quarta-feira, 31 de março de 2010

Repúblicas da banana


Repúblicas da banana
Ditaduras, ocupações e, agora, até um terremoto no Haiti fizeram da América Central a região mais instável e miserável do lado de cá do Atlântico. Entenda o que uma longilínea fruta tem a ver com isso
por Karin Hueck e Mauricio Horta
Um transatlântico de 300 metros se aproxima de uma praia tropical. Seus 3 400 passageiros estão há 5 dias viajando e dispõem de dezenas de atrações a bordo, de campos de minigolfe e paredes de escalada a shows de cabaré. Ainda assim, boa parte dos turistas resolve sair do navio e conhecer a praia de areia branca. Junto com eles, descem garçons e funcionários para abastecê-los com drinques e petiscos durante o banho de sol. Seria uma cena normal, apenas mais um passeio turístico no Caribe, se a praia paradisíaca não fosse Lavadee, o país onde ela se encontra o Haiti, e a data do passeio 17 de janeiro de 2010 - 5 dias depois de um terremoto matar 200 mil pessoas e devastar boa parte da pequena nação. No tremor de 7 graus, 250 mil casas foram destruídas, assim como quase todos os prédios do governo e os dois únicos postos de bombeiros do país. Durante semanas, o mundo se entristeceu com a situação precária do Haiti. Mas a notícia realmente triste é que o país não é uma aberração - é apenas o ponto mais baixo de uma região inteira problemática, a América Central. Ocupações externas, golpes de Estado, ditaduras: quase todos os países da região passaram por isso. E o que pouca gente sabe é que todo esse caos pode ter começado com uma inofensiva frutinha...

A primeira vez que os americanos viram uma banana foi em 1876, na Exposição Centenária da Filadélfia. Na ocasião, a fruta não chamou muita atenção - até porque estava exposta ao lado do telefone de Graham Bell. Mas, 15 anos depois, a banana já tinha conquistado o coração dos americanos e era servida em restaurantes de Nova York. Fazia muito sucesso porque era prática: sua casca é uma embalagem natural que dispensa lavagem. Tinha o potencial de virar o Big Mac das frutas. E, de fato, logo virou: na década de 1930, a banana já era a fruta mais barata e consumida nos EUA. Mas como um produto tropical extremamente perecível podia ser abundante nos EUA? Graças a uma das primeiras multinacionais do mundo: a United Fruit Company, que, além de inventar um método de distribuição de frutas em larga escala, contribuiu para bagunçar a América Central.


Damn it! We have bananas
Nascida na véspera do século 20, a UFC controlou a produção, o transporte e o marketing da banana, com eficiência de relógio e agressividade para eliminar qualquer rival. O lugar escolhido para plantar a fruta foi a desabitada América Central, que oferecia o pacote completo: governos frágeis e terrenos tropicais disponíveis para latifúndios. Foi lá que a UFC deitou e rolou nos 35 anos seguintes. Nesse período, os EUA fizeram 28 operações militares na região, inclusive no Haiti. "O maior objetivo dessas incursões foi tornar a América Central segura para as bananas", escreve Dan Koeppel, escritor americano, autor de Banana: The Fate of the Fruit That Changed the World.

O método que a UFC usava para dominar a região era simples. Com o intuito de modernizar os países, a empresa construía ferrovias e portos, e criava empregos locais. Aí vinha o pulo do gato: muitas vezes os governos não tinham dinheiro para pagar pelas regalias. Em troca, acabavam cedendo imensas extensões de terras férteis para a United Fruit Company plantar bananas, quase livre de impostos. Para que acidentes naturais ou greves não interrompessem o fluxo contínuo de frutas para os EUA, o jeito foi expandir o sistema para vários países ao mesmo tempo. Assim, a UFC exportou o modelo "ferrovias-em-troca-de-terra", inaugurado na Costa Rica, para Panamá, Guatemala, Honduras e Nicarágua. Para os governos, o toma lá dá cá não soava como o fim da soberania, mas como a grande chance de modernização.

Banana pra dar e vender
O problema só ficou óbvio quando a UFC ficou maior do que os países onde atuava. "Não é bom para um país depender da exportação de um só produto", diz Marcelo Bucheli, professor de história da Universidade de Illinois, EUA. "E os países centro-americanos não só exportavam um ou dois produtos mas também eram controlados por uma ou duas companhias e exportavam para um ou dois países." Em 1930, a UFC era o maior empregador da região. Subornando governos, ditava leis trabalhistas, sonegava impostos e não permitia que pequenos produtores surgissem. Assim, a UFC pariu as "Repúblicas da Banana".

O Haiti recebeu indiretamente os tentáculos da UFC, por meio de uma de suas afiliadas, a Standard Fruit and Steamship Company, que se instalou por lá. Mas o que realmente atrasou a vida da nação foram as migrações em massa atraídas pela agricultura. O Haiti não oferecia infraestrutura e nem postos de trabalho para a população (aliás, nunca ofereceu) e 300 mil haitianos deixaram o país para trabalhar nas plantações vizinhas. Para piorar, na mesma época, uma intervenção americana ocupava o país e definia como deveria ser governado. Os líderes locais, em vez de elaborar um projeto para desenvolver a nação, lutavam entre si pelo poder - preferiam intervenções externas à possibilidade de ficar longe do governo.

A coisa desandou de vez quando, ao fim da 2ª Guerra Mundial, o mundo entrou na Guerra Fria. Em 1954, a CIA e a UFC derrubaram um governo eleito da Guatemala e instauraram uma ditadura. Começaram assim 4 décadas de guerrilhas de esquerda e ditaduras de direita na região, que mataram centenas de milhares de pessoas - 200 mil só de guatemaltecos. No Haiti, a instabilidade chegou ao seu auge: em dois anos, 5 presidentes se revezaram no poder. Para assegurar a influência capitalista na região, os EUA apoiaram o golpe político da família Duvalier (o maléfico Papa Doc e seu filho). Sessenta mil pessoas foram assassinadas durante sua ditadura. O pequeno país caribenho continuou sem perspectivas de governo sério - e assim permaneceu até os dias de hoje.

Mas o que a caótica América Central de hoje tem a ver com a UFC do começo do século? Os presidentes podem não ser mais (todos) ditadores malucos, mas o modelo econômico continua. "Os países centro-americanos enfatizaram a exportação agrícola mesmo depois da democracia. O Estado não criou novas indústrias nem se diversificou", diz Steve Striffler, professor de antropologia da Universidade de Nova Orleans, nos EUA. Claro que há exceções, como a Costa Rica, que, mesmo depois de ocupada pela UFC, hoje tem o IDH mais alto do que o do Brasil. Ainda assim, a América Latina é responsável por 80% da produção mundial de banana.

O Haiti vive a pior situação do continente. O país continua plantando bananas, mas, apesar de ser um país essencialmente agrário, 50% dos alimentos para a população têm de ser importados. Isso porque o Haiti perde anualmente 36 mil toneladas de solo fértil devido à erosão. "A cada dia, o país acorda com um pedaço a menos", diz Lúcia Skromov, do Comitê pró-Haiti. 96% da vegetação original foi devastada durante os períodos de instabilidade política e exploração da agricultura. E é por isso que o país estava tão fragilizado quando o terremoto sacudiu Porto Príncipe: falta madeira para a construção, a maior parte era feita de barro ou de galhos. Ou seja, além do caos político e econômico, o Haiti caminha lentamente para virar uma espécie de ilha de Páscoa - que, de tão devastada por seus habitantes, acabou matando todos eles de fome. Se isso acontecer, nada mais vai nascer por lá. Nem mesmo as malditas bananas.

U,,ma história de fracasso
Entre tantos golpes e revoluções, o Haiti não parou para se desenvolver

1804
Uma revolta de escravos liberta o Haiti da colonização. Em troca, a França pede uma indenização que consome 80% do orçamento haitiano por quase 100 anos. Ou seja, o país já nasce endividado.

1915
Empresas americanas dominam a América Central para plantar bananas. Os EUA ocupam o Haiti e garantem a hegemonia dos mares para que ninguém domine o canal do Panamá na 1ª Guerra Mundial.

1957
Entre 1956 e 1957, 5 presidentes se revezam no governo do Haiti. O resultado é o golpe de François Duvalier, o Papa Doc, ditador que ficou 14 anos no poder e mandou matar 60 mil inimigos.

1990
As primeiras eleições democráticas são organizadas. O vencedor é Jean-Bertrand Aristide, que, já em 1991, é deposto por um golpe. Em 1994, EUA e ONU ocupam novamente o Haiti.

2004
O Brasil resolve liderar a missão da ONU no Haiti. Altruísmo? Não exatamente. O governo brasileiro quer provar que está pronto para assumir uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU.

2010
No dia 12 de janeiro, um terremoto destrói a capital, Porto Príncipe. A sede do governo, ministérios e 200 mil vidas vão parar debaixo dos escombros. O Haiti terá de se reerguer das ruínas e no meio de uma crise ambiental.


A maldição da banana
As plantações deixaram um rastro de pobreza nos países que as acolheram. Veja a porcentagem da população abaixo da linha da pobreza na América Central.


NICARÁGUA - 48%

GUATEMALA - 56%

HAITI - 80%

EL SALVADOR - 30,6%

HONDURAS - 50,7%


Para saber mais
Banana: The Fate of the Fruit That Changed the World
Dan Koeppel, Hudson Street Press, 2007.

The History of Haiti
Steeve Coupeau, Greenwood, 2007.

Revista Superinteressante

O tráfico da vida

O tráfico da vida
Na Ásia, a demanda por remédios tradicionais, animais exóticos e iguarias culinárias impulsiona um negócio - legal e ilegal de bilhões de dólares que está esvaziando as selvas, os campos e os mares.
Por Bryan Christy
Foto de Mark Leong

Em uma fazenda de criação no Vietnã, a bile é extraída de um urso-negro-asiático sedado. Milhares de ursos selvagens foram capturados para se obter a bile, usada como medicamento.

Em 14 de setembro de 1998, Wong Keng Liang, um esguio malaio de óculos, desembarcou do voo 12 da Japan Airlines, no aeroporto internacional da Cidade do México. Vestia jeans, paletó azul-claro e camiseta adornada com uma vistosa cabeça branca de iguana. À espera dele estava o agente George Morrison, responsável por uma unidade de elite com cinco agentes, conhecida como Operações Especiais, do Serviço de Pesca e Vida Selvagem, o órgão federal americano que cuida da flora e da fauna selvagens. Poucos segundos após ser detido, Anson (nome pelo qual Wong é conhecido entre os traficantes de animais e os policiais encarregados de combatê-los) foi levado algemado pela polícia federal mexicana à maior prisão do país.

Para Morrison, a prisão de Anson Wong foi uma vitória contra o mais procurado contrabandista de espécies ameaçadas em todo o mundo. Não foi fácil realizar essa façanha, que mobilizou autoridades da Austrália, do Canadá, do México, da Nova Zelândia e dos Estados Unidos, e foi o ponto culminante de uma operação sigilosa que se arrastou por meia década - e ainda é considerada a mais bem-sucedida investigação internacional sobre tráfico de espécies silvestres.

Por muito tempo, e em muitos países (entre os quais os Estados Unidos), não se levou muito a sério a conjunção dos termos "fauna selvagem" e "atividade criminosa". Por isso, os promotores públicos federais queriam conferir à condenação de Anson um caráter exemplar que mostrasse ao mundo que os traficantes de animais são criminosos. Além de acusá-lo com base no Lacey Act, a lei americana contra o tráfico de fauna, também o indiciaram por formação de quadrilha, contrabando e lavagem de dinheiro.

Durante dois anos, Anson lutou para evitar sua extradição para os Estados Unidos, mas acabou por fazer um acordo, confessando crimes que poderiam lhe render uma pena máxima de 250 anos de prisão e multa de até 12,5 milhões de dólares. Em 7 de junho de 2001, foi condenado a 71 meses de prisão em uma penitenciária federal (reconhecendo-se, porém, que Anson já cumprira 34 meses), multado em 60 000 dólares e proibido de vender animais nos Estados Unidos durante três anos após sair da prisão.

