terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Árvores de dinheiro


Frédéric Kaplan e Isabella di Lenardo

Na era digital, dados genealógicos como coleções fotográficas passam do status de patrimônio histórico comum ao de capital econômico possuído por algumas empresas. Assim, a própria noção de um patrimônio como bem comum universal tem de ser reinventada

No coração da Granite Mountain, a alguns quilômetros de Salt Lake City, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, também chamada de Igreja Mórmon, protege em um quarto-forte seu tesouro: 3,5 bilhões de imagens de documentos familiares compilados em microfilmes. Esses documentos trazem informações sobre a genealogia de mais de 5 bilhões de pessoas graças aos registros de estado civil coletados em mais de uma centena de países. Organização sem fins lucrativos fundada em 1894, a Sociedade Genealógica de Utah, rebatizada de FamilySearch (Pesquisa de Família), oferece acesso gratuito a esse ouro pacientemente coletado.
A busca genealógica está no coração da doutrina e das práticas religiosas dos mórmons. Na esperança de uma ressurreição generalizada, os membros da Igreja reconstroem suas relações familiares em diversas gerações, para oferecer a cada ancestral corretamente identificado um batismo salutar. A pesquisa de uma cadeia ininterrupta de ligações até Adão representa assim, em sua crença, uma maneira de salvar a humanidade. Por essa razão, a FamilySearch troca seus dados com outras instituições genealógicas, eventualmente com objetivo comercial.
Em outro porão da Granite Mountain, a empresa Ancestry.com propõe, como a FamilySearch, uma interface de acesso a uma grande base de dados genealógica, desta vez paga. As duas empresas colaboram estreitamente uma com a outra desde 2014. Mas a oferta comercial da Ancestry.com dá acesso a 19 bilhões de documentos históricos e seduz mais de 2 milhões de inscritos, que pagam em média US$ 200 por ano. A empresa propõe, entre outras coisas, um teste de DNA que, por menos de US$ 100, permite descobrir novas “conexões” familiares com pessoas e lugares e já conta com milhões de perfis genéticos para afinar as pesquisas. Com a comercialização proibida na França pela Lei de Bioética – que os reserva para fins puramente científicos, judiciários ou médicos –, os testes de DNA genealógicos fazem grande sucesso em escala mundial. Em Israel, a empresa MyHeritage.com teve em uma dezena de anos uma ascensão fulgurante. Comprando sucessivamente diversas empresas de genealogia, ela propõe a mais de 80 milhões de usuários inscritos o acesso a 7 bilhões de informações históricas. Em 2013, a empresa concluiu um acordo com a FamilySearch; depois, em 2014, com a 23andMe, líder dos testes genéticos de grande público. Obrigada desde 2013 pela administração norte-americana a renunciar ao essencial de suas pretensões em matéria de predição médica, a 23andMe colocou sua tônica na genealogia para desenvolver uma base de perfis genéticos, a maior do mundo.
Essas empresas genealógicas têm, ao longo dos anos, acumulado uma nova forma de capital: o capital genealógico. Sua especificidade? O valor de cada árvore é ainda maior quando pode ser relacionado com outras árvores. Ao comprar empresas que possuíam uma base genealógica local, a MyHeritage.com construiu um banco de dados cujo valor ultrapassa de longe a soma dos valores das bases iniciais. As dinâmicas capitalísticas se encontram reforçadas. Quando mais cada empresa propõe informações genealógicas, mais seus serviços podem seduzir os inscritos e mais os lucros permitem que se aumente o capital, seja sob a forma de campanha de digitalização, seja comprando outras empresas do mesmo setor. Em alguns anos, essa lógica conduziu à dominação de um punhado de agentes mundiais que, na ausência de uma legislação na área, podem garantir sua posição monopolística com parcerias.
As vastas coleções de árvores genealógicas, pacientemente reconstruídas graças ao entusiasmo de milhares de pesquisadores e de amadores que trabalham em arquivos públicos, passaram do status de patrimônio histórico comum ao de capital econômico possuído por algumas empresas. Para muitos pesquisadores e genealogistas amadores, essa agregação representa um progresso: os motores de busca permitem navegar com grande eficiência em bases de dados imensas. Encontramos agora facilmente documentos sobre nossos ancestrais, quando, há apenas alguns anos, tais pesquisas teriam demandado meses de trabalho em arquivos.
No entanto, essa mudança de status dos dados históricos nos leva também a questionar sobre o futuro dos grandes sistemas de informação, agora submetidos à lógica capitalista. A “grande árvore da humanidade”, tomada por algumas empresas, não defendida como patrimônio e não reconhecida como um capital, ainda não é considerada um objeto político, mas já é um objeto do mercado econômico global.1 Aqueles que a possuem podem vender seu acesso ao maior pagador, incentivado por uma fonte de informações sem precedentes. Os clientes da 23andMe descobriram, assim, que a empresa tinha revendido seus dados a mais de uma dezena de laboratórios farmacêuticos…

