas de astronautas. Praticamente todas as partes, exceto o espelho principal, foram trocadas. O resultado é que o Hubble é hoje 100 vezes mais potente do que no dia de seu lançamento. Desde 1995, o telescópio já captou mais de meio milhão de imagens de deslumbrante beleza – e cada uma delas ajudou a entender melhor a origem e a evolução do universo.

Devido ao tempo que a luz leva para chegar às proximidades da Terra, quanto mais distante o Hubble enxerga, mais ele está olhando para o passado. Em 2009, os astrônomos o usaram para registrar as imagens mais distantes já feitas, mostrando a formação de galáxias quando o universo era um jovem de apenas 600 milhões de anos. É quase o limite das possibilidades da investigação humana. Nos primórdios, a densidade do cosmo era tão elevada que, a exemplo dos atuais buracos negros, não deixava escapar luz alguma. Esse período, chamado de Idade das Trevas, constitui a barreira que nos impede de ver o próprio Big Bang, a expansão súbita de energias que deu origem ao universo.

Para a maioria das pessoas, o Hubble é conhecido principalmente por suas deslumbrantes imagens de nuvens de estrelas, poeira cósmica e choques de galáxias. Sua contribuição à ciência e ao conhecimento do universo é, evidentemente, muito mais ampla. Aqui estão alguns desses avanços científicos:

• Permitiu calcular a idade do universo em 13,7 bilhões de anos.

• Tornou possível a confirmação da existência de buracos negros no centro das galáxias.

• Registrou pela primeira vez a presença de atmosfera em um planeta fora do sistema solar.

• Mostrou que o universo está em expansão e em velocidade maiores do que se supunha.

A respeito desse último item, é curioso o fato de que, no lançamento do Hubble, a expectativa dos astrônomos era precisamente comprovar a desaceleração desse processo. O telescópio espacial mostrou que, ao contrário, quanto mais distantes estão as estrelas, mais rápido elas viajam. O que estaria causando a aceleração da expansão do universo é o tema que intriga os cientistas. A teoria mais aceita é a existência de uma força que se convencionou chamar de energia escura, de origem e magnitude ainda desconhecidas. "Além de recente, essa descoberta foi totalmente inesperada. A energia escura mudou o conceito de evolução do universo que tínhamos até pouco tempo atrás", disse a VEJA Roberto Dias da Costa, do Instituto de Astronomia da Universidade de São Paulo.

A que ponto chegará essa expansão? Ninguém sabe. Muitos cientistas acreditam que, quando o universo atingir o ponto máximo de expansão e não existir mais força para contrabalançar a gravidade, como hoje faz a energia escura, toda a matéria e toda a energia começarão a se contrair até se comprimir num único ponto infinitamente denso, a singularidade. Seria o Big Crunch, o contrário do Big Bang. Quando isso ocorreria? Não antes de 20 bilhões de anos.

A aposentadoria do Hubble já foi anunciada várias vezes. Em todas as ocasiões, o telescópio pôde continuar a operar devido aos consertos feitos por astronautas. Foram cinco missões de reparo e atualizações. A última delas, realizada no ano passado por uma equipe de sete astronautas a bordo do ônibus espacial Atlantis, foi filmada em 3D e agora está sendo exibida em cinemas Imax nos Estados Unidos, com narração de Leonardo DiCaprio. Desta vez, os dias do velho Hubble, com seus remendos e tecnologia ultrapassada, estão realmente contados. Deve deixar de funcionar em 2014, quando seu sucessor, o Telescópio Espacial James Webb, começar a operar a 1,5 milhão de quilômetros da Terra.