Se imaginava que tal pena seria eficaz para coibir as atividades de Anson Wong, o juiz estava equivocado. Logo após Anson ter sido detido, Cheah Bing Shee, sua mulher e parceira de negócios, abriu uma nova empresa, a CBS Wildlife, que passou a exportar animais para a América enquanto o marido estava na prisão. Além disso, a principal empresa de Anson, a Sungai Rusa Wildlife, prosseguiu com suas remessas de animais mesmo após a proibição judicial. E agora que está livre, Anson lançou um novo empreendimento, um zoológico que promete ser a mais audaciosa de todas as suas iniciativas.

O jogo dos números

É quase impossível nomear uma espécie animal ou vegetal, de qualquer parte do planeta, que ainda não tenha sido comercializada - legal ou ilegalmente - em virtude de sua carne, pelo, pele, canto ou valor ornamental, como animal de estimação ou ingrediente de perfumes ou remédios. A cada ano, a China, os Estados Unidos, a Europa e o Japão gastam bilhões de dólares em espécies oriundas das regiões biologicamente mais ricas do mundo, como o Sudeste Asiático.

O caminho até o mercado mundial começa quando caçadores ou lavradores pobres capturam os bichos para mercadores locais que fazem parte de uma cadeia de intermediários. Na Ásia, os animais silvestres acabam nas mesas de banquetes ou em lojas de medicamentos; nos países ocidentais, nas casas de gente que aprecia exibir troféus de animais exóticos. A lógica econômica é tão simples quanto a de um leilão de obras de arte: quanto mais raro o item, mais alto é seu preço. E, como a natureza está acabando, os preços das criaturas mais raras só fazem subir.

Embora ninguém saiba avaliar com exatidão a dimensão desse comércio clandestino, de uma coisa não resta a menor dúvida: é um negócio muito lucrativo. Para evitar apreensões, os contrabandistas escondem a fauna ilegal em meio a carregamentos autorizados, subornam funcionários de órgãos de controle e da alfândega e falsificam documentos de exportação. Poucos chegam a ser capturados, e, mesmo nesses casos, as penas costumam ser brandas. É bem possível que o tráfico de espécies silvestres seja hoje a forma mais lucrativa de comércio ilegal.

Os contrabandistas também se aproveitam de uma brecha na Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagens em Perigo de Extinção (Cites, na sigla em inglês). Com 175 países signatários, a Cites é o principal tratado mundial para a proteção da fauna selvagem, classificada em três grupos segundo o perigo que corre cada espécie. Os animais incluídos no Anexo I, como os tigres e os orangotangos, são considerados tão vulneráveis à extinção que não podem ser comercializados. Já as espécies do Anexo II não estão assim periclitantes e podem ser negociadas sob um sistema de licenças. Aquelas que constam do Anexo III estão protegidas pela legislação nacional do país que as incluiu na lista. Mas o tratado da Cites tem uma brecha enorme: os espécimes criados em cativeiro não desfrutam da mesma proteção daqueles que vivem em condições naturais.

Os defensores da criação em cativeiro argumentam que essa norma alivia a pressão sobre as populações selvagens, reduz a criminalidade e atende à demanda internacional. Todavia, esses benefícios valem apenas para os países que dispõem de políticas de controle eficazes. Pois, na prática, os contrabandistas montam falsas instalações de criação e depois alegam que animais e plantas recolhidos da natureza foram criados em cativeiro. Essa é apenas uma das técnicas usadas por Anson Wong para criar um negócio de fachada que encobria uma das maiores organizações de contrabando de espécies do mundo.

Agora, o famoso traficante de répteis está se preparando para atuar em nova frente, com consequências catastróficas a um dos animais mais carismáticos e ameaçados do planeta: o tigre.

Operação Camaleão

A equipe de Operações Especiais iniciou a caçada a Anson Wong no fim de 1993. Na década de 1990, começaram a entrar em grande quantidade répteis ilegais nos Estados Unidos. E os preços chegaram às alturas - 20 000 dólares ou mais por uma tartaruga rara ou um dragão-de-comodo. Os répteis são portáteis e fáceis de ser contrabandeados: são pequenos (pelo menos quando filhotes), resistentes e, graças ao metabolismo de sangue frio, suportam longos períodos sem alimento ou água. Valiosos e portáteis, eles eram os diamantes do tráfico de fauna.

Havia anos o nome de Anson Wong era mencionado por informantes, fazendo o pessoal de Operações Especiais desconfiar de que fosse o chefão global do tráfico ilegal de répteis. Anson já era procurado nos Estados Unidos pelo envio ilegal de répteis raros para um negociante da Flórida, no fim dos anos 1980. Sabia-se que ele tinha plena consciência de que era visado. Portanto, seria muito difícil obter um flagrante. A equipe teria de inventar algo mais inteligente.

O agente especial Morrison - com 2 metros de altura, ele é caçador desde a infância e filho de advogado - foi colocado no comando da operação. Ele e seu superior, o agente especial Rick Leach, alugaram um espaço em um complexo comercial fora de San Francisco. Para montar o estoque da nova companhia atacadista, chamada Pac Rim, recorreram a mercadorias que tinham à mão, um carregamento de conchas marinhas e corais que restara de investigações anteriores: conchas estriadas de moluscos bivalves, conchas espiraladas de troquídeos, corais duros - o tipo de traste branco e rosado vendido em lojas para turistas em cidades litorâneas. Anunciaram os produtos em revistas e, quando chegavam encomendas legítimas, os veteranos agentes arregaçavam as mangas e tratavam eles mesmos de embalar e remeter os itens pedidos.

Para complementar as operações da Pac Rim, abriram também uma empresa varejista, a Silver State Exotics, na periferia de Reno, no estado de Nevada. Isso permitiu aos agentes fechar todo o circuito econômico - poderiam fazer importações volumosas de animais por meio da Pac Rim e passar adiante o que não iriam usar à Silver State Exotics, conferindo à Pac Rim a aparência - e o faturamento - de um próspero empreendimento global. Em 19 de outubro de 1995, Morrison enviou um fax à empresa de Anson, a Sungai Rusa Wildlife, dizendo que era atacadista de conchas e corais, mas estava interessado em explorar o negócio de répteis e anfíbios. Anson enviou a ele uma lista de preços de uma página, oferecendo rãs e sapos de baixa qualidade por menos de 5 dólares e lagartos domésticos por 30 centavos, listados por seus nomes científicos. Em um caso, Anson usou o próprio nome para identificar uma subespécie: ansoni. Dois animais, porém, se destacavam na relação: a tartaruga-nariz-de-porco e o lagarto-dragão-australiano, ambos protegidos em seu âmbito natural, que inclui Papua-Nova Guiné, Indonésia e Austrália. Portanto, já no contato inicial com Morrison, de quem nada sabia, Anson não se furtou a acenar com amostras de espécies ilegais.

Logo em seguida, Anson ofereceu a Morrison alguns dos répteis mais raros do Anexo I da Cites: dragões-de-comodo da Indonésia, tuataras da Nova Zelândia, aligátores-chineses e tartarugas-de-esporão de Madagáscar. Graças a um funcionário corrupto da empresa FedEx, Anson mandou pelo correio espécimes protegidos a endereços falsos criados pelos agentes. Da Malásia, enviou dragões-de-comodo para Morrison escondidos em malas levadas por um portador, James Burroughs. Também mandou tartarugas-raiadas embaladas em meias pretas no fundo de carregamentos legais de répteis.

Morrison ficou assombrado com a engenhosidade de Anson. Era capaz de intermediar um negócio com tartarugas do Peru, sem jamais chegar perto delas. Contratou caçadores para invadir um santuário de fauna selvagem na Nova Zelândia. Controlava uma empresa que comerciava espécies selvagens no Vietnã. E vangloriava-se de assegurar o bom termo de seus negócios com a ajuda de capangas chineses.

Notável também é o modo como explorava a brecha da Cites referente à criação em cativeiro, alegando que essa era a origem dos animais que exportava. Num de seus esquemas, Anson enviou tartarugas-estrela-indianas por Dubai, afirmando que haviam sido criadas em cativeiro. Quando o endereço foi checado, descobriu-se que no local funcionava uma floricultura.

Anson tranquilizou Morrison dizendo que não havia nada a temer das autoridades da Malásia. No país, o contrabando é policiado pelos agentes aduaneiros e pelo Perhilitan, o Departamento de Fauna e de Parques Nacionais. Sobre seu portador, Anson disse: "O segundo no comando na alfândega vai buscá-lo no aeroporto".

Em uma ocasião, Anson ofereceu a Morrison 20 pítons-timorenses por 15 000 dólares. Morrison respondeu que estava interessado, mas temia que as serpentes viessem sem a documentação da Cites. "Não se preocupe", replicou Anson. "Um de meus homens vai ser detido com o carregamento. O material será apreendido e, depois, vendido para mim pelo departamento."

Em seguida, Anson ofereceu a Morrison cornos de rinocerontes-de-sumatra e de-java, dois animais incluídos no Anexo I. Ele tinha acesso a aves extraordinárias, entre as quais o mainá-de-rothschild, cuja população selvagem se estima que seja menor que 150 espécimes. E vangloriava-se de suas ararinhas-azuis, uma ave brasileira que se considera extinta em condições naturais, alegando que recentemente vendera três delas. No mercado negro, uma ararinha valia na época 100 000 dólares. Sua lista cada vez maior de raridades ilegais incluía até mesmo pele de pandas-gigantes e de leopardos-das-neves.

Considerar Anson apenas um traficante de répteis havia sido um erro, permitindo que ele se movimentasse livre pelo mundo. "Consigo qualquer coisa em qualquer lugar", escreveu para Morrison. "Tudo depende de quanto se paga a certas pessoas. Se você me disser o que quer, eu avalio os riscos e digo quanto vai lhe custar."

"Nada pode me atingir", vangloriou-se ele. "Posso vender um panda - e nada acontece. Enquanto estiver aqui, estou seguro."

Por fim, após cinco anos e meio milhão de dólares gastos em aquisições ilegais, Morrison estava pronto para investir contra a "Fortaleza Malásia" - a base de operações de Anson. Propôs que Anson se juntasse a ele em um novo empreendimento, especializado nos animais mais raros do planeta. "Cheguei a um ponto em que as pessoas preferem me oferecer primeiro o que têm, antes de ir em busca de outros compradores", disse o traficante. Ele estava interessado.

Morrison sugeriu que começassem pelo contrabando de bile de urso, um ingrediente de remédios tradicionais chineses. Anson disse que havia muita demanda na China e na Coreia do Sul. "Mas não se esqueça", alertou Morrison, "de que não vou vender diretamente - é perigoso." Em vez disso, ele usaria um intermediário.

Morrison replicou que também tinha uma parceira que poderia conseguir a bile no Canadá, mas que só faria negócios com Anson depois de conhecê-lo pessoalmente. Anson mostrou-se relutante. "Podemos nos encontrar em qualquer lugar aqui na Ásia", escreveu Anson. Ou então na Argentina, na África do Sul, no Peru, na França ou na Inglaterra. "Mas não na Nova Zelândia", estipulou, "nem na Austrália."

Por fim, marcaram um encontro no México.

A fênix malaia

Com a detenção de Anson Wang em setembro de 1998, o Serviço de Pesca e Vida Selvagem americano deu por concluída sua missão, mas é possível que tenha perdido a guerra. "Concentramos tudo em um único objetivo", contou-me George Morrison. Exausto, ele abandonou o trabalho clandestino. Rick Leach, o supervisor, aposentou-se, e em seguida o grupo de Operações Especiais praticamente encerrou suas atividades.

Cinco anos depois, em 10 de novembro de 2003, Anson recuperou a liberdade. Os jornalistas acorreram à Malásia, instalaram-se diante da sede da empresa de Anson, em Penang, uma ilha ao largo do litoral oeste, e tentaram fotografá-lo. Anson recusou-se a falar com os repórteres.

Na época, a Malásia estava envolvida em um escândalo de contrabando de gorilas-das-planícies, outra espécie à beira da extinção. Os traficantes haviam usado o zoo da universidade nigeriana de Ibadan como fachada para vender quatro filhotes de gorila, capturados nas florestas de Camarões, ao zoológico Taiping, na Malásia. Esse incidente provocou protestos internacionais e ficou conhecido como os "Quatro de Taiping". Em meio à comoção gerada pelo caso, Anson sentou-se diante de seu computador e enviou uma mensagem para o Vorras.net, um site frequentado por mercadores de fauna silvestre: "Precisamos de primatas nigerianos. Favor enviar preços para entrega na Malásia".