Novas dinâmicas do capitalismo
A área da genealogia não é o único setor atingido. Diversas coleções fotográficas inicialmente constituídas por historiadores da arte ou institutos de pesquisa foram, da mesma forma, reagrupados em bases de dados iconográficos com caráter comercial que, segundo a lógica do mercado, foram progressivamente agregadas para serem hoje administradas por um punhado de agentes. O arquivo de Otto Bettmann, fundado em 1936 sobre a base de 25 mil imagens que ele mesmo tinha produzido como conservador de museu, ilustra essas dinâmicas. A coleção foi comprada pela Corbis, empresa de Bill Gates, para criar um capital iconográfico de 100 milhões de imagens, e tem por ambição cobrir a integralidade da existência humana, protegida também nos porões de uma montanha, desta vez em Boyers, na Pensilvânia. A empresa acabou de ser comprada pelo Visual China Group, que garante, com a Getty Images, a gestão comercial desse tesouro.
Esses exemplos genealógicos e iconográficos são apenas casos particulares de um fenômeno mais amplo: o capitalismo patrimonial. Os documentos dos arquivos históricos se transformam em capital digital com alto valor integrativo, enquanto os dados patrimoniais constituem recursos limitados. Por essa razão é preciso imaginar os riscos dos controles monopolísticos em matéria de conservação, de política de acesso e de reutilização.
Diante dessas novas dinâmicas do capitalismo global, a própria noção de um patrimônio como bem comum universal deve ser reinventada. As grandes bases de dados do passado não coincidem mais hoje com os interesses culturais de um só país ou de uma só comunidade. Por suas coberturas espaço-temporais, elas adquiriram uma dimensão mundial e por essa razão devem ser pensadas como um recurso crítico para preparar nosso futuro.

*Frédéric Kaplan e Isabella di Lenardo são membros do Laboratório de Humanidades Digitais, da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça.

1 Ler o dossiê “À qui appartient votre ADN?” [A quem pertence seu DNA?], Le Monde Diplomatique, jun. 2008.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL

A nova era dos extremos


Fernanda Motta de Paula Resende e Glariston Resende

Se antes o pensamento progressista era o novo, defendido pelos jovens, hoje é visto como retrógrado, defendido pelos velhos. Discursos de ódio, conservadores, potencializam e se beneficiam com esta inclinação ao conservadorismo, em que não faltam atores que elegem seus inimigos, semeando a discórdia entre os seguimentos sociais, e elegendo a democracia como o mal a ser suplantado.


Grupos neonazistas de supremacia branca durante protesto em Charlottesville, EUA (2017)