Arte no universo
As "pinturas" captadas pelo Hubble: o hidrogênio liberado pela nebulosa Carina (à esq.) forma uma imensa nuvem de poeira que se assemelha a uma explosão. A luz da estrela V838 Monocerotis (no centro) é tão intensa que ilumina a poeira que a circunda. Na nebulosa NGC 6302 (à dir.), os gases liberados na morte de uma estrela lembram a forma de uma borboleta
5 de maio de 2010
Revista Veja

segunda-feira, 24 de maio de 2010

As relações do Brasil com o Irã e a questão nuclear


As relações do Brasil com o Irã e a questão nuclear
por André Luiz Reis da Silva
18/05/2010
O Brasil e a diplomacia brasileira tiveram um grande sucesso nos últimos dias. Visto por muitos de forma cética, a interlocução do Brasil no caso do Programa Nuclear Iraniano teve bom resultado, embora provisório. O presidente Luis Inácio Lula da Silva intermediou, em Teerã, um acordo entre o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, e o primeiro-ministro da Turquia, Tayyiq Erdogan. O acerto tem como base o envio de 1,2 mil quilos de urânio iraniano para a Turquia, que estocaria o material enquanto França e Rússia o enriqueceriam em 20% – tratamento insuficiente para o uso militar, mas suficiente para fins pacíficos.

Até então, Ahmadinejad se recusava a entregar o urânio sem ter a garantia de que o receberia de volta. Um acordo semelhante havia sido oferecido pela Agencia internacional de Energia atômica em outubro de 2009, mas seria enriquecido na França ou Rússia. Os iranianos chegaram a aceitar, mas com a condição que o enriquecimento ocorresse em seu território. A Agência Internacional de Energia Atômica recusou. A mediação do Brasil e da Turquia, nesse sentido, foi fundamental para a intermediação deste acordo.

Começou no inicio de maio, na sede da ONU, em Nova York, uma conferencia de revisão do Tratado de Não proliferação Nuclear (TNP). O principal objetivo do encontro é discutir o tema do controle sobre o desenvolvimento de pesquisa nuclear, para impedir que os países que detenham essa tecnologia possam construir armamentos. Esta conferencia de desarmamento conta com delegações dos 189 países signatários do Tratado de Não-Proliferação.

O TNP tem dois objetivos: diminuir, até eliminar, o arsenal nuclear das cinco potências atômicas oficiais (EUA, Grã-Bretanha, França, China e Rússia) e evitar que outros países usem a tecnologia nuclear para construir armamentos. Mas existem muitos interesses contraditórios nesta questão. As cinco potencias atômicas oficiais não reduziram seus armamentos. Os EUA, mesmo que reduzisse, tem uma quantidade grande de armas. Mas estas cinco potências procuram constranger outros países que estão desenvolvendo tecnologia nuclear, mesmo alegando que é para fins pacíficos.

Nesse contexto, a redução dos arsenais nucleares de quem já possui armas é uma discussão que foi colocada em segundo plano. As grandes potências nucleares, sobretudo os Estados Unidos, impõem a agenda da não proliferação, que é evitar que outros países venham a ter a tecnologia. Além de Estados Unidos, Inglaterra, França, China e Rússia, a Índia e o Paquistão também tem armamentos nucleares e suspeita-se, até hoje não comprovado, que Israel e Coréia do Norte também possuam. Obviamente, esses países querem evitar que outros possam ter acesso a essa poderosa tecnologia.

Entretanto, não se pode evitar a difusão de uma tecnologia que é dual, que serve também para fins pacíficos, inclusive medicinais e de produção de energia. E é exatamente nesta questão que entram países como o Brasil. O Brasil tem um programa nuclear a várias décadas e recebe periodicamente visitas de inspeção da Agencia Internacional de Energia Atômica, para verificar que nosso programa é realmente pacífico. Entretanto, o governo brasileiro vem reclamando que as inspeções são cada vez mais intrusivas, que beiram a espionagem industrial.

Já os EUA – o único país que já usou bombas nucleares, arrasando Hiroshima e Nagasaki – mantém seu programa em segredo, alegando questões de segurança, ao mesmo tempo que constrange outros países, como o Irã, a se submeter a severa vigilância. Basicamente, as potencias oficialmente nuclearizadas querem diminuir o arsenal dos que já possuem, e evitar que novos venham a ter.