Anson estava de volta aos negócios.

Para dizer a verdade, jamais havia se afastado. Enquanto cumpria sua pena, Cheah Bing Shee continuou no comando da operação. Na sua volta, Anson passou a frequentar sites buscando répteis da Índia, de Madagáscar e do Sudão; insetos de Moçambique; e "10 toneladas por mês" de chifres de carneiro. E ofereceu aos interessados ampla gama de espécimes selvagens, entre as quais répteis malaios, mainás, papagaios, assim como um carregamento de meio milhão de dólares de madeira-de-agar, muito valorizada por suas qualidades aromáticas. A um pedido de mamíferos e aves mortas, ele respondeu: "Sempre temos em estoque".

O que atraiu minha atenção para Anson foi um comentário feito de passagem por Mike Van Nostrand, dono da empresa Strictly Reptiles, da Flórida, uma das maiores atacadistas de répteis do mundo, e também uma das maiores clientes de Anson. Eu estava escrevendo um livro sobre o passado de Van Nostrand como contrabandista de répteis. "Duas semanas depois de ter saído da prisão", contou-me Van Nostrand no verão de 2004, "Anson ofereceu-me algo que na verdade ele não poderia ter." Era um varano-de-gray, um lagarto frugívoro das Filipinas que havia sido considerado extinto até o fim da década de 1970, e um dos animais pelos quais Anson fora condenado. Van Nostrand, que também já cumprira pena por contrabando de répteis, e não queria repetir a dose, ficou chocado. "Você não desiste", respondeu ele na época.

Em setembro de 2006, aluguei um apartamento na Flórida e comecei a trabalhar na Strictly Reptiles. Passei três meses no depósito, varrendo o chão, limpando jaulas e desembalando carregamentos de répteis - entre os quais os enviados por Anson -, tudo isso para fazer uma única pergunta a Van Nostrand: "Você me apresenta a ele?" Fui acusado por outros funcionários de ser agente federal. Eles me fotografaram, fui ameaçado e apontaram um revólver .357 contra a minha cabeça. No fim, ficamos amigos. Poucos dias antes de terminar o contrato de aluguel de meu apartamento, fiz de novo a pergunta. "Claro", respondeu ele. "Anson vai conversar com você. Ele adora falar de si mesmo."

Dentro da fortaleza

Situada na elegante área de Pulau Tikus em Penang, a Sungai Rusa Wildlife poderia ser confundida com um salão de beleza. Com a mesma largura de uma garagem familiar e sem qualquer placa de identificação, é mais um dentre as dezenas de negócios em uma tranquila rua de lojas que oferecem dietas de emagrecimento, tratamentos de pele e cuidados com o corpo. Quando cheguei, em 2 de março de 2007, um BMW preto e um furgão fechado ostentando o endereço da fazenda de criação de répteis mantida por Anson em Penang estavam parados diante do local.

Anson cumprimentou-me com aquele aperto de mão extraforte que costumam dar certos homens. Em seguida, conduziu-me, por entre pilhas de caixas de plástico com tarântulas vivas, papéis soltos e caixas de papelão para envio postal, até o seu escritório, uma sala atulhada e sem janelas. Embora tenha anunciado na internet que sua empresa fatura de 50 milhões a 100 milhões de dólares por ano, o que havia de mais caro na sala era o celular sobre sua mesa.

Depois de me acomodar numa cadeira, Anson apontou três grupos de fotos coladas na parede do escritório. "Minha mulher colocou isso aí para que eu nunca me esqueça de perguntar se valeu a pena", comentou. "Bonitas, não?"

Eram fotos de tartarugas-raiadas que ele havia contrabandeado, e cada uma delas trazia um carimbo do tribunal federal da Califórnia. Embora possam ser um lembrete a Anson ali colocado por sua mulher, as fotos também são um aviso a todos os que adentram aquele recinto: eu, Anson Wong, enfrentei um dos mais duros processos judiciais do mundo e aqui estou em liberdade.

Ele tinha uma enganosa aparência de menino. Usava óculos grandes e redondos, e o cabelo, preso num rabo, estava salpicado de fios cinzentos. Com 49 anos, seu rosto não revelava nenhuma tensão. Ele tinha o ar cultivado de um artista bem-sucedido, talvez um escultor, e falava inglês com perfeição com um agradável sotaque britânico. Atrás de sua cabeça havia um mapa-múndi. E, atrás de mim, dormia uma píton-reticulada, a maior dessas serpentes.

Anson contou que havia entrado no negócio de espécies silvestres durante a década de 1980, ao fundar a empresa Exotic Skins and Alives. Naquela época, disse ele, a Malásia somente protegia a fauna selvagem endêmica. Por isso ele negociava espécies ameaçadas de outras parte do globo. Anson sorriu. "De tudo", declarou.

Disse a ele que estava escrevendo um livro sobre o seu cliente americano Mike Van Nostrand, que também havia brincado de gato e rato com o Serviço de Pesca e Vida Selvagem. "Você é o principal cara na Ásia", disse eu. "Segundo Mike, se não fosse por Anson Wong, não haveria negócios com répteis nos Estados Unidos."

Anson mencionou um concorrente na Indonésia e outro em Madagáscar. Riu e balançou a cabeça. "Bem, acho que não somos muitos."

A fauna silvestre é parte da economia de todos os países asiáticos, prossegui, e o que me interessa é a linha divisória entre o homem e a natureza. "Ahhh", disse ele. Ergueu os braços e opôs os dois punhos fechados. "Sempre em conflito."

Choque futuro

"Agora estou construindo outro zoo", afirmou ele, apontando um documento de 30 páginas sobre a mesa, intitulado "Anson Wong, Aldeia de Flora e Fauna". "O projeto foi aprovado ontem." Comecei a folhear o calhamaço, repleto de desenhos arquitetônicos.

Os sócios de Anson eram sua mulher e Michael Ooi, um negociante de orquídeas de renome internacional. (O irmão de Michael, Gino, controla a maior instituição de aves raras da Malásia.) Durante anos o casal Wong e Michael Ooi haviam mantido um zoo em Penang, o Jardim de Orquídeas, Hibiscos e Répteis Bukit Jambul.

Os zoológicos são ótimos disfarces. Os contrabandistas que controlam um zoo podem movimentar espécies ameaçadas com a papelada da Cites, e os programas de criação locais explicam o aparecimento de um espécime. Em geral, a Cites não se preocupa com o que acontece com um animal depois que ele é importado por um zoo: assim, um gorila pode ser vendido a um particular ou, se morrer (ou for morto), pode ser retalhado, sendo a carne ou as partes vendidas ou consumidas, ou então acabar empalhado.

Anson me contou que o novo zoológico iria superar o Bukit Jambul. Ele iria expor répteis e pretendia cobrar pouco dos visitantes, mas mesmo assim contava ganhar muito dinheiro. Ele tinha agora novo foco de interesse: os grandes felinos. "Adoro os tigres", disse ele. "Criação em cativeiro", sorriu, "é aí que está o futuro."

Ergui os olhos como se tivesse tomado uma injeção de adrenalina. Os tigres estão quase extintos na natureza, restando apenas uns 4 mil espécimes. E agora Anton Wong planejava concentrar suas atividades nesses animais.

Há um valioso mercado negro para tigres.

Os tibetanos usam túnicas de pele de tigre; ricos colecionadores exibem sua cabeça como troféu; restaurantes de comida exótica vendem carne de tigre; seu pênis é tido como afrodisíaco; e os chineses usam seus ossos em tratamentos médicos, entre os quais vinho de osso de tigre, a "canja de galinha" da medicina chinesa. O valor no mercado negro de um macho adulto morto gira em torno de 10 000 dólares. Em alguns países asiáticos, atrações turísticas conhecidas como "parques de tigres" funcionam como fachada para o manejo de tigres - os animais em cativeiro são abatidos e retalhados, e, além disso, também constituem um mercado em potencial para os caçadores clandestinos de tigres selvagens.

Anson tem uma história tenebrosa com os grandes felinos. Durante a Operação Camaleão, ele chegou a solicitar a ajuda de Morrison para fazer com que os tigres que criava em cativeiro fossem abatidos e preparados para ser vendidos como troféus. Também havia proposto contrabandear um puma, e queria que Morrison achasse comprador para um gato-marmoreado, uma espécie incluída no Anexo I. Após sair da prisão, os filhotes de tigre mantidos por ele foram localizados na vitrine de uma loja de animais em Kuala Lumpur. Apesar de tudo, Anson já estava acostumado a driblar as proibições graças à obtenção de "licenças especiais", concedidas a particulares, parques de diversão e zoos.

Então ele lançou um olhar à bolsa que eu trazia no ombro. "George Morrison gravou tudo", comentou enquanto se erguia. "Estou muito ocupado", disse, indicando seus próximos compromissos: Taipé, Hong Kong, Tailândia. Enquanto me acompanhava até a saída, comentou: "Quando você acabar seu livro, precisamos conversar sobre a minha história".

Foi aí que cometi um erro. Contei a ele que havia escrito um artigo expondo um acordo duvidoso entre o governo americano e um negociante britânico de moedas para vender a moeda mais valiosa do mundo - que havia sido roubada - e dividir os lucros. Em geral, contar a um ex-condenado que você deixou as autoridades em maus lençóis é uma jogada certa para consolidar o relacionamento. Mas naquele momento me esqueci da premissa da Operação Camaleão: Anson mantinha excelentes relações com o governo de seu país. Ele fitou-me. "Ah, então você é jornalista", disse ele, mais tenso.

Aparentemente, Anson havia me confundido com um biógrafo. Tentei consertar a situação, mas ele me interrompeu. "Jornalistas que expõem aquilo que as pessoas preferem deixar de lado podem acabar mortos", disse com voz bem calma.

Kecik-kecik cili padi

Certo dia, no fim de dezembro de 2007, o Mercedes-Benz preto de Anson estacionou no aeroporto internacional de Penang e ali recolheu duas das principais autoridades encarregadas da proteção da fauna na Malásia: o diretor da divisão de fiscalização do Perhilitan, Sivananthan Elagupillay, e sua chefe, a vice-diretora-geral do órgão, Misliah Mohamad Basir. Ambos haviam chegado de Kuala Lumpur para a coletiva de imprensa que marcaria o lançamento do Aldeia de Flora e Fauna, agora um empreendimento conjunto do departamento florestal de Penang e da empresa controlada por Anson Wong e Michael Ooi. O zoo seria montado em uma área de 2 hectares na Reserva Florestal de Teluk Bahang e, para sua viabilização financeira, o governo estadual de Penang contribuíra com 700 000 ringgit (200 000 dólares). No jornal malaio The Star, uma foto mostrava as autoridades inspecionando a área onde ficaria o novo tigre. "O valor da entrada será bem acessível, pois nosso objetivo é contribuir para a preservação de espécies ameaçadas", declarou Ooi aos jornalistas.

Anson sempre havia se vangloriado de seus contatos no governo. Agora contava com o apoio explícito tanto do governo de Penang como do departamento de fauna da Malásia, o Perhilitan. A presença de Misliah ali era irônica. Na época da Operação Camaleão, ela era a encarregada do Perhilitan em Penang, e a responsável por conceder as licenças relacionadas com a Cites. Durante os quatro anos em que Anson cumpriu sua pena, ela foi promovida ao cargo de diretora da divisão de fiscalização e, em 2007, tornou-se a segunda pessoa mais importante do órgão.

Minha curiosidade era saber qual seria a opinião de Misliah sobre o indivíduo que havia contrabandeado tantos animais ameaçados bem debaixo de seu nariz. "Ele é um grande amigo meu", disse ela com uma risadinha, acomodada à mesa de seu espaçoso gabinete na sede do Perhilitan. Ela era uma mulher baixinha e bem fornida, pouco mais que uma cabeça redonda envolta em um tudung branco, o lenço usado pelas muçulmanas. Um xale azul-celeste recobria o baju kurung, uma túnica longa com sarongue, e calçava diminutas sandálias marrons. E a voz dela era, sinceramente, a mais doce que eu já ouvira.