Temos assistido assombrados aos acontecimentos do Brasil e do mundo e, tentando entendê-los, bem como para, e principalmente, antevermos as suas implicações, um pavor corta-nos a alma. Isso, porque o exercício de tentar entender o presente e, se possível for, antever o futuro, perpassa, necessariamente, ao estudo da história e, neste processo, impossível não retomarmos HOBSBAWN.
Lendo seu título “A era dos Impérios” é impossível não traçar um paralelo com a atualidade, que, por óbvio, guardadas às diferenciações históricas, na essência do espectro socioeconômico, parece ser clara a similitude hodierna com o final da Era dos Impérios.
Diz o historiador: a Era dos Impérios é marcada e dominada por essas contradições. Foi uma era de paz sem paralelo no mundo ocidental que gerou uma era de guerras mundiais igualmente sem paralelo. Apesar das aparências, foi uma era de estabilidade social crescente dentro da zona de economias industriais desenvolvidas que fornecem os pequenos grupos de homens que, que com uma facilidade que beirava a insolência, conseguiram dominar vastos impérios; mas uma era que gerou, inevitavelmente, em sua periferia, as forças combinadas da rebelião e da revolução que a tragariam¹.
Lendo o trecho acima, assusta-nos a atualidade.
Igualmente, estamos em uma era relativamente de paz para a humanidade, era esta que já conta com quase trinta anos, se considerarmos o fim da guerra fria, ou até maior se considerarmos o fim da segunda Guerra Mundial.
Esta tranquilidade possibilitou as reconstruções das economias centrais, bem como, em certo grau, certo desenvolvimento das economias periféricas, fazendo com que o PIB mundial, no período, multiplicasse dezenas, quiçá, centenas de vezes.
Como maiores beneficiados desta paz, e deste crescimento, e com a facilidade propiciada pelos Estados, visualizamos um minúsculo grupo de corporações (ou de homens?) conquistar vastos impérios econômicos. Presenciamos as fusões e incorporações de conglomerados econômicos, em que não raramente monopolizam seguimentos inteiros econômicos, cuja atuação não encontram limites ou barreiras no mundo globalizado. Vimos o seu poderio econômico ser contados na casa das unidades de bilhões de dólares, depois na casa das dezenas, saltando-se para as centenas de bilhões de dólares, aproximando-se a passos largos da marca de trilhão de dólares.
Apesar de não ser técnico confundir pessoas jurídicas com as pessoas físicas dos empresários, como era de se esperar, os principais acionistas destes conglomerados econômicos, igualmente, com o mesmo crescimento exponencial, tiveram sua fortuna pessoal contada na casa das dezenas de bilhões de dólares, hoje já alcançando a casa das centenas de bilhões de dólares.
No entanto, principalmente após o fim da guerra fria, período que nós estamos considerando similar à Era dos Impérios, estamos presenciando na periferia disto tudo o desenvolvimento das forças que poderão tragar o cenário de paz acumulativa destes poucos, e que nos regalará situação histórica similar à Era do Extremo.
Há, com a inclinação ao neoliberalismo, a corrosão dos ganhos sociais, estes possibilitados, segundo o historiador, pelo flagelo, destruição e sofrimento da Segunda Guerra, pela reconstrução das economias e, principalmente, pelo medo do socialismo.
As novas gerações não sentiram e não viram o impacto de uma grande guerra, e não tiveram a oportunidade de entender pensamentos progressistas e humanitários, voltando-se para o conservadorismo, vendido pela elite, detentora dos maiores meios de comunicação e de formação de opinião, de uma forma idealizada, e que gera a simpatia popular por conseguir repassar as mazelas atuais ao pensamento progressista, como se este atualmente ditasse as regras do mundo.
Com as reconstruções dos Estados, aquele gigantesco crescimento econômico não mais se faz presente, de modo que, se vivenciamos atualmente pequenas taxas de crescimento econômico, com as contradições de se ter altas taxas de crescimento dos grandes conglomerados econômicos e de altas taxas de crescimento da fortuna pessoal de seus detentores, estas contradições somente se realizam em prejuízo da massa trabalhadora, com a corrosão dos parcos ganhos que tiveram no passado.
Já o socialismo, este perdeu totalmente sua força, não havendo mais, neste quadrante da história, preocupações sérias sobre este ideal, ficando folclóricos na mentalidade dos ocidentais os Estados ainda neste regime, de modo que não mais há razão para fazer concessões à classe trabalhadora, por não haver mais paralelo comparativo para esta.
De modo que, atualmente, já sinalizou o economista THOMAS PIKETTY², em sua obra Capital do Século XXI, já chegamos na concentração de renda igual à vivenciada no início da Primeira Guerra Mundial, o que sinaliza que pode estar próximo o início da Nova Era do Extremo.
Para todos nós há uma zona de penumbra entre a história e a memória; entre o passado como um registro geral aberto a um exame mais ou menos isento e o passado como parte lembrada ou experiência de nossas vidas (HOBSBAWN)³.
Passado o terror da Segunda Guerra, e a inevitabilidade de uma reconstrução mundial humanista, defendida pelos vivenciadores daquele período, o passado se tornou apenas um registro histórico frio, não vivido.
Vivenciamos nossa juventude se voltar ao conservadorismo, ao desprezo por todo o pensamento humanitário, ao desprezo do Estado enquanto agente interventor, ao desprezo do assistencialismo, ao desprezo da atuação social do Estado, à defesa da atuação mínima econômica do Estado, tão somente a necessária para possibilitar o livre comércio entre os conglomerados econômicos. Vivenciamos nossa juventude eleger o inimigo, o preto, o pobre, o esquerdista (todos eles agora intitulados comunistas), o indígena, a mulher e etc. Vivenciamos a excrecência da democracia e a apologia aos regimes autoritários. Vivenciamos a excrecência do pensamento politicamente correto.
Se antes o pensamento progressista era o novo, defendido pelos jovens, hoje é visto como retrógrado, defendido pelos velhos.
Discursos de ódio, conservadores, potencializam e se beneficiam com esta inclinação ao conservadorismo, em que não faltam atores que elegem seus inimigos, semeando a discórdia entre os seguimentos sociais, e elegendo a democracia como o mal a ser suplantado.
Lembra, de algum modo, a bandeira de um personagem em específico?
A pergunta é quando e em que local surgirá o mor desta espécimen de político, que nos levará à Nova Era do Extremo, pois semeado já há muito se encontra o terreno, e pretendentes pululam aqui e acolá.

Fernanda Motta de Paula Resende é Professora do Departamento de Educação da UNESP – São José do Rio Preto, Doutora em Educação e Glariston Resende é Juiz de Direito do Estado de São Paulo, Mestre em Políticas Públicas.

1 – HOBSBAWN, Eric. J., A Era dos Impérios, 1875 – 1914, trad. Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo, São Paulo: Paz e Terra, p. 25.

2 – PIKETTY, Thomas, O capital no século XXI, trad. Monica Baugarten de Bolle, 1 ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

3 – HOBSBAWN, Eric. J., A Era dos Impérios, 1875 – 1914, trad. Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo, São Paulo: Paz e Terra, p. 15.
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