sábado, 12 de dezembro de 2009

Medos da "Eurábia": até que ponto a Europa pode suportar Alá?


12/12/2009
Medos da "Eurábia": até que ponto a Europa pode suportar Alá?

Andrea Brandt, Marco Evers, Juliane von Mittelstaedt, Mathieu von Rohr e Britta Sandberg
A recente votação na Suíça que culminou na proibição da construção de novos minaretes chocou e enfureceu muçulmanos em todo o mundo. Mas a medida polêmica também reflete uma sensação crescente de desconforto entre outros europeus que sentem dificuldades em aceitar a visibilidade cada vez maior do islamismo.

Na pequena cidade suíça de Langenthal, a batalha em torno dos minaretes tem sido travada, e não parece haver esperança de reconciliação entre vitoriosos e derrotados. "Eu me sinto vítima de abuso e ferido como pessoa", queixa-se Mutalip Karaademi. "Nós queríamos atingir um símbolo", afirma Daniel Zingg. "E nós o atingimos".

Zingg impediu a construção do minarete desejado por Karaademi, e conseguiu fazer com que se tornasse ilegal a construção de qualquer outro minarete na Suíça. Ele foi um dos autores do texto do referendo que foi aprovado pelos suíços em 29 de novembro último, com 57,5% dos votos. Agora a constituição trará a seguinte sentença: "É proibida a construção de minaretes".

A decisão suíça chocou a Europa e o mundo porque os seus desdobramentos vão bem além da construção de minaretes - eles dizem respeito também à identidade de um continente inteiro. Este foi um referendo sobre a percepção ocidental do islamismo como uma ameaça.

A questão está gerando intensos debates: até que ponto a Europa preponderantemente cristã está preparada para aceitar o islamismo? A decisão tomada por este país alpino tradicionalmente tolerante revela o temor profundo quanto a um islamismo que está se tornando cada vez mais visível.

Os imigrantes muçulmanos estão ameaçando os valores europeus? Esta é uma preocupação compartilhada por muitos europeus em todo o continente. Pesquisas de opinião conduzidas na semana passada revelaram que 44% dos alemães e 41% dos franceses opõem-se à construção de minaretes. E 55% de todos os europeus veem o islamismo como uma religião intolerante.

A decisão dos suíços revelaria uma atitude que a maioria dos europeus também apoiaria caso tivesse oportunidade?

Críticas veementes
Isso explicaria também por que as críticas à votação foram tão veementes. O ministro francês das Relações Exteriores, Bernard Kouchner, o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, os Estados Unidos e o Vaticano uniram-se nas críticas.

Eles disseram que a votação suíça violou os princípios de liberdade de religião e de não discriminação. O ministro da Turquia na União Europeia pediu aos muçulmanos que invistam o seu dinheiro na Turquia, em vez de na Suíça, e o primeiro-ministro turco Tayyip Erdogan disse que o fato reflete "uma posição cada vez mais racista e fascista na Europa".

Mas a votação foi bem recebida e comemorada em alguns blogs da Internet, e populistas de direita como o presidente do holandês Partido pela Liberdade, Geert Wilders, bem como o partido direitista francês Frente Nacional manifestaram a sua aprovação. Roberto Castelli, um político importante da italiana Liga Norte, afirmou: "Os suíços nos deram mais uma vez uma aula de civilização. Nós temos que mandar um recado forte para conter a ideologia pró-islâmica".

Por ora, o que se conteve foi o minarete da comunidade religiosa muçulmana de Langenthal. Mutalip Karaademi, 51, um indivíduo de etnia albanesa que imigrou da Macedônia 26 anos atrás, está de pé em frente à instalação usada pela sua associação religiosa. O prédio é uma antiga fábrica de tinta na periferia da cidade. No topo há uma construção de madeira medindo 6,1 metros. Ela mostra a altura do minarete planejado. O primeiro minarete, que não pode ser construído.

Karaademi é o líder da comunidade muçulmana local, cujos 130 membros vieram da Albânia, do Kosovo e da Macedônia. A pequena mesquita foi inaugurada 18 anos atrás. No início o minarete não era muito importante, diz Karaademi. Ele era simplesmente um complemento ornamental. Mas agora ele transformou-se em uma questão de princípios.

Ele deseja tomar providências legais - se necessário, ir até ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, onde é bastante possível que os juízes em Estrasburgo acabem revertendo a decisão constitucional suíça. Karaademi diz adorar a Suíça, que para ele é um modelo de país. "Mas esta proibição é racista e nos discrimina. É um escândalo para o mundo civilizado", queixa-se ele.


A batalha de um só homem
O tranquilo vencedor desta batalha é Daniel Zingg, 53, um homem calvo que usa óculos de metal. Ele está sentado em uma pizzaria em frente à estação ferroviária de Langenthal, e conversa em uma voz rouca e baixa. "Os minaretes, aquelas pontas de lança da Sharia, aqueles marcos de território recém-conquistado pelo islamismo, não podem mais ser construídos aqui", diz ele.

"E, dessa forma, a Suíça resolveu um problema que já havia se tornado aparentemente insolúvel em outros lugares, tais como nas grandes cidades da Inglaterra e da França. É um fato bem conhecido que primeiro chegam os minaretes, depois os muezins, os indivíduos que convocam os crentes às preces, as burcas e, finalmente, a lei Sharia", diz ele. Segundo Zingg, a proibição não é dirigida contra os muçulmanos, embora seja verdade que "o Alcorão delega às pessoas a missão de islamizar o mundo, e os muçulmanos daqui não tem nenhuma outra missão, caso contrário, eles não seriam muçulmanos".