Haviam me avisado que Misliah tinha dois preconceitos: não gostava de americanos, e achava que todos eles estavam obcecados por Anson Wong. "Como a senhora deve saber", eu disse logo de saída, "sou americano. E, quando se trata da Malásia e da fauna selvagem, nos Estados Unidos a gente sempre ouve a mesma história."

"E que história é essa?", perguntou ela com afabilidade. Eu sorri. "Anson Wong."

Misliah voltou a dar sua risadinha. Ela entrara no Perhilitan no início da década de 1980, mais ou menos na época em que Anson começara a negociar répteis, e havia permanecido em Penang durante a maior parte da carreira. "Passei mais de dez anos fazendo inspeções nas remessas dele", contou ela. Tentei imaginar Misliah, com um pé-de-cabra, abrindo os caixotes repletos de gecos-tokay, serpentes-boigas e outros animais agressivos e ameaçadores que Anson chamou de "espécies encobridoras", pois costumava colocá-las por cima das caixas com espécies ilegais.

No princípio, ela não entendia muito de répteis, disse, mas agora era diferente. "Tudo o que sei sobre eles aprendi abrindo as caixas de Anson." Misliah desviou o olhar para as estantes do gabinete. Embora não o tenha visto muito desde que se mudou para Kuala Lumpur, de tempos em tempos ela continuava a lhe pedir emprestado livros para a identificação de aves. E, quando seus subordinados não conseguiam reconhecer um animal, ela fazia com que ligassem para Anson. "Não há ninguém tão bom para identificar animais selvagens; não vejo por que não recorrer a ele", disse. "Ele é o mais competente do país."

Notei então que Misliah raramente piscava.

"Ele é muito esperto", prosseguiu ela, explicando que Anson trata todos os seus negócios por telefone. "Na Malásia, a gente precisa surpreender a pessoa com os animais. Não é como nos Estados Unidos com o Lacey Act", disse.

O Lacey Act transformou em crime federal a transgressão das leis de proteção à fauna selvagem, mesmo aquelas de outro país, e um contrabandista não precisa ser flagrado com o animal para ser indiciado. Misliah considera ilegítima a condenação de Anson sob o Lacey Act e chegou a denunciar o Serviço de Pesca e Vida Selvagem de o ter incriminado falsamente.

"Disseram que ele tinha dragões-de-comodo, mas ele jamais mexe com animais - tem muita gente que faz isso em seu lugar", disse Misliah. "Quando estava preso, Anson me escrevia cartas. Ele sobreviveu graças a subornos. Eles o trataram como um rei!" Ela explicou então que os negócios dele haviam sido muito prejudicados enquanto estava na prisão, e sua mulher teve de assumir o comando. "Mas agora", prosseguiu Misliah, "as coisas estão melhorando."

A segunda maior autoridade encarregada da aplicação das leis de proteção da fauna da Malásia fala do mais notório traficante de espécies de seu país como uma tia preocupada com o sobrinho: "As pessoas dizem ‘Como pôde dar a ele uma licença? Ele foi um menino muito mau, mas, se não déssemos a licença, mesmo assim ele continuaria agindo’". Dessa maneira, segundo ela, é mais fácil mantê-lo sob controle.

Até hoje Misliah defende Anson. "Anson Wong realizou seus negócios de maneira legal, cumprindo os requisitos e as normas das leis internas. Ele e suas atividades na Malásia peninsular estão sendo acompanhados por este departamento", afirmou seu gabinete em nota à imprensa em 2008. E ela também é favorável à legalização do manejo de tigres e de bile de urso. "Por que não?", perguntou-me ela própria.

Misliah Mohamad Basir, tão discreta e aparentemente tão benigna, é uma das autoridades mais poderosas do planeta no que se refere à fauna selvagem. E, sob seu mandato, a Malásia tornou-se um dos centros do tráfico global.

Fiz questão de insistir em quão agradável ela era pessoalmente. "Misliah não é a mulher mais doce que já conheceu?", perguntei a um alto funcionário do Perhilitan.

Ele fitou-me por um instante e sorriu. "Aqui no departamento temos um ditado para nos referir a ela: ‘Kecik-kecik cili padi’", disse. Um guarda-florestal que estava ao lado assentiu com a cabeça. "As menores pimentas são as mais fortes."

Precisa-se de xerife

Quando a entrevistei, Misliah mencionou, como sendo um adversário, Chris Shepherd, um intrépido investigador que vem chamando a atenção para o mercado negro de espécies silvestres em todo o Sudeste Asiático. "Ele diz que nosso país é apenas uma escala", comentou Misliah, com desprezo evidente. "Diz que não fazemos nada para interromper o contrabando."

O canadense Shepherd trabalha para o Traffic, o departamento de investigação das organizações não-governamentais Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCF). Com sede em Cambridge, na Inglaterra, e escritórios por todo o mundo, os investigadores do Traffic monitoram atividades criminosas e transmitem o que descobrem aos órgãos encarregados de aplicar a lei nos países. Shepherd coordena o escritório responsável pelo Sudeste Asiático, em Petaling Jaya, na Malásia. Ao longo da última década, ele publicou uma montanha de relatórios sobre o comércio ilegal de partes de ursos, elefantes, civetas, tartarugas-raiadas, serows-de-sumatra, tigres-de-sumatra e outros animais. Seus relatórios ajudam conservacionistas e órgãos de proteção da fauna em todo o mundo.

Ao visitar Shepherd, peço a ele que me mostre seu dossiê sobre Anson Wong. Estou curioso. Ele me fita com um olhar vago. Abre um de seus arquivos e de lá tira uma pasta fina de uma gaveta semivazia. Depois de folhear algumas páginas, balança a cabeça.

Nenhum dos investigadores de organizações não-governamentais, nem mesmo Shepherd, jamais vira Anson Wong. Vezes sem conta topei com especialistas ansiosos para me mostrar atrocidades: filhotes de urso no Vietnã mergulhados em água fervente a fim de intensificar a "força vital" da sopa de pata de urso, orangotangos presos com correntes nos quintais de generais indonésios, aves quase extintas vendidas abertamente em mercados. Mas, quando indagava quais conexões poderiam ser estabelecidas entre essas cenas e organizações criminosas, ninguém podia citar um único exemplo de um grupo investigado com as minúcias a que estamos acostumados a ver em qualquer filme policial barato.

"O cérebro deles todos funciona como uma câmera", foi o comentário que ouvi de George Morrison. As ONGs, seus doadores e a imprensa tendem a se concentrar nos crimes contra os bichos de maior visibilidade, ao passo que as organizações criminosas multinacionais atuam invisíveis por trás de massas de registros corporativos, licenças da Cites e dados comerciais.

Além disso, os funcionários das ONGs contam com pouco tempo para cumprir tudo o que precisam fazer: levantamento de recursos financeiros, produção de relatórios sobre as espécies, divulgação na imprensa, encontros com doadores e tarefas administrativas. As ONGs não podem fazer o trabalho da polícia. Elas não têm autoridade para aplicar a lei, e seus funcionários precisam de vistos que podem ser cancelados dependendo de seu relacionamento com as autoridades. Se as ONGs vão longe demais, podem virar alvo de represálias. Em 2008, o Traffic divulgou um relatório sobre o comércio de órgãos de tigre em Sumatra e solicitou que as autoridades indonésias aumentassem sua vigilância. O resultado foi que a Indonésia congelou as atividades do Traffic, uma iniciativa que equivale à expulsão. Tonny Soehartono, o ministro de Recursos Florestais e responsável pela decisão, assim justificou a medida: "O Traffic atacou o meu país".

O próprio Traffic dispõe apenas de três investigadores para cobrir o Sudeste Asiático, e só uma centena deles em todo o mundo.

O secretariado da Cites conta com um só funcionário - uma única pessoa - para a fiscalização do acordo. A Interpol também conta com apenas uma pessoa para cuidar de seu programa de combate aos crimes contra a fauna. Outros países dispõem de instrumentos úteis, como autorização para gravar conversas telefônicas, mas não desfrutam da amplitude do Lacey Act.

Em uma comissão do Congresso americano que examinava os vínculos entre segurança nacional e tráfico de animais silvestres, conheci uma mulher doutora em veterinária que havia ajudado a preparar parte do material de apoio para as discussões. "Quero ir trabalhar disfarçada no Sudeste Asiático", contou-me ela. Fiquei impressionado: uma jovem profissional disposta a viver a vida de um investigador clandestino.

Misliah não gosta de Shepherd porque as críticas dele aparecem no noticiário, mas na verdade a imprensa só leva adiante casos que envolvam animais emblemáticos e recebam nomes atraentes, como os "Quatro de Taiping" ou os "Seis de Bangcoc" (seis filhotes de orangotango apreendidos). O mesmo não ocorre quando se trata de um mero peixe-napoleão ou das 14 toneladas de tartarugas, varanos e pangolins achados em um barco abandonado na costa da China.

Um motivo de esperança pode ser uma nova organização regional, a Rede de Fiscalização da Fauna Selvagem da Associação dos Países do Sudeste Asiático (Asean-WEN, na sigla em inglês). Criada há quatro anos, a Asean-WEN reúne agentes alfandegários, promotores públicos e policiais de todos os dez países integrantes da aliança. Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos participam, e grande parte dos recursos vem da Usaid, o órgão federal americano voltado para a promoção do desenvolvimento internacional. Uma prova do potencial da Asean-WEN é o fato de que o próprio Anson Wong assina o boletim publicado pelo novo órgão.

Em agosto de 2009, Misliah respondeu às alegações de que havia um relacionamento impróprio entre seu departamento e Anson Wong: "No que se refere à Malásia, ele respeita as leis e tem as licenças necessárias", afirmou. "O que ele faz em outros países não é da nossa conta."

National Geographic Brasil

O fator Cingapura

O fator Cingapura
Como essa ilhota se transformou em usina de força high-tech em apenas uma geração? Simples: foi tudo planejado.
Por Mark Jacobson
Foto de David McLain

A imagem de um soldado avulta sobre contingentes militares que ensaiam para o desfile do Dia da Pátria.

Se você quer fazer um cingapuriano interromper sua adorada refeição de cabeça de peixe ao curry ou que um estressado chofer de táxi enfie o pé no breque, basta dizer que você vai entrevistar o "Ministro Mentor" do país, Lee Kuan Yew, e pedir sugestões sobre o que perguntar ao homem. "O MM? Wah lau! Você vai ver o MM?" MM ou LKY, como ele é conhecido em um país maníaco por siglas, é mais que o "pai da nação".

LKY é seu inventor, como se houvesse formulado cientificamente um país juntando porções exatas da República de Platão, do elitismo anglófilo, de um infatigável pragmatismo econômico e de uma repressiva e antiquada mão de ferro.

As pessoas gostam de chamar Cingapura de Suíça do Sudeste Asiático, e quem poderia contestá-las? Essa ilhota situada na ponta da península Malaia conquistou sua independência da Grã-Bretanha em 1963 para, em apenas uma geração, se transformar em um lugar de legendária eficiência, em que a renda per capita de seus 3,7 milhões de cidadãos ultrapassa a de muitos países europeus. Os sistemas de educação e saúde locais rivalizam com os de qualquer país ocidental, e o aparato governamental se acha, em grande medida, livre de corrupção. Cerca de 90% dos lares são casa própria, os impostos são relativamente baixos e as ruas e calçadas são impecáveis, sem mendigos ou favelas à vista.

Se tudo isso, mais uma taxa de desemprego em torno de 3% e uma pilha de dinheiro dos cidadãos guardada no banco graças ao plano oficial de poupança compulsória, não soa como música a seus ouvidos, experimente viajar 950 quilômetros ao sul e tente se virar num favelão de Jacarta, capital da vizinha Indonésia.

Atingir tal estágio demandou delicado e contraditório equilíbrio entre incentivo e punição ou, como os cingapurianos costumam dizer, entre "o longo porrete e a grande cenoura". O que causa admiração, em primeiro lugar, é a cenoura: um vertiginoso crescimento financeiro a sustentar o consumo e o setor imobiliário. O lado B disso é o longo porrete, em geral simbolizado pela infame proibição do chiclete e a aplicação de surras de vara em pichadores. E quanto a situações conturbadoras, como tensões religiosas ou raciais? Elas simplesmente não são permitidas. E mais: ninguém bate a carteira de ninguém.