Por isso, o governo brasileiro vem argumentando que considera as propostas das grandes potências discriminatórias e que visam barrar o desenvolvimento nuclear dos outros países. Defende que o Oriente Médio, como a América do Sul, seja considerada área livre de armamentos nucleares, o que não interessa os EUA, pois tem Israel como seu aliado. Dessa forma, a exposição das contradições dos argumentos – sobretudo das potencias nuclearizadas, como EUA – ajudem a construir um consenso em bases menos impositivas e mais equilibradas.

No ano passado (2009), em um intervalo de poucos dias, três representantes do Oriente Médio visitaram o Brasil. Além do presidente Ahmadinejad, ocorreram as visitas do presidente israelense, Shimon Peres, e a visita do presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas. A visita quase que simultânea entre representantes de três países do Oriente médio tinha como objetivo diminuir as repercussões negativas que cada uma em separado poderia causar no Brasil, especialmente no que tange as vindas dos presidentes de Israel e do Irã.

A visita de três autoridades do Oriente Médio em poucos dias de diferença mostra a posição que o Brasil vem alcançando nas relações internacionais, bem como que o País tem condições de se colocar como mediador nas questões do Oriente médio. Certamente, a mais polêmica das visitas foi a do presidente do Irã. O polêmico presidente do Irã, que nega o Holocausto contra os judeus, não reconhece o Estado de Israel e defende a pesquisa nuclear do Irã, tem recebido diversas críticas internacionais. Não é necessário comentar que a questão interna iraniana não será resolvida pelo Brasil e sim pelos próprios iranianos. Embora o presidente Lula tenha feito algumas criticas discretas ao governo do Irã, resta ao Brasil pensar sobre que benefícios pode retirar desse relacionamento.

As relações do Irã com a América do Sul tem se intensificado nos últimos anos, principalmente sob a presidência de Ahmadinejad. Entretanto, antes da eleição do líder iraniano, as relações entre Brasil e Irã já cresciam, tendo a Petrobras recebido autorização para explorar o petróleo da região em 2003. No ano seguinte, os dois países assinaram um memorando de entendimento que previa intensificação das comunicações e trocas comerciais entre os mesmos.

No âmbito energético, o Brasil tem procurado apoiar a pesquisa nuclear do Irã, cujo programa possui várias similitudes com o brasileiro, já que ambos objetivam fins pacíficos. O Brasil também faz restrições (como foi em 2004) às inspeções da Agencia Internacional de Energia Atômica (AIEA) nas instalações do Rio de Janeiro e defende que o Irã tem o direito de possuir um programa nuclear pacifico.

Além disso, o Brasil já é o oitavo exportador para o Irã, e inclui automóveis, alimentos, minérios e medicamentos. O fluxo de comércio entre os dois países é de 2 bilhões de dólares. É importante ressaltar que Ahmadinejad veio acompanhado, na visita de 2009, de 200 empresários iranianos, interessados no incremento de negócios com o Brasil.

O Irã, depois da Revolução Islâmica de 1979, tem realizado uma política anti-americana e fortemente pautada pela religião, embora formalmente mantenha instituições democráticas. Reformistas e conservadores mantém um nível alto de enfrentamento no Irã, mas através da política. A vitória de Ahmadinejad na eleição presidencial de 2005, e sua reeleição em 2009, tem provocado um aumento nas tensões entre o Irã e os EUA, em especial no que se refere ao programa nuclear iraniano.

O governo do Irã afirma que suas pesquisas nucleares são para fins pacíficos, mas tanto os EUA como os outros países do Ocidente temem que as pesquisas nucleares sirvam para o desenvolvimento de armamentos. O Irã tem dificultado as inspeções de suas instalações de pesquisa, gerando dúvidas sobre a possibilidade de desenvolvimento de armas nucleares.

As características do país, com grande população, sua capacidade econômica, com expressiva produção de petróleo, bem como sua posição geopolítica e sua possível capacidade de influenciar os países da região, colocam o país como elemento chave para qualquer tentativa de controlar ou pacificar a região. Desde o governo Bush, que classificava o Irã no eixo do mal, já se trabalhava com a idéia de que seria importante a colaboração do Irã na pacificação da região, sobretudo o Iraque. O governo Obama, depois de dar sinais, no ano passado, de que retomaria o diálogo com o Irã, vem endurecendo sua política. Por outro lado, desde 2005, com a posse de Ahmadinejad, o Irã vem ampliando contatos com a América Latina, com diversos países, visando maior apoio internacional e diversificação de parcerias.