Nos últimos 15 anos, Zingg tem dado palestras de apoio a Israel e contra o islamismo. Ele é um político do ultraconservador partido cristão do país, a União Democrática Federal, que recebeu 1,3% dos votos na última eleição. Ele nunca pôs o pé na mesquita da sua cidade porque ouviu falar que quem quer que ande descalço em uma mesquita torna-se muçulmano. Zingg não quer correr esse risco.

Alguém pode perguntar como um homem como esse, cujas posturas radicais certamente não refletem a opinião majoritária na Suíça, foi capaz de obter uma maioria para a sua causa. Além disso, muita gente pode querer entender por que um país que tem pouquíssimos problemas com os seus cerca de 400 mil muçulmanos decidiu tomar uma medida tão drástica.

Talvez os temores estejam aumentando e as demandas radicais estejam se tornando cada vez mais populares porque praticamente não há discussão política a respeito do lugar que o islamismo assumirá na Europa.

Atualmente, vivem na União Europeia cerca de 15 milhões de muçulmanos, ou aproximadamente 3% da população. Mas este número é maior do que o registrado em qualquer período passado. Os imigrantes, muitos dos quais vieram como trabalhadores convidados década atrás, trouxeram o islamismo para a Europa.

Será que a Europa ainda seria a Europa se, por exemplo, em 2050, a maioria da população mais jovem com menos de 15 anos de idade na Áustria fosse composta de muçulmanos? Ou quando, atualmente, o nome Muhammad (Maomé) já é o mais comum entre os garotos recém-nascidos em Bruxelas e Amsterdã, e o terceiro mais comum na Inglaterra?

Uma "discussão oficial sobre o islamismo" e uma discussão subterrânea
O escritor e jornalista norte-americano Christopher Caldwell publicou recentemente a sua última obra, "Reflections on the Revolution in Europe: Immigration, Islam and the West" ("Reflexões sobre a Revolução na Europa: Imigração, Islamismo e o Ocidente"), um livro altamente lido e permeado de ceticismo sobre a Europa e os seus imigrantes muçulmanos.

O que o fascina a respeito do resultado da votação suíça é a contradição entre a rejeição do banimento dos minaretes nas pequisas e o apoio considerável que a proposta recebeu durante o referendo. "Isso significa que existe uma discussão oficial sobre o islamismo e, ao mesmo tempo, uma discussão subterrânea", afirma Caldwell. "Isso deveria preocupar os europeus".

Caldwell não usa no seu livro os mesmos tons alarmistas de outros escritores conservadores que apelidaram o continente europeu de "Eurábia", e que veem a Europa - devido à taxa de natalidade mais elevada dos imigrantes - como um futuro bastião do "império mundial islâmico". Mas ele também escreve: "Não há dúvida de que a Europa emergirá mudada dessa confrontação com o islamismo. Mas há muito mais incerteza quanto à possibilidade de o islamismo mostrar-se assimilável".

Caldwell acredita que os imigrantes muçulmanos têm tido maiores dificuldades do que outros grupos para se integrarem à sociedade europeia. Por outro lado, somente uma minoria consegue se identificar com o islamismo político, até por causa das guerras que o Ocidente tem travado contra o terrorismo islâmico no decorrer dos últimos anos. Por outro lado, a religião desses indivíduos está vinculada a atitudes conservadoras em relação às mulheres, às relações familiares, à liberdade sexual e aos direitos de gays e lésbicas. Essas atitudes religiosas são problemáticas para muitos europeus.

Caldwell diz que, apesar de os muçulmanos constituirem-se em uma pequena minoria, a Europa está modificando as suas estruturas por causa deles: "Quando uma cultura insegura, maleável e relativista encontra uma cultura que é ancorada, confiante e fortalecida por doutrinas comuns, é geralmente a primeira que muda para adequar-se à última".

Parte Dois: Temores Generalizados na Alemanha
A Alemanha ainda não conduziu um debate nacional sério sobre essas questões. Em vez disso, o país tem se concentrado nos lenços de cabeça muçulmanos, um tópico que gerou um choque entre as duas culturas.

Durante seis longos anos os alemães tentaram determinar se uma professora do Afeganistão deveria ter permissão para usar um lenço de cabeça na sua escola em Baden-Württemberg. O caso acabou chegando ao Tribunal Constitucional Alemão, que determinou que cabe aos Estados individuais emitirem legislações sobre os lenços de cabeça. Desde então, professoras da metade dos 16 Estados da Alemanha foram proibidas de usar os lenços.

Quando houve conflitos - como aqueles em torno da construção de mesquitas -, estes ocorreram em um nível municipal. E isso geralmente levou a soluções bem alemãs, nas quais os planos de construção e de regulamentações de áreas desempenham um grande papel.

Na cidade de Kehl, próxima à fronteira francesa, por exemplo, propostas para a construção de uma mesquita em uma área residencial foram rejeitadas. No entanto, ela pôde ser construída perto da estação ferroviária, tendo um minarete com a altura exata da torre da igreja. Já em outras situações, nem mesmo um pequeno minarete pôde ser construído, como em Augsburg, na Baviera. Enquanto isso, fracassou uma iniciativa dos cidadãos de Colônia de impedir a construção de uma grande mesquita central - uma das maiores da Europa.