Cingapura, talvez mais que qualquer outro lugar no mundo, enseja uma questão fundamental: prosperidade e segurança sim, mas a que preço? Será que para obtê-las vale a pena viver em um ambiente que, aos olhos de muita gente, é uma sociedade de proveta, baseada na labuta incessante, numa briga de foice entre workaholics, em que o partido que se autoperpetua no poder impõe leis draconianas (o cartão de entrada ao aeroporto local, por exemplo, informa, em letras vermelhas, que a pena para o tráfico de drogas é simplesmente a "MORTE") e reprime a liberdade de imprensa, oferecendo um nível questionável de transparência financeira?

Dizem que Lee Kuan Yew abrandou com o passar dos anos. Mas, quando ele chega envergando um blusão azul de zíper e um cenho franzido, com pinta de Clint Eastwood em Gran Torino, você percebe que ele não está lá para brincadeiras. Embora não estejam bem claras as funções de um "Ministro Mentor", é difícil encontrar quem não acredite que o Velho ainda é o mandachuva no pedaço. Ao saber que a maioria das perguntas saiu da boca de cingapurianos, MM, de 86 anos, afiado e prático como um canivete suíço, abre seu sorriso "deixa comigo" e diz: "Na minha idade, já me jogaram muito ovo".

Poucos líderes ainda vivos - Fidel Castro, em Cuba, Nelson Mandela, na África do Sul, e Robert Mugabe, no Zimbábue, me vêm à mente - dominaram a crônica histórica de seus países do mesmo jeito que Lee Kuan Yew. Nascido em uma família chinesa abastada, em 1923, sob a profunda influência tanto da sociedade colonial britânica quanto da brutal ocupação japonesa que chacinou algo como 50 mil pessoas na ilha na década de 1940, o outrora chamado "Harry Lee", com seu diploma de Cambridge na mão, começou assumindo proeminência como líder de um movimento anticolonial de tendências esquerdistas nos anos 1950. Vendo se solidificar seu poder pessoal com a ascensão do Partido da Ação Popular, LKY tornou-se o primeiro-ministro inaugural da ilha, posto que ocupou por 26 anos. Depois, foi ministro sênior por mais 15 anos. Seu atual status de Ministro Mentor foi-lhe atribuído quando seu filho, Lee Hsien Loong, assumiu o cargo de primeiro-ministro em 2004.

No início de seu governo, LKY concebeu o celebrado "modelo de Cingapura", que converteu um país de 697 quilômetros quadrados (cerca de 3% da área de Sergipe, o menor estado brasileiro), sem recursos naturais e com uma miscelânea de etnias, numa espécie de "Cingapura S/A". Ao construir uma infraestrutura de transportes e comunicações, atraiu investimentos estrangeiros, ao mesmo tempo que estabelecia o inglês como língua oficial e criava um governo eficiente, com administradores recebendo salários equivalentes aos das empresas privadas. LKY também caiu de pau na corrupção, até extingui-la. Esse modelo - mistura singular de estímulo econômico e estrito controle das liberdades pessoais - inspirou imitações na China, na Rússia e na Europa.

Para liderar uma sociedade, diz LKY em seu inglês vitoriano, "é preciso entender a natureza humana. Sempre achei que a humanidade parecia o mundo animal. A teoria de Confúcio reza que o homem pode ser aperfeiçoado, mas não tenho certeza. O que ele pode é ser disciplinado".

Em Cingapura, isso se traduziu em leis que proíbem jogar lixo e cuspir nas ruas e deixar de dar a descarga nos toaletes públicos, com multas e denúncias nos jornais contra os infratores. Significou também educar o povo, industrioso por natureza, convertendo lojistas em trabalhadores high-tech no espaço de poucas décadas.

Com o tempo, diz o MM, os cingapurianos tornaram-se "menos empenhados, menos obcecados pelo trabalho". Por essa razão, foi uma boa ideia, segundo ele, acolher no país tantos chineses (25% da população atual nasceu no estrangeiro). Ele está ciente de que muitos cingapurianos se mostram descontentes com o afluxo de imigrantes, sobretudo os mais graduados que vêm disputar os empregos mais bem remunerados. No entanto, ele descreve os novos súditos da nação como "famintos por sucesso", com pais que "estimulam ao máximo seus filhos". Se os cidadãos nativos estão ficando para trás é porque "não estão dando no couro" - eis o problema.

Se existe uma palavra para sintetizar a condição existencial de Cingapura, ela é kiasu, termo chinês que significa "medo de perder". Em uma sociedade que começa a monitorar seus estudantes desde os 10 anos de idade, agrupando-os pelos resultados de testes ("especial" e "expresso" estão no topo da lista; "normal" designa aqueles que seguirão como mão de obra para as fábricas e o setor de serviços), o kiasu é internalizado desde cedo, germinando sob a forma de brilhantes alunos de engenharia e de arranha-céus fálicos com uma loja da Bulgari no térreo.

Os cingapurianos são craques em obter o primeiro lugar em tudo, mas, em um mundo regido pelo kiasu, ganhar nunca traz plenitude, pois é uma experiência que carrega com ela o pavor de parar de ganhar. Quando o porto de Cingapura, com o maior tráfego de contêineres no mundo, ficou atrás de Xangai, em 2005, em tonelagem total de carga, foi uma calamidade nacional.

Em um ensaio para as comemorações do Dia da Pátria, presenciei uma espantosa celebração dos valores antifracasso. As Forças Armadas de Cingapura encenaram uma operação para subjugar uma camarilha de terroristas que havia fuzilado meia dúzia de criancinhas em trajes vermelhos de ginasta e portando flores, abandonando-as "mortas" no palco. "Não somos a Coreia do Norte, mas bem que tentamos", diz um observador ao comentar o desfile de tanques, helicópteros Apache e salvas de 21 tiros de canhão. Em todo lugar você ouve alguém dizer que o único jeito de Cingapura sobreviver, rodeada como está de vizinhos peso pesados, é manter-se em constante vigilância. O orçamento militar de 2009 foi de 11,4 bilhões de dólares - 5% do PIB do país, uma das maiores taxas mundiais.

Você nunca sabe de onde virá a ameaça ou que forma ela assumirá. No verão passado todo mundo entrou em pânico por causa da gripe suína. Inspetores usando máscara se posicionaram pela cidade. Num sábado à noite, não havia jeito de entrar em uma das boates do Clarke Quay, o reurbanizado cais do rio Cingapura, sem que uma hostess pressionasse uma pistola-termômetro contra a sua testa. Isso fazia parte do interminável estado de sítio cingapuriano. Muitos dos novos conjuntos habitacionais dispõem de um abrigo antibomba completo, inclusive com porta de aço. Depois de algum tempo, a percepção do perigo e a complacência com as regras são internalizadas pelas pessoas. Uma das coisas que você menos vê em Cingapura é polícia. "O tira está dentro da nossa cabeça", afirma um morador.

A autocensura é feroz. Lidar com os poderes constituídos é "uma dança", comenta Alvin Tan, diretor artístico do Necessary Stage, grupo teatral sem fins lucrativos que já encenou várias peças que abordam temas sensíveis, como pena de morte e sexualidade. Tan gasta muito tempo com os censores do governo. "Você precisa se valer de uma abordagem apropriada", diz. "Se eles dizem ‘sul’, você não deve dizer ‘norte’. Você diz ‘nordeste’. Comece por aí. É uma negociação."

Aqueles que não dançam conforme a música logo se tocam do que está acontecendo. Veja o caso de Siew Kum Hong, um cingapuriano de 35 anos que imaginava estar servindo à causa da liberdade ao assumir o cargo de MNP - ou Membro Nomeado do Parlamento. Com apenas quatro parlamentares de oposição eleitos na história do país, o partido no poder achou que os MNPs emprestariam ao sistema político uma aparência de "estilo mais consensual de governo, em que os pontos de vista são ouvidos, e as dissensões construtivas, acomodadas." Era assim, conta Siew Kum Hong, que ele encarava seu cargo, antes de ser preterido em um novo mandato.

"Eu imaginava estar fazendo um bom trabalho", diz Hong. Mas, quando ele deu seu primeiro voto negativo, relativo a uma resolução que lhe parecia discriminativa contra os gays, seus colegas "permaneceram em absoluto silêncio. Era a primeira vez, desde que entrei para o Parlamento, que alguém votava pelo ‘não’." Quando ele votou negativo pela segunda vez, para uma lei diminuindo o número de pessoas que poderiam se reunir para um protesto, a reação foi igualmente fria. "É assim que eles encaram os pontos de vista alternativos", conclui Hong.

O governo de cingapura não se mostra indiferente às desvantagens de ter uma sociedade sob intenso controle. O Estado empreendeu uma campanha contra a grande conquista linguística de Cingapura, o singlish, um patuá multiculturalista que fusiona malaio, chinês hokkien (falado fora da China por todo o Sudeste Asiático), tâmil e o inglês rueiro. Para quem se senta em um Starbucks e ouve os adolescentes dizendo coisas como "You blur like sotong, lah!" (algo como "Você é mais tonto que uma lula, cara!"), o singlish soa como um veemente ataque subversivo ao espírito de conformidade que o governo tenta superar. Por outro lado, uma das maiores contradições do singlish é a irônica clonagem que ele faz da popularesca e cafona cultura "Ah Beng", trazida pelos imigrantes chineses e seus equivalentes malaios envergando óculos escuros. Logo se vê que isso não tem futuro num ambiente em que o MM vem advogando o "acasalamento seletivo", a ideia de que os universitários deveriam se casar apenas com outros colegas universitários, de maneira a elevar o nível da população.

Talvez o problema mais inquietante com o qual o país se defronta derive de seu programa de controle populacional, de flagrante sucesso, que nos anos 1970 adotou o slogan "Dois é o bastante". Hoje em dia os cingapurianos simplesmente não estão mais se reproduzindo, e a nação depende dos imigrantes para manter a população em crescimento. O governo oferece bônus atrelados aos nascimentos, além de longa licença-maternidade. Mas nada disso vai ajudar muito se os cingapurianos não começarem a fazer mais sexo. Segundo pesquisa encomendada por uma fábrica de preservativos, os habitantes de Cingapura têm menos relações sexuais que qualquer outro povo da Terra. "Nossa população está encolhendo", diz o MM. "Nossa taxa de fertilidade é de 1,29. Esse é um fator preocupante." E poderia ser o erro fatal do modelo de Cingapura: a eventual extinção dos cingapurianos.

Há, contudo, um aspecto positivo nessa engenharia social. Dava para sentir isso durante a produção das atrações no estilo "We are the World" para o show no Dia da Pátria. No palco havia representantes dos grupos étnicos majoritários de Cingapura, chineses, malaios e indianos, todos envergando vestes coloridas. Depois da onda de distúrbios nos anos 1960, o governo instalou um estrito sistema de cotas nos conjuntos habitacionais, de modo a assegurar que os grupos étnicos não viessem a criar seus próprios bairros monolíticos. Tal prática pode ter mais a ver com controle social que com verdadeira harmonia multirracial, mas, durante os ensaios, era difícil deixar de se comover diante do esforçado show de fraternidade. Apesar de toda a artificialidade, existe algo no país que pode ser chamado de cingapuriano para valer. O povo vive reclamando, mas Cingapura é a terra deles e todos a amam, a despeito das mazelas. Isso faz com que você também goste do lugar.

A grande questão é que as coisas estão a ponto de mudar. "Todos sabemos que o MM vai morrer um dia", comenta Calvin Fones, psiquiatra que presta atendimento em uma clínica no Hospital Gleneagles. Fones compara sua pátria a uma família. "Quando o país era jovem, havia a necessidade de supervisão - de mão firme. Agora chegamos à adolescência, que pode ser um período de questionamentos e agitações. Atravessá-lo sem a presença do patriarca será um teste."

O grande motor da mudança cultural, com certeza, é a internet, essa mosca cibernética que posou na sopa autoritária. Lee Kuan Yew reconhece a ameaça. "Banimos a Playboy nos anos 1960, e ela ainda se encontra banida. Mas agora, com a internet, você tem acesso a muito mais." Tentar uma censura à internet, como tem sido feito na China, não teria sentido, afirma LKY, demonstrando peculiar pragmatismo.