Nesse sentido, o Brasil, que vem buscando e afirmando um maior protagonismo internacional nos últimos anos, procura manter alguns canais de diálogo com o Irã, bem como outros países do Oriente Médio. Dentro desta estratégia, o presidente Lula visitou o Oriente Médio entre os dias 14 e 17 de março de 2010, realizando as inéditas visitas aos Estados de Israel, Jordânia e à Cisjordânia, esta controlada pela Autoridade Nacional Palestina (ANP).

A atuação do Brasil no Oriente Médio, apontado como possível novo mediador de conflitos na região, pode causar estranheza nos céticos sobre o poder no Brasil no sistema internacional. Mas o fato é que o Brasil abandonou a postura tímida dos anos 1990 para ocupar uma posição de destaque. Talvez o Oriente Médio esteja precisando menos solução militar e um pouco mais de negociação e diálogo, que são as grandes habilidades da diplomacia brasileira. A intermediação exercida em parceria com a Turquia corrobora com esta estratégia. Mesmo que o Acordo não seja inteiramente cumprido, já que o Irã tem uma política pendular na questão dos acordos de não proliferação, o Brasil concedeu às partes o tempo da diplomacia, cada vez mais necessária nos tempos atuais.

André Luiz Reis da Silva é Professor Adjunto de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e Pesquisador do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais – Nerint da mesma universidade, com apoio da FAPERGS e do CNPq (reisdasilva@hotmail.com).

Meridiano 47

quarta-feira, 19 de maio de 2010

SuperPotência: Qual é o futuro da internet?


SuperPotência: Qual é o futuro da internet?

Já se vislumbra o futuro da rede



Vinte anos depois de sua criação, a rede mundial de computadores, world wide web, criada por um cientista como uma forma simples de dividir informações com colegas, já percorreu um longo caminho.

Foi um milagre acidental que cresceu sem muita orientação de comitês, governos ou corporações.

Mas agora a rede está à beira de outra transformação. Rory Cellan-Jones, jornalista especializado em tecnologia da BBC, conversou com cientistas que estão tentando prever e até guiar o futuro da web.

Veja abaixo algumas dessas previsões.

Rede mais inteligente

Quer chamemos de rede semântica ou rede de dados interligados, os cientistas acreditam que agora estão construindo uma rede muito mais inteligente.

Ao colocar mais dados online e depois “ensinando” a rede a entendê-los e questioná-los de novas maneiras, eles esperam oferecer aos usuários um recurso muito mais inteligente.

“Pense na rede como um grande banco de dados descentralizado contendo de tudo, desde o horário de trens e lugares para comer a sites que informam onde encontrar a melhor oferta. O que a rede vai oferecer é um sistema de buscas muito mais refinado, será uma rede com ‘grãos mais finos’”, disse o pesquisador Nigel Shadbolt, da Universidade de Southampton.

A ideia é que quando alguém fizer uma busca como “próximo trem para Manchester”, em vez de aparecerem várias páginas com informações referentes a trens para Manchester, a rede traga ao usuário uma resposta real. Mas, claro, só se os dados estiverem disponíveis na web.

Shadbolt faz parte de uma campanha liderada pelo criador da rede, Tim Berners-Lee, para convencer o público e órgãos privados a disponibilizar a maior quantidade possível de dados online.

A rede ‘onipresente’

Nós pensamos na rede como algo que acessamos por meio de um browser, usando um teclado.

Mas, de acordo com outra cientista da Universidade de Southampton, Wendy Hall, isto está prestes a mudar: “Vamos conseguir acessar a internet onde quer que estejamos, fazendo o que for, quase sem precisar de nenhum aparelho. Poderemos vê-la por nossos óculos, ou por meio de algum visor que passaríamos a usar”, por exemplo.

A cientista acredita que o browser vai desaparecer e que vamos interagir com a rede por meio de aplicativos, como muita gente já faz com os chamados smartphones.