Mas, não obstante, há temores generalizados na Alemanha, conforme foi ilustrado pelo exemplo de uma igreja em Duisburg que foi recentemente convertida em mesquita. Membros da antiga congregação da igreja entregaram cerimoniosamente a casa de orações aos seus novos donos: "Mas nos pubs e nas conversas privadas, todo mundo reclamou, afirmando que os muçulmanos estão conquistando o poder na Alemanha", diz Rauf Ceylan, um professor de estudos religiosos da Universidade de Osnabrück. Ele afirma que os alemães têm um medo latente do islamismo.

O paradoxo britânico
O Reino Unido é o exemplo mais perturbador citado por vários pessimistas. Embora apenas pouco menos de 3% da população britânica seja muçulmana, em sua maioria vinda do Paquistão e de Bangladesh, em nenhum outro país da Europa tantos muçulmanos vivem totalmente isolados do resto da sociedade - em cidades como Bradford, Dewsbury e Leicester.

A maior parte dos antigos residentes originais - ingleses da classe operária - mudou-se há muito tempo do distrito de Bury Park, em Luton, que fica 50 quilômetros ao norte de Londres. As ruas do lugar estão repletas de mulheres usando niqabs, o véu islâmico de face inteira que traz apenas uma pequena abertura para os olhos, e de homens com barbas grisalhas.

Há também açougueiros halal (sistema de abate de animais segundo as leis muçulmanas) e dez mesquitas. Um minarete feito de tijolos ingleses vermelhos foi adoravelmente integrado a uma fileira de casas. Os muezins convocam os fiéis às preces por meio de alto-falantes.

Nas ruas, os moradores falam bengali ou urdu. O centro comunitário oferece cursos de naturalização. As mesquitas ministram cursos anti-terrorismo financiados pelo Estado que são elaborados para imunizar os jovens muçulmanos contra a propaganda dos extremistas. Antigamente o bairro costumava ser frequentado por religiosos muçulmanos convidados que pregavam o ódio, e foi daqui que saíram os quatro militantes suicidas para atacar o sistema de transporte de Londres e matar 52 pessoas em 7 de julho de 2005.

Mas muitos muçulmanos de segunda, terceira e quarta geração já se mudaram há muito tempo deste lugar. Eles têm alto nível educacional, possuem cidadania britânica, e trabalham como médicos, advogados e políticos.

O Estado britânico fez mais no sentido de acomodar as necessidades culturais dos seus cidadãos muçulmanos do que qualquer outro país europeu. Policiais femininas muçulmanas têm permissão para cobrir o cabelo com lenços. O lenço faz parte do uniforme delas.

Durante os últimos dois anos, os muçulmanos britânicos têm podido também recorrer a tribunais de arbítrio muçulmanos que são baseados na lei Sharia. As decisões desses tribunais têm peso legal para ambas as partes em um conflito. Se necessário, um funcionário do judiciário britânico faz cumprir a sentença. Esta prática é única na Europa.

Esses tribunais de arbítrios foram criados pelo xeque Faiz-ul-Aqtab Siddiqi. Atualmente os seus tribunais de lei Sharia analisam casos em sete cidades inglesas e nada têm a ver com decepar mãos ou apedrejar pessoas até a morte. Eles só lidam com disputas civis, e somente se ambas as partes concordarem com o processo.

Esses tribunais reuniram-se cerca de 600 vezes nos últimos 12 meses, lidando principalmente com disputas entre parceiros empresariais, problemas de bairros e até mesmo questões de herança. Segundo Siddiqi, eles têm permitido que os muçulmanos britânicos sejam capazes de identificar-se mais fortemente com o Reino Unido.

Até que ponto o islamismo pode ser visível na França?
Jocelyne Cesari, uma especialista francesa em islamismo, diz que a situação britânica é um paradoxo: "Por um lado, há uma próspera classe média muçulmana, e, ao mesmo tempo, aquele é o país com o maior número de muçulmanos vivendo em distritos isolados e adotando as posições mais radicais".

Ela não vê problemas nos tribunais de arbítrio baseados na lei Sharia, contanto que eles não conflitem com as leis tradicionais do país. Segundo Cesari, compromissos são aceitáveis em áreas que conflitem com os direitos da maioria e não desrespeitem nenhuma lei.

"O multiculturalismo não significa que a velha maioria estabelecida tenha direitos especiais", afirma ela, acrescentando que o postulado de Caldwell de que o islamismo é incompatível com os valores europeus é uma mistura de meias verdades e preconceitos: "Os muçulmanos estão sem dúvida preparados para se adaptarem - eles adotam com frequência uma postura crítica em relação à sua própria religião".

Mas Cesari diz que existe uma luta em torno do reconhecimento simbólico do islamismo: "Durante as primeiras décadas, os muçulmanos criaram modestas salas de orações. Agora eles desejam ter instalações que compitam com as igrejas e catedrais da Europa". Ela afirma que, como o cristianismo tem se afastado cada vez mais da esfera pública, muitos europeus veem as mesquitas como uma provocação.

Atualmente a França está procurando determinar oficialmente até que ponto o islamismo pode ser visível dentro das fronteiras do país. Esse debate está ocorrendo em uma sala sem janelas do subsolo de um edifício parlamentar em Paris. Cadeiras de couro escuro estão arrumadas em círculo, e na frente da parede principal de madeira senta-se André Gerin, o diretor do comitê parlamentar que investiga a questão do "uso dos véus de corpo inteiro".

Gerin, um comunista, é prefeito do subúrbio de Vénissieux, em Lyon, há mais de 24 anos. Ele usa um terno cinza de listras finas com calças que estão meio curtas. Gerin diz que fez pressões para a criação deste comitê porque a burqa está ameaçando os ideais republicanos da França.