Assim, os blogueiros, como o satírico Mr. Brown e o combativo Yawning Bread (Pão Amanhecido), estão liberados para divulgar opiniões que não se encontram nas páginas do jornal pró-governamental Straits Times. Como resultado, os jovens começam a demandar mais liberdade política e menos controles sociais.

Cingapura pode ser um lugar desconcertante, mesmo para os que a chamam de lar, embora ninguém pense em deixá-la. Como diz um morador, "Cingapura é como um banho quente. Você afunda n’água, corta seus pulsos, vê sua vida se escoar em sangue, mas, tudo bem, a água está quentinha". Se for esse o caso, a maioria dos cingapurianos se imagina mergulhando em banheiras enquanto saboreiam caranguejos na pimenta com uns pasteizinhos de frango ao curry para acompanhar. Comer é o verdadeiro passatempo, o refúgio da nação. Digo por mim mesmo: quanto mais me demorava ali, mais eu comia. Chegou a um ponto em que, depois de ficar 20 minutos em uma fila para conseguir saborear um prato no estande da Tian Tian, no Maxwell Road Food Center, apinhado de gente, me vi entrando de novo na fila.

Em meu último dia ali, subi a colina da Reserva Natural de Bukit Timah, próxima ao centro da cidade, o ponto mais elevado da ilha, com seus 163 metros de altura, e o lugar mais parecido com a selva que ela foi um dia. Na inesperada quietude do lugar, lembrei-me do que o MM havia dito sobre a crença confuciana de que "o homem pode ser aperfeiçoado". Isso, dissera o velho ministro depois de exalar um suspiro, não passava de um jeito otimista de encarar a vida. Porque, de fato, as pessoas abusam da liberdade.

Essa é a pinimba que ele tem com os Estados Unidos: os direitos dos indivíduos de fazer o que bem entendem permitem que eles se comportem mal às expensas de uma sociedade ordeira. Como se diz em Cingapura, de que valem todos esses direitos se dá medo de sair à noite?

Quando cheguei ao topo da colina, eu achava que seria recompensado com uma visão panorâmica de toda a cidade-Estado. Mas não havia vista nenhuma - só uma torre de comunicações enferrujada e uma cerca anticiclones, na qual um aviso numa placa alertava "Lugar protegido", perto de um desenho de tipo infantil que mostrava um soldado a apontar um fuzil para um homem com os braços erguidos.

Mais tarde, mencionei esse desenho a Calvin Fones, o psiquiatra. "Veja, isso demonstra o progresso que fizemos", diz ele. "Até alguns anos atrás, o mesmo aviso exibia um cara prostrado no chão, já fuzilado." Em seguida, como bom cingapuriano vivendo uma vida que não imaginava possível em nenhum outro lugar, ele riu.

National Geographic Brasil

Um projeto para a Amazônia

Um projeto para a Amazônia
Entrevista com a geógrafa Bertha Becker, que há 30 anos percorre todos os estados da região.
Por Maurício Barros de Castro
Foto de Eduardo Monteiro
Bertha Becker: incisiva em suas opiniões ao sugerir a economia como solução essencial para a preservação da Amazônia.


Pela janela do apartamento da geógrafa Bertha Becker, na avenida Atlântica, zona sul da cidade do Rio de Janeiro, a imensidão azul do mar de Copacabana escorre pelo horizonte como um tapete sem fim. A vista descansa os olhos, mas se engana quem pensa que é com o olhar no mar que Bertha faz suas análises sobre a Amazônia. Há 30 anos, a pesquisadora percorre todos os estados da região, e é em campo que aprimora uma visão única do que está ocorrendo na floresta, do processo de ocupação e devastação.

Bertha é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutora honoris causa pela Universidade de Lyon III, na França, e integrante da Academia Brasileira de Ciências. Difere de muitos intelectuais, por ser incisiva em suas opiniões ao sugerir a economia como solução essencial para a preservação. Aos 72 anos, lançou recentemente, ao lado de Claudio Stenner, o livro Um Futuro para a Amazônia. "A proposta é abrir a cabeça dos jovens, despertar neles o interesse pela região com foco na ciência e na tecnologia", diz ela.

Como aliar preservação ambiental com qualidade de vida das populações locais e ainda desenvolver a Amazônia?
A região tem imensa riqueza de patrimônio natural, mas ela precisa ser tratada com cuidado. Por exemplo, o Brasil necessita da energia gerada por hidrelétricas, que é renovável e limpa, e o país possui enorme quantidade de água. Porém, as hidrelétricas não podem ser construídas como no passado. A Amazônia é uma região sofisticada em termos de natureza, e temos de cuidar dela com a mesma sofisticação. Assim, existem tecnologias avançadas para evitar que as usinas tenham desníveis de barragem muito altos, inundem áreas de grande extensão. Mas o principal, sobretudo, é que a Amazônia não pode mais ser vista como o almoxarifado de recursos naturais de outras regiões do Brasil. No projeto de hidrelétricas, deve haver um planejamento integrado com atividades que gerem benefícios locais A mesma coisa deve acontecer com relação às unidades de conservação, que devem ter manejo adequado para criar cadeias produtivas de cosméticos e fármacos que gerem emprego e renda para a população local. O potencial na Amazônia é fantástico, mas nunca é aproveitado.

Como aproveitar esse potencial de forma a ser transformado em desenvolvimento econômico local?
A Amazônia é sempre utilizada para extrair recursos e manda-los para fora, como se fosse um almoxarifado sem fim. Nada sobra para a região. A posição que defendo é que se implante outro modelo de exploração do patrimônio natural, uma nova perspectiva que tenha como base a ciência e a tecnologia. O que sempre ocorreu historicamente foi a exportação de recursos naturais, sem agregação de valor. Primeiro, para o mercado europeu. Depois, para o americano, como o que houve com a borracha. Isso não cabe mais no século 21. Mas o problema é que a região ainda vive a forma de produção do século 19, em que companhias de mineração queimam a mata para fazer carvão. Precisamos de empresas modernas, de tecnologias avançadas e de grandes investimentos. Mas sempre articulados com a questão ambiental e, sobretudo, social. Existem mais de 20 milhões de pessoas que moram lá e vivem mal, porque os recursos são sempre explorados de forma a mandar as riquezas para fora da região onde é produzida.

É um desafio atribuir valor aos recursos naturais e ao mesmo tempo preservá-los. Como isso é possível?
Existem múltiplas formas de agregar valor aos recursos naturais. O mundo já está mudando, no sentido de sair da "indústria fordista" - megaindústria, megafábricas - para outras mais flexíveis, que utilizem recursos de forma mais eficiente, sem desperdício. Esse é o verdadeiro desenvolvimento sustentável - e não deixar a Amazônia fechada, sem mobilizar seus recursos, como muita gente defende. A questão é moldar novo modelo de desenvolvimento em que ciência e tecnologia definam modos adequados de uso, sem destruição, com distribuição equitativa da riqueza gerada no próprio local.

Como a produção pode contribuir para a preservação?
A Amazônia não entrou na fase fordista de desenvolvimento que afetou São Paulo e o Sudeste do Brasil. Ela ficou à margem desse processo, foi atingida pelas beiradas, pela expansão da fronteira. Podemos, então, implantar uma indústria madeireira moderna, que não explore a madeira apenas para queimá-la ou exporte toras em estado bruto, sem valor agregado. É possível organizar uma indústria decente? Sim, e madeira é o recurso mais ostensivo da floresta. Outro ponto é a biodiversidade. O Brasil tem problema sério de saúde pública, e o potencial em biodiversidade é imenso. A floresta possui muitas espécies que podem ser utilizadas para fármacos. No momento servem para produção de cosméticos, óleos essenciais, xampu. Nós temos um mercado doméstico de saúde pública que é carente. Outro potencial é a pesca. A riqueza de peixes é inigualável, e possuem um sabor maravilhoso. Mas não existe cadeia produtiva organizada de pesca, apenas iniciativas embrionárias e dispersas.

De que forma é possível organizar a cadeia produtiva para que os produtos da floresta cheguem aos centros urbanos?
A Amazônia tem poucas cadeias produtivas organizadas. O que se produz efetivamente lá é uma quantidade mínima. O nosso modelo de desenvolvimento sempre foi monopolista - na riqueza, na produção e no acesso ao mercado. A circulação fluvial não é organizada com o objetivo de desenvolver a região. A cadeia produtiva sempre foi voltada à exportação. Nunca se deu atenção para beneficiar o povo. É preciso organizar a cadeia de produção desde o âmago da floresta, envolvendo as populações locais, até os setores que oferecem os serviços. Os empresários se interessam muito mais em exportar o produto, sem agregar valor ao local, e isso nunca gerou desenvolvimento. Organizar a cadeia produtiva é tarefa que exige serviços especializados e indústria. Daí vem a minha segunda tese: há que se fortalecer as cidades da Amazônia, porque é lá que se concentram serviços, indústria e comércio. O município tem de ser o nó da cadeia produtiva em que os produtos da floresta são processados e comercializados. Isso não apenas em Manaus e Belém mas em cidades médias. Os serviços são um dos fatores-chave do desenvolvimento da Amazônia.

Quais tipos de serviço podem ser fomentados?
Aqueles que atendam às necessidades básicas de educação e saúde e sirvam para processar a produção. E também têm de existir serviços avançados especializados, de alto valor agregado - jurídico, gestão, produção de conhecimento, contabilidade, marketing. Na Amazônia, eles têm de dar conta do grande potencial que é o capital natural: os serviços ambientais. Antes se valorizava apenas o estoque de recursos dos ecossistemas: ferro, madeira. Hoje já se atribui valor às funções da natureza. Essa é uma mudança qualitativa: a natureza é transformada em capital natural e oferece múltiplos meios de produção. Um exemplo é o mercado de carbono, que está a pleno vapor e que é essencialmente de serviço ambiental. Temos novo e imenso potencial na transformação da natureza em capital natural. Mas é preciso ter ciência e tecnologia.

Como fazer com que esses serviços sejam prestados nas próprias cidades amazônicas e não no exterior?
Eu sugiro transformar Manaus numa cidade mundial, com base na organização da prestação de serviços ambientais. Isso é uma bomba. Uma hipótese e sugestão únicas. Mas, para tanto, é preciso rechear as cidades na Amazônia de conhecimento científico e tecnológico ligados ao meio ambiente, como advogados que entendam da questão ambiental. Eu proponho uma bolsa de valores em Manaus para negociar o carbono de serviço ambiental. Por que tem de ser em Chicago ou na Europa? Essas informações fazem parte da minha pesquisa atual, e que estou encaminhando ao governo federal.

Problemas básicos, como o caos fundiário, ainda não foram resolvidos. Doar títulos pode ser uma solução?
Eu acho que é preciso encarar de frente esse problema de falta de títulos de terra e resolver a questão fundiária de uma vez por todas. Vivemos numa sociedade capitalista; se não existir defesa da propriedade, sempre ficará a sensação de que é possível avançar sobre terras alheias. Mas não acho que as áreas desmatadas devam ter a mesma regulamentação fundiária que os locais de floresta densa. Nesse caso, penso que não se deveria simplesmente fornecer títulos definitivos de terra, sem custo, para quem tem a posse. O melhor a fazer seria um sistema de concessões públicas a investimentos e projetos que atuem nessas áreas preservadas e contribuam para sua sustentabilidade.

A Amazônia é uma terra sem lei? Falta a presença do Estado?
Esse é um tema interessante, porque não se trata propriamente de ausência, e sim de omissão. Em alguns momentos o Estado é presente, mas omisso porque lhe interessa. É um jogo geopolítico de poder, uma ambiguidade. Faço muita pesquisa de campo e escuto a população reclamar da falta do Estado. Mas isso não significa dizer que ele está totalmente ausente. Em algumas áreas o Estado não está omisso, mas é tolerante e deixa passar situações que não deveria permitir. Já em outras ele está presente como dono das terras dos antigos territórios que se transformaram
em governos estaduais, como Tocantins e Amapá.