Objetos nas nuvens

E não apenas as pessoas estarão online.

Mais e mais objetos - como carros, monitores cardíacos e sensores em nossas casas - estarão conectados à internet, contribuindo para um crescente fluxo de dados.

Onde serão armazenados todos esses dados? Na “nuvem”, claro, ou, em outras palavras, nos enormes bancos de dados sendo construídos pelos super poderes da web, como a Google e a Microsoft.

“Em certo sentido, a rede está se tornando um grande computador”, disse Andrew Herbert, à frente do laboratório da Microsoft em Cambridge.

A rede de celulares

Está claro que o futuro da rede está nos celulares – e para a maioria dos bilhões de pessoas que se juntarem a ela nos próximos anos, sua primeira experiência de acesso à web será por telefone celular.

Um dos grandes pensadores da indústria de celulares, Benoit Schillings, da empresa Myriad Software, afirma que isso vai nos tornar ainda mais dependentes da rede.

“Nós partimos do princípio de que é algo que temos conosco o tempo todo. Então quando você perde o seu telefone, se torna um desastre – é agora uma parte essencial de como seres humanos funcionam.”

Mas Schillings afirma que as limitações de uma rede de celulares, em comparação com os dados sendo baixados por uma linha fixa, significa que pesquisas em áreas como compressão de informação se tornam ainda mais vitais.

Uma rede sustentável?

Então, como podemos garantir que esta rede inteligente, móvel e penetrante possa continuar crescendo sem engolir o planeta?

O pesquisador Andy Hopper, da Universidade de Cambridge, lidera um programa chamado Computação pelo Futuro do Planeta.

Ele está otimista com o que a rede pode fazer.

“É um marca-passo para o planeta, uma parte indispensável para a nossa civilização”, diz ele.

Mas ele agora está procurando meios para que tecnologias de computação possam ser usadas para controlar ou reduzir suas pegadas de carbono.

Um de seus alunos, por exemplo, está tentando criar um monitor pessoal de energia que use a nova “rede de objetos” para juntar todos os tipos de informação de sensores online que monitoram o uso de energia.

Mas, quanto mais a rede crescer, maiores serão as ameaças a sua estabilidade, ou não?

“A piada corrente entre a comunidade de engenheiros é que a internet está sempre à beira do colapso”, afirma Craig Labowitz da Arbor Networks, que monitora o desempenho da rede.

Ele é otimista e acredita que a rede vai continuar “se consertando”, mas afirma que, cada vez mais, isso vai depender das grandes corporações que agora controlam o tráfego.

Nos últimos três anos, afirma Labowitz, a participação da Google no tráfego global da internet aumentou de 1% para 10%.

Quem controla?

O que nos traz à questão crucial: quem controla o futuro da rede? Até agora ela vem crescendo de acordo com os princípios de abertura e parâmetros acertados mutuamente – mas alguns temem o surgimento de uma rede corporativa onde a inovação e a liberdade de expressão serão prejudicados.

“Não há garantias de que ela continuará evoluindo da maneira como é hoje – aberta, gratuita e com parâmetros universais”, afirma Wendy Hall.

“Se você perder isso, ou se os parâmetros forem superados por preocupações corporativas, então a rede vai mudar dramaticamente”, conclui.

BBC BRASIL

domingo, 2 de maio de 2010

O apartheid não morreu




O apartheid não morreu
Aqui a discriminação é a lei. Numa África do Sul onde racismo é crime, um povoado se mantém 100% branco e vive como se fosse um país independente. Bem-vindo (ou não) a Orânia
por Felipe Lessa, de Orânia, África do Sul
Quase todos os carros são brancos em Orânia. Já entre os motoristas não existe quase. São todos brancos mesmo. É um povoado de 700 pessoas fundado por brancos e que só aceita moradores brancos. "Viemos atrás do sonho de ter uma comunidade livre e segura. A África do Sul já foi um país de primeiro mundo há algumas décadas, mas infelizmente não podemos mais dizer isso", diz Andries van der Berg, um oraniano de 24 anos.