À direita de Gerin, sentado em frente aos membros do comitê, está Tariq Ramadan, um controverso e inteligente filósofo e teólogo muçulmano que tem cidadania suíça. Ramadan usa um terno escuro e exibe uma barba de três dias. Ramadan se opõe a uma lei que proibiria o uso da burqa porque, segundo ele, isso só estigmatizaria o islamismo.

"Monsieur Ramadan", diz Gerin, formulando a sua primeira questão. "O uso da burqa é uma obrigação religiosa? Ou você vê - assim como nós - esta prática como uma forma de opressão da mulher?".

"Não", responde Ramadan. "Não existe obrigação de se usar a burqa e sem dúvida há homens que obrigam as suas mulheres a usar essa veste contra a vontade delas. Mas uma lei só provocaria mais isolamento".

"Sendo assim, o que você sugere?", indaga o diretor da comissão. "A aplicação das leis existentes", diz Ramadan. "É claro que uma mulher que usa a burqa teria que mostrar a face durante uma verificação de identidade. Mas precisamos entender finalmente que o islamismo tornou-se uma religião francesa".

Ramadan é o 145º especialista a ser entrevistado. Durante anos ele tem defendido um islamismo autoconfiante na Europa, adaptado às demandas da era moderna e compatível com as conquistas europeias como o respeito aos direitos humanos e a democracia. Os seus oponentes acusam Ramadan de ser um mentiroso hipócrita que estaria tentando transmitir uma falsa sensação de segurança à população europeia.

Os europeus reduzem o islamismo à burca?
Gerin gostaria de iniciar um debate sobre até que ponto a França - com a sua separação estrita entre igreja e Estado - está disposta a aceitar o islamismo. Ele afirma que só está usando a burca como um catalizador. O serviço de inteligência interna da França identificou apenas 367 mulheres em todo o país que usam burqa. De todos os problemas associados aos seis milhões de muçulmanos do país, as burqas são provavelmente o menor deles.

Muitos religiosos muçulmanos acusam os europeus de reduzirem o islamismo à burqa, a burqa ao Taleban, e o Taleban a Osama Bin Laden. Esses indivíduos afirmam que as pessoas falam sobre eles como se todos fossem radicais islamitas, e não já estivessem morando no país há décadas.

Mas Gerin alcançou o seu objetivo. Na sua sala de audiências a República Francesa está lutando com a exceção à regra - em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

"Como podemos aceitar ataques à liberdade pessoal de qualquer pessoa no nosso país? Como é que os governantes não têm respostas para essas questões? Como isso é possível na França secular?", questiona Gerin.

Gerin é um comunista que move uma campanha para defender os ideais republicanos, e um prefeito que defende a sua cidade. Mas ele é também um realista: "Estamos cerca de 25 anos atrasados, mas nós temos que finalmente aceitar que os muçulmanos têm o direito de estabelecerem-se aqui", diz ele. "Mas eles terão que se adaptar à nossa sociedade".

O debate francês sobre a burqa tem algo em comum com a proibição dos minaretes na Suíça: ambos estão atacando um símbolo, mas eles têm um outro objetivo. Eles são movidos pela esperança de que possam reduzir a influência do islamismo ao limitar a sua visibilidade. É mais fácil lutar quanto a questões sensíveis do que lidar com problemas concretos - discutir a respeito de meninas que não participam de aulas de natação, comida halal em refeitórios de companhias e orações durante a jornada de trabalho. Isso é também uma estratégia bastante impotente.

Um "choque de culturas" na Bélgica
Em Antuérpia e em vários outras cidades belgas, há anos as mulheres são proibidas de cobrir as faces. A polícia já advertiu várias mulheres que usavam niqabs e burqas. Mas na verdade faz muito tempo que a proibição não é um problema neste país - de fato, é difícil encontrar muçulmanos que se irritem com isso.

Por outro lado, os lenços de cabeça islâmicos têm sido motivo de grande controvérsia em Antuérpia. Esta é uma cidade portuária cosmopolita, mas nas recentes eleições locais um terço dos eleitores apoiaram o Vlaams Belang (Interesse Flamengo), um partido político de direita que possui uma plataforma anti-imigração. Três anos atrás, um prefeito socialista foi o primeiro a proibir os lenços de cabeça no setor público. Desde setembro essa proibição inclui também os alunos de escolas.

Karin Heremans, 46, é a diretora do Royal Antheneum de Antuérpia, uma famosa escola de segundo grau que lembra uma fortaleza no centro de Antuérpia. Ela é loura e usa um vestido de seda curto e batom rosa, o que faz com que tenha uma aparência oposta à das garotas da sua escola, a maioria das quais é muçulmana. Elas usam camisas de gola alta e lenços de cabeça, pelo menos até chegarem ao espelho que está pendurado no salão de entrada, onde as meninas têm que tirar os lenços de cabeça.

Quando se tornou diretora da escola em 2001, apenas dez dias antes dos ataques terroristas de 11 de setembro nos Estados Unidos, Heremans jamais teria achado que um dia proibiria os lenços de cabeça. Mas foi naquele momento que irrompeu o "choque de culturas", conforme ela denomina o fenômeno, e com esse termo ela não se refere ao choque no mundo externo, mas ao conflito dentro do pátio da sua própria escola.

No início, os professores continuaram falando às alunas sobre Darwin, e havia desfiles de moda e até mesmo uma viagem de campo a Istambul. Tudo parecia possível. Em 2005, Heremans chegou a escrever um livro no qual rejeitava uma proibição dos lenços de cabeça e dizia acreditar que as diferenças culturais são enriquecedoras.