A senhora sempre vai a campo para suas pesquisas. O que tem observado com base nessa visão interna da região?
Sempre chamei a Amazônia de fronteira. Não apenas como limite territorial mas no sentido de ser fronteira com os mais novos acontecimentos globais. Lá é possível observar as tendências mais recentes em curso no mundo. As grandes transformações mundiais são mais fáceis de ser percebidas na Amazônia do que no Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, em que a complexidade da vida social, econômica e política é tão grande, entremeada de tantas informações, que é difícil captar algum rumo novo. Novidades que estão começando a acontecer no mundo podem ser sentidas logo lá. O local é ponta-de-lança de ideias inovadoras no que diz respeito às mudanças que o sistema capitalista está tomando, às tendências da economia mundial.

Além da diversidade ecológica, a Amazônia possui igualmente variedade de culturas tradicionais. Como é possível preservar essas culturas amazônicas no mundo contemporâneo?
É um enorme dilema. Temos a obrigação de preservar as culturas da Amazônia, o que não significa deixá-las isoladas. No caso dos índios, que conheço melhor, é preciso estabelecer um programa de atividades que permita obtenção de renda às comunidades para que elas possam preservar sua cultura. Sem formas de manter-se economicamente, nenhuma cultura sobreviverá.

National Geographic Brasil

domingo, 14 de março de 2010

O fim do oceanos


O fim do oceanos
Pescamos demais. Poluímos demais. Navegamos demais. E nem fazemos idéia do estrago que causamos nos mares
por Texto Claudia Carmello
Você nunca brincou de colocar uma concha no ouvido e ficar curtindo o barulho do mar, as ondas, a calmaria? Hoje seria bem mais realista colocar seu iPod no ouvido – e no volume máximo. Isso, sim, se aproxima do som que o oceano produz para boa parte das criaturas que vivem dentro dele. Um navio de carga emite, pelo estouro das bolhas que seus propulsores criam na água, ruídos de 150 a 195 decibéis. É mais do que uma britadeira (120 decibéis) ou um iPod no talo (114 decibéis). Imagine então o barulho produzido por 100 mil cargueiros que cruzam os mares durante o ano inteiro!

Qual o problema disso? É que os animais marinhos usam a audição para quase tudo – para encontrar o lugar de procriação, o parceiro sexual, a comida. E o mar virou uma linha cruzada dos diabos. Cientistas concluíram que a baleia-azul está ficando surda – escuta a distâncias até 90% menores do que antes. Já a orca está precisando gritar – produzir cantos mais longos para se fazer ouvir. Outras baleias aparecem mortas nas praias após testes militares com sonares caça-submarinos – seus 235 decibéis causam hemorragia nos ouvidos e nos olhos dos animais.

Os oceanos são 70% da superfície do planeta. Em volume, representam muito mais que isso. E sempre o vimos como uma vastidão infinita e onipotente. Mas não poderíamos estar mais enganados. Segundo a ONU, os mares estão em ruínas porque pescamos demais, produzimos lixo, gases do efeito estufa e esgoto demais e bagunçamos os ecossistemas. Pior: nem fazemos idéia do que está acontecendo lá embaixo em conseqüência disso. Ultimamente, aprendemos a pensar que o oceano está trasbordando de tanta água. Mas está acontecendo o contrário: ele está esvaziando, perdendo vida.

O mar não está para peixe

A pesca indiscriminada fez sumir 90% dos peixes grandes e mudou a dieta humana.

O atum-azul não é um peixe qualquer. É o peixe. Primeiro, porque ele tem sangue quente, o que lhe permite cruzar os mares do Ártico aos trópicos. Sua arrancada ao caçar ou fugir é mais potente que a de um Porsche. Um atum-azul pode pesar o mesmo que um cavalo (500 quilos) e render 10 mil cortes do sashimi mais suculento e caro do mundo. É por isso que, enquanto cardumes deles nadam pelo Mediterrâneo, superpesqueiros rondam à sua caça, com a ajuda de sonares e de aviões localizadores. O navio que chegar primeiro e fechar a rede de cerco em volta dos bichos leva o prêmio. E leva para o Japão, país que captura 25% dos atuns-azuis dos oceanos. No maior mercadão de peixes do planeta, o Tsukiji, em Tóquio, um desses peixes é leiloado por até US$ 25 mil. Os que são pescados pequenos ficam enjaulados em fazendas de engorda nas costas de países como Espanha, Itália e Turquia. Passam meses sendo alimentados com peixes gordurosos e depois são abatidos a tiros – isso mesmo, a tiros. Então seguem seu caminho rumo ao desaparecimento e às mesas dos aficionados por sushis. (Um detalhe para você se tranqüilizar um pouco: o atum que comemos no Brasil não é dessa espécie.)

A saga do atum-azul começou na década de 1990, depois que a flotilha japonesa reduziu os estoques do Pacífico a 6% da população original. Em 10 anos de pesca no Mediterrâneo, já o levamos ao risco de extinção. Como pudemos ser tão eficientes em dizimá-lo? Basicamente, lançamos mais de 1 500 navios pesqueiros high tech ao mar, sacamos dali 3 vezes mais atuns do que o limite para que a espécie se recomponha e turbinamos tudo isso com subsídios da União Européia. Empresas gigantes do setor, da Espanha, da França e do Japão, dividem um mercado que movimenta US$ 400 milhões ao ano. Na Itália, até a máfia se meteu na caça ao atum. Ela ajuda a colocar aviões localizadores clandestinos nos ares da Líbia e da Argélia em junho, quando a pesca está proibida para dar alguma chance às fêmeas em período reprodutivo.

A má notícia é que a trajetória do atum não é única. Já estamos repetindo essa lógica há mais de um século nos oceanos, e com muito mais tecnologia nos últimos 50 anos. Em Grand Banks, a leste do Canadá, reduzimos o bacalhau do tipo cod a 1% da população original. O blue skate, uma arraia que figura no fish’n’chips, prato típico inglês, sumiu do mar do Norte. O alabote do Atlântico entrou em colapso ainda no século 19. E do esturjão do mar Cáspio – cujas ovas são o caríssimo caviar – só sobraram 10%. Nossa indústria hoje, quando entra em uma nova área de exploração, tem bala para arrasar uma espécie comercial em 10 ou 15 anos. Nesse ritmo, podemos chegar ao colapso de todas as áreas de pesca do planeta em 2048 (hoje, já inutilizamos ou pescamos além do sustentável em 76% dessas regiões – no Brasil, sobe para 80%, segundo relatório recente do Greenpeace).

Essas projeções são parte dos estudos estatísticos de uma década de Boris Worm, professor de conservação marinha da Universidade de Dalhousie, no Canadá. Junto com outros cientistas, ele estimou que, das populações de grandes peixes que nadavam em nossos mares em 1900, podem ter sobrado só 10%. O pesquisador Callum Roberts, da Universidade de York, na Inglaterra, autor do livro The Unnatural History of the Sea (“A História Não Natural do Mar”, sem edição em português), alerta para outro problema grave: estima-se que um quarto a um terço de criaturas marinhas seja capturado acidentalmente a cada pesca de arrasto e jogado de volta ao mar, já morto ou morrendo. A ONU vem tentando, sem sucesso, tornar o arrasto ilegal em alto-mar. “O arrasto é um meio muito rentável de pegar peixes, camarões, lagostas. Duvido que ele vá acabar”, diz Worm.

O que também não deve acabar é outra burrada na gestão de nossos recursos marítimos, a pesca fantasma. Quando uma rede é perdida no mar, ela continua pescando sozinha, só que para ninguém comer. Vai afundando e carregando peixes e crustáceos, até ficar cheia e aterrissar no fundo. “Alguns jogam bolas de redes velhas ao mar para atrair atuns e não recolhem de volta”, diz o cientista Charles Moore, criador da Fundação Algalita de Pesquisa Marinha, instituto californiano que se dedica a medir os impactos do lixo plástico nos oceanos. “As redes fantasmas matam 100 mil mamíferos marinhos por ano só no Pacífico Norte”, afirma Moore.

Se desgraça pouca é bobagem, o que podemos esperar de impactos no dia-a-dia? No mínimo, uma mudança de dieta. Você já comeu água-viva? Bem, talvez daqui a 50 anos você se acostume com a idéia. No passado, os ocea­nos eram dominados por batalhões de tubarões, bacalhaus e peixes-espada – predadores que comiam peixes menores e que estão sendo dizimados. Com isso, muitos ecossistemas tiveram um boom desses peixinhos que eram suas presas, e também de invertebrados, criaturas filtradoras e comedoras de plâncton. São elas que estamos pescando mais hoje, segundo Daniel Pauly, cientista da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. Depois de estudar as estatísticas de pesca entre 1950 e 1994, Pauly publicou um artigo-bomba em que afirma: “Estamos comendo hoje o que nossos avós usavam como isca”. Ele previu que, nesse ritmo, acabaríamos almoçando águas-vivas e jantando plâncton.

Sopão de plástico

O mar virou a grande lixeira do planeta. Para sumir com todo o lixo, só comendo.

Imagine um prato de sopa à sua frente, daqueles caldos cheios de pedacinhos de legumes diferentes. Só que para cada pedaço de legume boiando há outros 6 pedaços de plástico. Você seria capaz de comer tudo sem mandar para dentro ao menos uma bolinha de plástico-bolha? O albatroz e a tartaruga-marinha, que se alimentam de moluscos, medusas e algas no grande sopão dos oceanos do mundo, não conseguem. Comem os alimentos e engolem junto o lixo sólido que flutua no mar. O mais comum é morrerem de desnutrição, com o estômago que, de tão entulhado, fica incapaz de ingerir ou absorver nutrientes.

A cena de uma necropsia no estômago de um albatroz mostrada num vídeo do YouTube é tão contundente que já devia ter virado campanha anti-saquinho de supermercado. Com o bisturi, a bióloga cutuca e tira de dentro do bicho duas mãos cheias de lixo: 5 tampinhas de garrafa, 1 caneta, 1 pedaço de tela e até 1 escova de roupa! São os chamados entulhos marinhos, pedaços de lixos sólidos levados pelas correntes desde a Antártida até a Groenlândia e que vitimaram até agora 267 espécies da fauna marinha, segundo o Greenpeace. Em todo o mar, 60 a 80% desse lixo é plástico. E essa sopa com 6 nacos de sujeira para cada 1 de legume – quer dizer, de zooplâncton – existe de verdade num canto do planeta.

Ela é feita de 3,5 milhões de toneladas de lixo sólido, que se espalha por uma área pouco maior que o estado de Minas Gerais, a meio caminho entre a Califórnia e o Havaí. É o chamado Grande Lixão do Pacífico. Não, ninguém teve a insanidade de despejar conscientemente o entulho lá. Foram as próprias correntes marinhas que carregaram tudo para um tipo de redemoinho, os vórtices, onde eles ficam presos e se concentram cada vez mais. Esses vórtices existem em vários lugares dos oceanos. Mas nenhum é tão entulhado quanto o Grande Lixão.

A descoberta dele, em 1997, pelo cientista Charles Moore, levou os ecologistas a fazer campanhas mais agressivas contra a poluição plástica, em comparação com outras grandes fontes poluidoras dos oceanos, como os vazamentos de petróleo e o despejo de esgoto e de fertilizantes. O problema do plástico é que ele não é biodegradável. Ou seja, a ação da natureza sobre ele não o quebra em elementos simples – como o papel, que se reduz a água e CO2 quando decomposto. Ele só é quebrado pela luz do Sol, muito lentamente (algo como 450 anos para uma garrafinha de água), em pedaços cada vez menores, mas sempre polímeros plásticos.

Ainda não estamos comendo plástico, como os albatrozes. Mas não podemos evitar a ingestão das toxinas do plástico. Um pedaço de plástico tem uma carga tóxica dezenas de milhares de vezes maior que a da água salgada onde bóia. Quando vários deles são ingeridos pelo zooplâncton, a carga suja nessas criaturas aumenta, assim como nos peixes que as comem, nas focas que comem peixes e no urso que come a foca. Estudos feitos na Noruega mostraram que um urso-polar pode ter no organismo contaminação 3 bilhões de vezes mais alta do que a água ao redor dele.

Por conclusões assim, a Suécia, em 1995, começou a recomendar que as mulheres em idade fértil limitassem o consumo de arenque e salmão do Báltico – e olha que arenque e salmão são o feijão com arroz deles. Análises químicas mostraram que eles estavam muito contaminados com substâncias chamadas disruptoras endócrinas. Em peixes, elas causam hermafroditismo. Em humanos, câncer, aumento da próstata e puberdade precoce, entre outros distúrbios.