Andries tem saudade de um tempo que nunca viveu para valer. Tinha só 4 anos de idade quando o apartheid acabou, em 1990. Nos 42 anos que a política de segregação durou, a elite de origem europeia era privilegiada em todas as esferas: tinha os melhores empregos e vivia em bairros nobres com serviços públicos comparáveis aos dos países ricos. Do outro lado dessa muralha invisível estavam 96% da população: negros e mestiços amontoados em periferias ocupando subempregos. Não ser racista era contra a lei, inclusive: o Estado proibia casamentos entre brancos e negros.

Em Orânia os muros também são invisíveis. Não há cancela com seguranças impedindo negros de entrar. Também nem seria permitido. A Constituição sul-africana mais recente, de 1993, transformou o racismo em crime. Se é assim, então, como Orânia é possível? Porque juridicamente esse povoado não é uma cidade. Mas uma empresa. O lugar em si está subordinado a um município de verdade, Hopetown. Não tem prefeito próprio. Mas tem presidente. E os moradores são os acionistas. Ao comprar uma casa lá, você vira sócio. Como qualquer empresa tem liberdade para recusar sócios, Orânia fica com autonomia para decidir quem pode e quem não pode viver lá, como se fosse um governo de verdade.

Isso foi possível porque os fundadores do lugar compraram uma vila operária abandonada no subúrbio de Hopetown - em 1990, logo que o apartheid acabou e Nelson Mandela saiu da prisão. A empreitada custou o equivalente a R$ 1,1 milhão em dinheiro de hoje. Mas isso só valeu pelo terreno, praticamente: eram 240 casas parcialmente destruídas, sem água, luz ou esgoto. "Começamos do nada", diz, orgulhoso, John Strydom, um dos diretores do povoado-empresa.

Empresa não. País. Eles se sentem mais oranianos do que sul-africanos. Como qualquer nação, buscam depender o mínimo possível do exterior. E ter o máximo de autossuficiência econômica. De fato, a maior parte dos serviços e dos alimentos é produzida na própria cidade. Mesmo sem ter nem 15 ruas, Orânia possui bandeira e uma moeda própria: o ora, que vale o mesmo que o rand sul-africano.

É um sistema financeiro engenhoso: você pega seus rands e troca numa casa de câmbio. Ela deixa o dinheiro aplicado. Os rands não são mais seus, a troca já foi feita. Mas você pode sacar os juros depois. Além disso, vários comerciantes dão um desconto de 5% a quem pagar com o ora. É a colaboração deles para criar uma identidade nacional. E para fortalecer a economia local também. Com a moeda local, oraniano gasta com oraniano, não com sul-africano.

"Nosso objetivo é manter o dinheiro dentro da cidade e, com isso, criar empregos", diz Frans de Klerk, o CEO. Não dá para dizer que não deu certo. Em quase 20 anos de existência, foram construídas 3 igrejas, duas escolas, dois museus e uma estação de rádio. E a maior parte dos oranianos tem negócios próprios no povoado, não precisa sair de lá para ganhar a vida.

Mas, cá entre nós, têm de contar com uma mãozinha dos sul-africanos. O posto de gasolina de Orânia, por exemplo, depende dos motoristas negros para sobreviver. Como ele é o único num raio de 15 quilômetros, os habitantes das redondezas abastecem por lá também. Para ter uma ideia, a SUPER viu durante 1h30 só 4 carros com brancos contra 13 com negros. "Sempre passo por aqui e nunca me trataram mal, mas também nunca abriram um sorriso. Lógico, eu estou gastando meu dinheiro no posto. Mas não gosto deste lugar. Nem um pouco", diz a comerciante negra Corina Mathlante.

O isolamento parece não ter fim. Enquanto o país está fervendo por causa da Copa do Mundo, que começa em 11 de junho, o clima em Orânia está frio, até gelado. Sabe como seria se o Brasil sediasse o próximo mundial de curling? É mais ou menos assim que está o clima do povo de Orânia para a copa. "Acho que algumas pessoas vão assistir os jogos pela televisão...", desconversa John Strydom. O negócio ali é atletismo e rúgbi, o esporte tradicional da elite branca.