Mas um número cada vez maior de escolas em Antuérpia proibiu os lenços de cabeça, e mais e mais garotas foram transferidas para o Antheneum. Esta foi a última escola a não impor a proibição. Finalmente, as meninas passaram a vir para a escola totalmente cobertas, dos pés à cabeça, com casacos longos e luvas, e um representante de uma organização islâmica ficava na entrada e observava quais delas removiam os lenços na escola.

"Nós trocamos a palavra tolerância por reciprocidade", diz Heremans. "Todos os que desejarem liberdade de religião precisam respeitar a liberdade de religião dos outros". É preciso haver valores inalienáveis, como igualdade entre os sexos, liberdade de expressão e religião e respeito, diz ela. Poucos dias após Heremans decretar a sua proibição, a diretoria da escola aprovou a medida. A partir do ano que vem, os lenços de cabeça - e todos os outros símbolos religiosos - estarão proibidos em todas as 700 escola públicas de Flandres. Agora muitas garotas frequentam escolas islâmicas ou estudam apenas em casa.

O maior desafio da Europa?
A polêmica em torno do lenço de cabeça em Antuérpia é um dos últimos exemplos das questões com as quais a Europa se defronta. Será que o continente será capaz de preservar os seus valores - e liberdades - limitando as liberdades pessoais?

Lidar com o islamismo talvez seja o maior desafio com o qual a Europa se depara. Se o continente for capaz de preservar os seus próprios valores sem discriminar os muçulmanos, um consenso quanto a valores poderá ser alcançado e os muçulmanos europeus poderão tornar-se um modelo para o mundo muçulmano. No entanto, caso fracasse, a Europa poderá trair os seus próprios valores, e os populista poderão vencer. As soluções simplistas destes últimos atiçarão as chamas do choque de culturas.

Há vários argumentos contra os alarmistas que temem que a Europa esteja a caminho de tornar-se uma colônia árabe. A vasta maioria dos muçulmanos se adapta ao seu novo país, é menos religiosa do que nos seus países de origem e aceita a cultura predominante. Além disso, os temores quanto às elevadas taxas de natalidade dos imigrantes muçulmanos mostraram-se exagerados. Na segunda e na terceira gerações, esses índices caem para a média nacional.

Mas às vezes os medos são mais poderosos do que os fatos, e com frequência uma proibição de minaretes não tem nada a ver com minaretes. Nas cidades suíças onde muçulmanos e cristãos coexistem há muito tempo, a iniciativa não conseguiu obter a maioria dos votos. No cantão montanhoso de Appenzell-Innerrhoden, onde só ha 500 muçulmanos, 71% dos votos foram favoráveis à proibição dos minaretes.

Já em Langenthal, uma pequena cidade rural na qual havia planos para a construção de um minarete, o índice de apoio à proibição foi quase exatamente igual à media nacional suíça.

Tradução: UOL

Der Spiegel

A física por trás das mudanças climáticas

Por que os climatologistas estão tão confiantes de que as atividades humanas estão aquecendo a Terra perigosamente? A seguir, alguns dos participantes do relatório internacional mais abrangente das evidências científicas resumem os argumentos e discutem por que ainda restam incertezas
por William Collins, Robert Colman, James Haywood, Martin R. Manning e Philip Mote

Dlillc Corbis

Para os cientistas que estudam as mudanças climáticas, gritar “Eureka!” é muito raro. Geralmente o progresso nesses estudos é obtido através de um cuidadoso juntar de peças, de cada nova medida de temperatura, dados de satélite ou com experimentos de modelos de clima. As informações obtidas são verifi cadas e revisadas, as idéias são testadas repetidamente. Será que as observações confirmam as mudanças preditas? Bons climatologistas precisam se assegurar de que todas as descobertas feitas sejam submetidas aos testes mais rigorosos.

As evidências de mudanças aumentam à medida que os registros climáticos vão ficando mais longos, assim como nossa compreensão dos sistemas climáticos melhora e os modelos climáticos vão se tornando cada vez mais confiáveis. Ao longo dos últimos 20 anos, as evidências de que o homem está afetando o clima se acumularam inexoravelmente, e com elas, uma consciência cada vez maior de toda a comunidade científica sobre a realidade das recentes mudanças climáticas e das mudanças futuras que poderão ser ainda maiores. Essa certeza crescente está muito clara no último relatório do Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC), o quarto de uma série de avaliações sobre o estado do conhecimento do assunto, escrito e revisado por centenas de cientistas do mundo todo.

Em fevereiro, o painel publicou uma versão condensada da primeira parte do relatório, sobre a base física das mudanças climáticas. Chamado de “Resumo para Gestores de Políticas”, foi distribuído também ao público em geral com uma mensagem ambígua: os cientistas têm mais certeza do que nunca de que o homem interferiu no clima e que mais mudanças climáticas induzidas pela humanidade estão a caminho. Ainda que o relatório acredite que algumas dessas mudanças sejam inevitáveis, a análise também confirma que o futuro, especialmente em longo prazo, estará totalmente em nossas mãos – a magnitude da mudança esperada depende do que os homens farão a respeito das emissões de gases de efeito estufa.

A avaliação da ciência física focaliza os responsáveis pelas mudanças climáticas, as mudanças observadas nos sistemas climáticos, a compreensão das relações de causa e efeito, e projeções de futuras mudanças. Houve avanços importantes desde a avaliação do IPCC em 2001. A seguir, descrevemos as principais descobertas que documentam a extensão da mudança e chegam a uma conclusão inevitável: a causa é a atividade humana.