E, se o oceano virou um enorme lixão, a culpa não é de como ocupamos o mar, mas do que fazemos na terra. O cálculo mais aceito é que 80% da poluição dos mares é produzida no continente. Do esgoto ao sapato largado no bueiro. “O oceano fica num nível mais baixo do que qualquer lugar no planeta. O entulho plástico não vem só da costa, mas dos estados do interior, do escoamento dos rios”, diz o cientista Charles Moore. “O oceano é o destino final de todo o nosso lixo.”

Passageiros clandestinos

Os porões de 100 mil navios cargueiros são uma ameaça à biodiversidade.

O tráfego naval é outro fator que está levando a biodiversidade marinha à ruína. Noventa por cento das mercadorias comercializadas entre os países são transportadas por navios. A frota mundial de cargueiros chega a quase 100 mil. Para os nossos padrões rodoviários, até que não é muito: é um quinto dos carros que deixam São Paulo rumo ao litoral num feriado prolongado. Além disso, os grandes cargueiros não despejam na atmosfera nem metade do dióxido de carbono que os caminhões de nossas estradas. Mas, então, por que os navios são tão ruins? Porque seu impacto ambiental não se mede só pela poluição que ele gera mas pela quantidade de vida que carrega.

A flotilha de cargueiros do planeta transporta, além de seus contêineres, algo entre 7 mil e 10 mil espécies de criaturas marinhas todos os dias. Algumas viajam grudadas no casco, enquanto outras vão nadando nos 10 bilhões de toneladas de água de lastro levadas nos porões dos navios. Estima-se que, a cada 9 semanas, uma dessas espécies se instala de vez em um ecossistema novo. E se dá muito bem por lá – o que causa uma confusão dos infernos na comunidade local.

Uma das conseqüências dessas viagens clandestinas teriam sido as 10 mil mortes por cólera na América do Sul – os primeiros casos da doença aconteceram na região dos portos, e os vibriões podem ter viajado pela água de lastro vinda de áreas endêmicas. Nos EUA, o problema é o mexilhão-zebra, originário de lagos da Rússia e que infestou 40% das vias navegáveis internas do país. O bicho se reproduz vertiginosamente e se incrusta em tudo o que é superfície dura – de cabos de internet submersos a pontes –, contamina tubulações de água potável e entope filtros dos sistemas de arrefecimento industriais. E gerou gastos com medidas de controle de até US$ 1 bilhão entre 1989 e 2000. Os animais marinhos também sofrem: no mar Negro, a água-viva filtradora Mnemiopsis leidyi se espalhou assustadoramente, comendo os estoques de plâncton e matando de fome crustáceos e peixes.

Você deve estar se perguntando por que os navios precisam carregar essas criaturas. Funciona assim: quando um cargueiro sai vazio ou meio cheio do porto, ele tem que armazenar água do mar em tanques, para ter a mesma estabilidade (o chamado lastro) de quando está com carga completa. Chegando ao porto de destino, ele esvazia os tanques enquanto carrega as mercadorias. E essa água vem misturada a areia, pedras, mexilhões, plâncton, peixes, bactérias, vírus. Toda a turma cabe lá dentro porque quase toda espécie marinha tem em seu ciclo de vida uma fase planctônica, em que é minúscula.

Em 2004, uma convenção internacional da Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês) estabeleceu parâmetros de gerenciamento das águas de lastro para cargueiros. Apesar de ainda não ter entrado em vigor, já induziu leis nacionais, como no Brasil, a exigir a troca da água de lastro em alto-mar (evitando a invasão nas regiões costeiras). Sistemas de filtração conseguem impedir a entrada de organismos maiores nos tanques de lastro, alguns tratamentos de aquecimento da água ou supersaturação de gás podem matar boa parte dos organismos ali dentro – mas não vírus, bactérias e protozoários. Enfim, não existe um método totalmente eficaz de eliminação dos invasores. E nem há o que fazer contra mexilhões e larvas que se prendem ao casco dos barcos.

Enquanto isso, a indústria naval promete dobrar sua frota até 2025. Os navios vão promover uma globalização que vai além de uniformizar as marcas nas prateleiras dos supermercados: a globalização dos ecossistemas submersos.

Um cemitério de corais

A cada ano, os oceanos ganham um deserto do tamanho do estado do Texas.

Na nossa cabeça, algumas convicções parecem sagradas: desertos são secos, recifes de corais são coloridos e ostras têm casca grossa. Pois no mundo de ponta-cabeça das mudanças climáticas, alguns conceitos precisam ser revistos. O primeiro contra-senso nada tem a ver com o clima, é apenas ignorância nossa mesmo. É que o oceano sempre teve os seus desertos. São 5, todos em alto-mar – o maior deles no Pacífico Sul. Assim como na terra, são lugares de pouquíssima fotossíntese, quase sem fitoplâncton, e que por isso não abrigam muita vida. O problema é que o mundo está ganhando cada vez mais desertos de água. Um estudo do oceanógrafo americano Jeff Polovina estimou que, em 10 anos, 6,6 milhões de km2 de área produtiva dos mares viraram desertos. Ele usou imagens de satélites que enxergam a “cor” do oceano (preto é o deserto, azul é mais produtivo e verde tem fitoplâncton abundante). E as manchas “pretas” se expandiram à velocidade de um estado do Texas por ano.

De quem é a culpa? De gases do efeito estufa. A água do mar está mais quente. Assim, “a ressurgência [fenômeno em que as águas frias e profundas, ricas em nutrientes, sobem à superfície] está diminuindo, porque é mais difícil para a água fria se misturar a águas superficiais, que são quentes e leves”, explica Jeremy Jackson, um dos mais influentes ecologistas marinhos da atualidade. Isso afeta o suprimento de nutrientes na superfície e mata o fitoplâncton.

A segunda informação supreendente é que a Grande Barreira de Corais australiana – aquela pirotecnia de cores e peixes e tartarugas-marinhas que é a única estrutura viva do planeta que pode ser vista do espaço – está ficando branca. Ou melhor, pálida. E não só ela mas todos os recifes de corais da Terra. De novo, a culpa é dos mares quentes. Eles fazem os corais sofrer, se contrair e começar a sufocar as algas que vivem em simbiose dentro deles – dando a sua cor e seu alimento. As algas então liberam toxinas para forçar o coral a expulsá-las. Então eles ficam brancos e doentes. Se a temperatura continua quente e há outros desequilíbrios ao redor, os corais morrem.

A terceira aberração é que as ostras, mexilhões e caranguejos podem começar a perder a sua concha. Ou tê-la mais quebradiça. Basicamente porque o oceano absorve de 30 a 50% do CO2 que jogamos na atmosfera, e isso reage com a água, formando ácido carbônico. Os mares estão mais ácidos. Já perderam 0,1 unidade do seu pH, que pode cair mais 0,5 até 2100, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Tanto ácido pode corroer a concha de ostras, mariscos e mexilhões. O plâncton calcário também vai sofrer, o que desequilibra cadeias alimentares inteiras – incluindo estoques pesqueiros. Por fim, o ácido deve seqüestrar os carbonatos da água, substâncias que são usadas pelos corais para calcificar seu esqueleto.

Recifes de corais são os sistemas mais vulneráveis ao exagero da emissão de carbono na atmosfera. Isso tem desesperado os cientistas. Corais estão para o mar como as florestas tropicais estão para a terra: são campeões de biodiversidade. Tais como as florestas, acredita-se que possam guardar tesouros em termos de substâncias potencialmente curadoras de doenças. Pelo menos dois remédios largamente utilizados por humanos – o AZT, coquetel contra o vírus da aids, e o Acyclovir, que combate o herpes – são derivados de componentes encontrados pela primeira vez em esponjas do mar. E a possibilidade de perder de vez essas riquezas antes mesmo de descobri-las não é pequena. “No Caribe, a cobertura viva de corais já caiu de uma média de 55% em 1977 para 5% em 2001, enquanto as macroalgas que os substituem aumentaram de 5 a 40%”, afirma Jackson. “Nas últimas décadas, a quantidade de corais vivos no mundo diminuiu entre um terço e mais de dois terços”, diz o ecologista marinho.

Enquanto não enxergarmos o que acontece nos oceanos, não vamos protegê-los. Dados da Organização Mundial do Turismo mostram que 80% do turismo mundial se concentra no litoral, sendo praias e recifes de corais nossos principais objetos de desejo. Talvez a esperada viagem de mergulho a Abrolhos ou a Fernando de Noronha seja a ficha que falta cair para percebermos que o ecossistema marinho tem um equilíbrio delicado. E que, enquanto bagunçamos todos esses ecossistemas e fazemos pesquisas para descobrir como reverter os estragos, os corais vão silenciosamente perdendo a cor. Os bacalhaus da região de Grand Banks, a leste do Canadá, no oceano Atlântico, não estão conseguindo regenerar sua população, mesmo com o fim da pesca comercial. Mais plástico se acumula no estômago dos albatrozes e as 175 espécies exóticas já instaladas na área que mais sofre com esse problema no mundo – a baía de São Francisco, nos EUA – causam prejuízos bilionários. O bom senso pede que tentemos salvar com urgência esse mundo invisível. Mas ele mostra que não veio com manual de conserto: ninguém sabe bem o que ainda está a tempo de ser salvo.

A próxima fronteira

• Conhecemos melhor o solo da Lua do que o fundo do mar, dizem os ecologistas. Nossa última fronteira são as águas profundas: entre 200 e 7 mil metros submarinos.

• Elas são 90% do volume dos oceanos e podem abrigar até 100 milhões de espécies – mais do que em todo o resto do planeta.

• A essa profundidade, não há luz para sustentar o fitoplâncton. Portanto, só animais e bactérias circulam.

• Até os 1 000 metros ainda há um lusco-fusco. Abaixo disso, a escuridão é total. Faz frio, de até 3 oC.

As fazendas marinhas

• Uma solução encontrada para amenizar o declínio dos estoques de pesca é a aqüicultura, as fazendas marinhas. São hoje o setor da indústria alimentícia que mais cresce no mundo.

• Bem manejadas, as fazendas marinhas podem até aliviar a pressão sobre o oceano. Delas já saem 30% dos frutos do mar que comemos – salmão, truta, bacalhau, camarão.

• No Brasil, os criadores de camarão desmatam e poluem imensas áreas de mangues preservados. Criadouros de salmão do Canadá sofreram uma explosão de parasitas que infestou o mar aberto e as populações selvagens.

Seres muito estranhos

• As criaturas monstrengas das profundezas têm dentes ou olhos desproporcionais, protuberâncias que brilham no escuro, dimensões assustadoras – um tipo de água-viva chega a 40 metros de comprimento (algo como 13 andares)!

• Normalmente, esses seres vivem de restos caídos das águas de cima. Vivem muito tempo e deslocam-se e reproduzem-se com mais lentidão que os de superfície – por isso suas populações sofrem muito mais impacto com a sobrepesca.

• Já comemos animais dessas profundezas. Por exemplo, o feioso olho-de-vidro, que nada a até 1 800 metros de profundidade, vive 150 anos e não procria antes dos 30 – por isso pescá-lo comercialmente é tão pouco sustentável.

60% da população mundial vive a até 60 km da costa, a região mais impactada pela ação humana.

80% do turismo mundial acontece no litoral. Praias e corais são as atrações mais procuradas.

9 semanas é o tempo que uma espécie marinha exótica leva para se instalar de vez em um novo ecossistema.

7 mil a 10 mil espécies marinhas por dia viajam o mundo no casco ou com a água de lastro de navios.

175 espécies exóticas invasoras vivem na baía de São Francisco, nos EUA.

6,6 milhões de quilômetros quadrados de mar viraram desertos nos últimos 10 anos.

200% foi o aumento da quantidade de lixo plástico nas águas do Pacífico na última década.

40% do CO2 que jogamos na atmosfera é absorvido pelos oceanos.

Para saber mais
The Unnatural History of the Sea

Callum Roberts, Island Press, 2007.

The End of the Line

Charles Clover, University of California Press, 2007.

Revista Superinteressante

Geografia e a Arte

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