Tribo de holandeses

O racismo dos oranianos não se limita a um brancos x negros. A questão étnica ali é mais profunda. Tanto que não é qualquer tipo de branco que vive por lá: somente africâneres, os descendentes dos holandeses que iniciaram a colonização do país no século 17 ("orânia" vem de orange, a cor-símbolo da Holanda). Se você for um branco sul-africano descendente de ingleses, que também dominaram a região, não entra.

O fato é que os africâneres dominaram politicamente e culturalmente o país na época do apartheid, mas perderam parte desse poder com a democratização, em 1994. O idioma africâner, um dialeto que veio do holandês dos anos 1600, fazia parte das matérias obrigatórias nas escolas e era número 1 nas universidades. Com a democratização, o inglês tem se tornado dominante no ensino, constituindo também uma segunda língua universal - pela qual as dezenas de etnias negras do país podem se comunicar. "Fomos marginalizados", reclama (em inglês) Carel Boshoff, um dos fundadores de Orânia.

Faz muito mais tempo que os africâneres se sentem marginalizados. Começou quando os ingleses invadiram a praia deles na Áfica do Sul, atrás das jazidas de diamante e de ouro, em 1877.

Os súditos da rainha Vitória expulsaram os colonos descendentes dos holandeses à bala. Aí os africâneres reagiram e pegaram suas terras de volta depois de uma batalha sangrenta. Após muita negociação, um acordo de paz acabou assinado. Pois bem, esse foi só o primeiro episódio. Na virada para o século 20 começaria outra guerra pelo ouro. E os ingleses, com um exército bem superior, massacrariam os africâneres, mandando milhares deles para férias forçadas em campos de concentração.

Se museus existem para relembrar o passado, o de Orânia faz isso com maestria: a maior parte do acervo é composto de carabinas, revólveres e espingardas. São 43. Fora a réplica de cera representando o sofrimento das mulheres nos campos de prisioneiros.

Independência. Ou morte?

Mesmo com uma história de tanta tensão, a relação com o governo é surpreendentemente boa. Prova disso é a visita feita pelo então presidente Nelson Mandela, em 1994, como um gesto de reconciliação entre negros e africâneres. O atual chefe de Estado, Jacob Zuma, também demonstrou interesse em conhecer o povoado. Uma amostra de simpatia, mas também da total falta de receio do governo sul-africano com esses loirinhos que brincam de Banco Imobiliário em seu bairro.

Mas isso não impede Orânia de pensar grande. "Vejo um futuro promissor. Somos uma alternativa para os africâneres e continuaremos crescendo." Crescendo até declarar independência? "Não. Não pretendemos nos tornar uma nação. Mas, se a relação com a África do Sul ficar ruim, será a nossa única opção. Para nos sentirmos seguros, precisamos sentir que pertencemos a algum lugar", diz Boshoff. Mas talvez exista um jeito melhor de saber sobre o futuro de Orânia do que perguntar para os líderes: dar uma volta na piscina pública de lá. É o ponto de encontro dos adolescentes, cheio de casais namorando, moleques fazendo brincadeiras... Lá de trás vem uma garota usando um daqueles óculos tipo persiana, cheia de pose. Na mão um aparelhinho tocando Single Ladies, da Beyoncé. Shantal Williams, 16, não tem nada do jeitão tradicionalista-rural dos africâneres. A menina quer se formar em música - em outra cidade, claro. "Até gosto de morar aqui, mas prefiro lugares de cultura mista, sabe? A gente pode trocar talentos com pessoas diferentes... Aqui é tudo muito igual."

Nome Oficial - Orânia
Localização - África do Sul, a 650 km de Johannesburgo
População - 700
"Independência" (ano da fundação) - 1991
Atividade econômica - Agricultura de azeitonas, pêssegos e figos.
Forma de governo - Empresarial.
Etnia - Africâner.

Para saber mais
The Afrikaners: Biography of a People
Hermann Giliomee , University of Virginia Press, 2003.

Revista Superinteressante

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