Causas das Mudanças Climáticas
As concentrações atmosféricas de vários gases – basicamente dióxido de carbono, metano, óxido nítrico e halocarbonetos (que já foram muito usados como refrigerantes e propelentes de sprays) – aumentaram por causa das atividades humanas. Esses gases capturam a energia térmica (calor) dentro da atmosfera por meio do conhecido efeito estufa, o que leva ao aquecimento global. As concentrações atmosféricas de dióxido de carbono, metano e óxido nítrico permaneceram praticamente estáveis por quase 10 mil anos, antes do crescimento abrupto e acelerado dos últimos 200 anos . As taxas de crescimento das concentrações de dióxido de carbono foram mais rápidas nos últimos dez anos do que em qualquer outro período de dez anos, desde que o monitoramento contínuo da atmosfera começou, em meados de 1950. Hoje, essas concentrações estão aproximadamente 35% acima dos níveis pré-industriais (que podem ser determinados pelas bolhas de ar aprisionadas em núcleos de gelo). Os níveis de metano estão aproximadamente duas vezes e meia maiores que os níveis pré-industriais, e os de óxido nítrico, 20% mais altos.

Como podemos ter certeza de que o homem é responsável por esse aumento? Alguns gases de efeito estufa (a maioria dos halocarbonetos, por exemplo) não têm fonte natural. Para outros gases, duas observações importantes demonstram a
infl uência humana. A primeira é que as diferenças geográficas nas concentrações mostram que as fontes estão predominantemente em áreas com maior densidade demográfi ca do hemisfério norte. A segunda é que as análises de isótopos, que podem identificar as fontes emissoras, demonstram que a maior parte do aumento do dióxido de carbono provém da queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural). O aumento dos níveis de metano e de óxido nítrico decorre de práticas agrícolas e da queima de combustíveis fósseis.

Os climatologistas utilizam um conceito chamado forçante radiativa para quantifi car o efeito dessas concentrações mais altas. Forçante radiativa é a alteração causada no equilíbrio energético global da Terra em relação à época pré-industrial – e é geralmente expressa em watts por metro quadrado. Uma forçante positiva induz aquecimento; uma forçante negativa induz resfriamento. Podemos determinar a forçante radiativa associada a gases de longa duração de efeito estufa com excelente precisão.

As mudanças climáticas não são causadas somente por maiores concentrações de gases de efeito estufa; outros mecanismos também têm seu papel. As causas naturais incluem variações na atividade solar e grandes erupções vulcânicas. O relatório identificou vários mecanismos forçantes signifi cativos, induzidos pelo homem: aerossóis, ozônio estratosférico e troposférico, albedo da superfície (refletividade) e esteiras de fumaça de aeronaves, embora seus efeitos sejam muito menos prováveis do que os gases de efeito estufa.

Os pesquisadores não estão muito certos sobre a influência do chamado efeito do albedo de nuvens de aerossóis, nos quais os aerossóis de origem humana interagem com as nuvens, tornando-as mais brilhantes e refl etindo a luz do Sol de volta para o espaço. Há outra dúvida: quanto os aerossóis refletem e absorvem da luz solar diretamente, como partículas? Em geral, eles deveriam produzir um resfriamento que poderia compensar, até certo ponto, o efeito de aquecimento devido aos gases de efeito estufa de longa duração. Mas quanto? Poderia superar o aquecimento? Dentre os avanços alcançados desde o relatório do IPCC de 2001, um deles se destaca: os cientistas conseguiram quantificar as incertezas associadas a cada mecanismo forçante individualmente, através de uma combinação de vários estudos observacionais e de modelos. Conseqüentemente, agora podemos fazer estimativas confi áveis da influência total do homem. Nossa melhor estimativa é dez vezes maior do que a melhor estimativa da forçante radiativa natural causada por variações da atividade solar.


A certeza maior de uma forçante radiativa positiva se ajusta bem às evidências observacionais do aquecimento, que serão discutidas a seguir. Essas forçantes podem ser entendidas como um cabo-de-guerra, com forçantes positivas tentando puxar a
Terra para um clima mais quente e as negativas puxando-a para um estado mais frio. O resultado é que não há competição. A Terra está sendo levada para um clima mais quente e será cada vez mais puxada nessa direção, enquanto os vilões do aquecimento global vão ficando cada vez mais fortes.


Mudanças Climáticas Observadas
Novos conjuntos de dados observacionais foram disponibilizados para que o relatório do IPCC de 2007 pudesse fazer uma avaliação mais abrangente das mudanças que a dos relatórios anteriores. Registros observacionais indicam que 11 dos 12 últimos anos foram os mais quentes desde que os registros confi áveis começaram, por volta de 1850. A chance de que essa sucessão de anos mais quentes tenha sido puramente casual é extremamente pequena. Mudanças na temperatura global, no nível do mar e na cobertura de neve no hemisfério norte mostram evidências de aquecimento. A avaliação anterior do IPCC relatou uma tendência de aquecimento de 0,6oC ± 0,2oC no período de 1901 a 2000. Devido ao forte aquecimento recente, a tendência atualizada para o período de 1906 a 2005 é agora de 0,74oC ± 0,18oC. Observe que, de 1956 a 2005 apenas, a tendência é de 0,65oC ± 0,15oC, enfatizando que a maior parte do aquecimento do século 20 ocorreu nos últimos 50 anos. O clima continua a variar em torno dessas médias mais altas, e os extremos mudaram consistentemente com elas – dias extremamente frios têm se tornado cada vez menos comuns, enquanto ondas de calor e dias quentes se tornaram mais freqüentes.

As propriedades dos sistemas climáticos incluem não só conceitos como médias de temperaturas, de precipitação etc., mas também do estado do oceano e da criosfera (gelo marinho, grandes camadas de gelo da Groenlândia e da Antártida, geleiras, neve, solo congelado e gelo em lagos e rios). As interações entre as diferentes partes dos sistemas climáticos têm papel fundamental nas mudanças – por exemplo, a redução do gelo marinho aumenta a absorção de calor pelo oceano e o fluxo de calor entre o oceano e a atmosfera, o que também pode afetar a camada de nuvens e as precipitações. Um grande número de observações adicionais é bastante consistente com o aquecimento estudado e reflete um fluxo de calor da atmosfera para outros componentes do sistema. A cobertura de neve na primavera, que diminui conforme aumentam as temperaturas nessa estação em latitudes médias do hemisfério norte, diminuiu abruptamente por volta de 1988 e permanece baixa desde então. Essa redução precisa ser considerada, pois a cobertura de neve é importante para a umidade do solo e os recursos hídricos de muitas regiões.

No oceano, vemos claramente tendências de aquecimento, que diminuem com a profundidade. Essas mudanças indicam que o oceano absorveu mais de 80% do calor adicionado ao sistema climático: esse aquecimento é um dos principais responsáveis pela elevação do nível do mar. Desde 1993, as observações por satélite permitiram cálculos mais precisos da elevação global do nível dos oceanos, agora estimada em 3,1 mm ± 0,7 mm por ano no período de 1993 a 2003. Algumas décadas passadas mostraram taxas rápidas similares, e serão necessários registros de satélites a longo prazo para determinar sem ambigüidade se esse aumento está se acelerando. Também foram observadas em décadas recentes reduções substanciais na extensão do gelo marinho do Ártico desde 1978 (2,7% ± 0,6% por década, no verão), aumento nas temperaturas do permafrost (solo congelado), redução da extensão do gelo global, assim como das camadas de gelo da Groenlândia e da Antártida.


Mudanças hidrológicas também são bastante consistentes com o aquecimento. O vapor de água é o gás mais forte de efeito estufa, pois é controlado principalmente pela temperatura. Em geral, ele vem aumentando pelo menos desde os anos 80. A precipitação varia muito localmente, mas tem aumentado em várias regiões do mundo, incluindo o leste das Américas do Norte e do Sul, o norte da Europa e o norte e o centro da Ásia. Secas têm sido observadas no Sahel, Mediterrâneo, sul da África e partes do sul da Ásia. A salinidade oceânica pode agir como um grande calibrador de chuva. Águas próximas da superfície dos oceanos têm estado, em geral, menos salgadas em latitudes médias e altas, enquanto em latitudes mais baixas têm apresentado maior salinidade, em conformidade com as mudanças nos padrões de precipitação de larga escala.


Reconstruções do clima do passado – o paleoclima – a partir de anéis de árvores e de outros métodos fornecem uma compreensão adicional importante do funcionamento do sistema climático com ou sem a infl uência do homem. Elas indicam que o aquecimento da última metade do século passado foi incomum, pelo menos nos 1.300 anos anteriores. O período mais quente entre 700 a.C. e 1950 foi provavelmente entre 950 a.C. e 1100, e era vários décimos de grau Celsius mais frio do que a temperatura média desde 1980.


Atribuição das Mudanças
Embora estejamos bastante convencidos de que as atividades humanas causaram uma forçante radiativa positiva e que o clima realmente mudou, será que podemos garantir que existe um vínculo entre eles? Esta é a questão da atribuição: as atividades humanas são realmente responsáveis pelas mudanças climáticas observadas, ou é possível que elas decorram de outras causas, como alguma forçante natural ou simplesmente de uma variabilidade espontânea dentro do sistema climático? O relatório do IPCC de 2001 concluiu que era provável (mais de 66% de certeza) que a maior parte do aquecimento desde a metade do século 20 era atribuída à atividade humana. O relatório de 2007 vai muito além, elevando essa avaliação para muito provável (mais de 90% de certeza).

A fonte de certeza adicional decorre de uma série de avanços isolados. Para começar, agora os registros contêm aproximadamente cinco anos a mais de dados, e o aumento das temperaturas globais nesse período tem sido bastante consistente com as projeções do IPCC para o aquecimento induzido por gases de efeito estufa feitas em relatórios anteriores desde os anos 90. Além disso, mudanças em outros aspectos do clima foram consideradas, como na circulação atmosférica ou na temperatura dos oceanos. Essas mudanças descrevem um cenário consistente, e agora mais amplo, da intervenção humana. Os modelos climáticos, fundamentais nos estudos de atribuições,foram melhorados e estão em condições de representar o clima atual e o do passado recente com grande fi delidade. Finalmente, algumas inconsistências aparentes notadas nos registros observacionais foram quase que completamente sanadas desde o último relatório.

A mais importante foi um aparente desacordo entre o registro instrumental da temperatura da superfície (que mostrou um aquecimento signifi cativo nas décadas mais recentes, consistente com o impacto humano) e os registros atmosféricos com balões e satélites (que mostraram um aquecimento menor do que o esperado). Vários novos estudos dos dados de satélite e de balão resolveram essa discrepância – tendo sido encontrado um aquecimento consistente na superfície e na atmosfera.

A maneira ideal para testar as causas das mudanças climáticas seria criar um experimento com dados reais, que replicassem o clima do século 20 com emissões constantes (e não crescentes) dos gases de efeito estufa. Mas, obviamente, um experimento como esse seria impossível. Por isso, os cientistas fazem o melhor dentro do possível: simulam o passado com modelos climáticos.

Desde a última avaliação do IPCC, dois importantes avanços aumentaram a confi abilidade no uso de modelos, tanto para a atribuição quanto para a projeção de mudanças climáticas. O primeiro é o desenvolvimento de um conjunto abrangente e bem coordenado de simulações de 18 grupos de modelagem do mundo todo, para estudo da evolução histórica e futura do clima terrestre. Utilizar vários modelos ajuda a quantifi car os efeitos das incertezas em vários processos climáticos no âmbito da simulação de modelos. Embora certos processos sejam bem compreendidos e bem representados por equações físicas (o fluxo da atmosfera e do oceano ou a propagação da luz e calor do Sol, por exemplo), alguns dos componentes mais críticos do sistema climático são menos entendidos, como as nuvens, as marés oceânicas e a transpiração da vegetação. Os especialistas em modelagem fazem aproximações para esses componentes, usando representações simplifi cadas chamadas parametrizações. A principal razão para desenvolver um conjunto de múltiplos modelos para as avaliações do IPCC é entender como a incerteza afeta a atribuição e a predição das mudanças climáticas. O conjunto da última avaliação contém um número sem precedentes de modelos e de experimentos realizados.

O segundo avanço é a incorporação aos modelos de representações mais realísticas dos processos climáticos. Esses processos incluem o comportamento dos aerossóis atmosféricos, a dinâmica (movimentos) do gelo marinho e a troca de água e energia entre o solo e a atmosfera. Hoje, há mais modelos que incluem os principais tipos de aerossóis e as interações entre eles e as nuvens.

Quando os cientistas utilizam modelos climáticos para estudos de atribuição, primeiramente rodam modelos de simulações somente com estimativas das infl uências naturais no clima nos 100 últimos anos, como variações nas atividades solares e grandes erupções vulcânicas. Depois rodam os modelos que incluem aumentos nos gases de efeito estufa e nos aerossóis induzidos pelo homem.

Os resultados desses experimentos são surpreendentes . Modelos que utilizam somente forçantes naturais não conseguem explicar o aquecimento global observado desde a metade do século 20 mas, quando incluem os fatores antropogênicos e os naturais, são bem-sucedidos. Padrões de grande escala de variações de temperatura também mostram que há mais consistência entre os modelos e as observações quando todas as forçantes são incluídas.

Dois padrões atestam a marca da influência humana. O primeiro é o maior aquecimento sobre os continentes do que sobre o oceano, e maior aquecimento na superfície do mar do que em camadas mais profundas. Esse padrão é consistente com o aquecimento induzido por gases de efeito estufa numa atmosfera em camadas: o oceano se aquece mais rapidamente por causa de sua grande inércia térmica. O aquecimento também indica que uma grande quantidade de calor está sendo absorvida pelo oceano, demonstrando que o reservatório de energia do planeta está desequilibrado. O segundo padrão de mudanças é que, enquanto a troposfera (a parte mais baixa da atmosfera) tem se aquecido, a estratosfera tem esfriado. Se a forçante dominante fosse causada por variações solares, o aquecimento seria esperado nas duas camadas. O contraste observado, no entanto, é exatamente o esperado pela combinação do aumento de gases de efeito estufa com a diminuição do ozônio estratosférico. Essa evidência coletiva, quando submetida a análises estatísticas cuidadosas, é responsável por boa parte da base que faz aumentar a certeza de que os efeitos humanos estão por trás do aquecimento global. As sugestões de que os raios cósmicos poderiam afetar as nuvens e, conseqüentemente, o clima se basearam em correlações que utilizavam registros limitados; em geral, elas não se sustentaram quando novos dados foram incluídos nos testes, e seus mecanismos físicos continuam especulativos.

E em relação às escalas menores? À medida que as escalas espacial e temporal diminuem, fica mais difícil atribuir as mudanças climáticas. Esse problema aparece porque as variações naturais de temperatura em pequena escala são menos “promediadas” e assim mascaram mais rapidamente o sinal analisado. No entanto, aquecimento continuado signifi ca que o sinal está emergindo em escalas menores. O relatório verifi cou que é provável que a atividade humana tenha afetado significativamente a temperatura em todos os continentes, menos a Antártida.

A influência do homem é perceptível também em alguns eventos extremos, como noites supreendentemente quentes ou frias, e a incidência de ondas de calor. É claro que isso não signifi ca que eventos extremos isolados (como a onda de calor na Europa em 2003) sejam simplesmente “causados” por mudanças climáticas induzidas pelo homem – geralmente esses eventos são complexos, com várias causas associadas. Mas significa que as atividades humanas tenham, muito provavelmente, afetado as chances de tais eventos ocorrerem.

Projeções de Mudanças Futuras
Como serão as mudanças climáticas no século 21? Essa questão crítica é discutida com simulações de modelos climáticos, baseados em projeções de futuras emissões de gases de efeito estufa e de aerossóis. As simulações sugerem que, para as emissões nas taxas atuais ou acima delas, muito provavelmente as mudanças no clima serão muito maiores do que as já observadas durante o século 20. Mesmo se as emissões fossem imediatamente reduzidas o bastante para estabilizar as concentrações de gases nos níveis atuais, as mudanças se arrastariam por séculos. Essa inércia no clima resulta de uma combinação de fatores, como a capacidade térmica dos oceanos do globo e as escalas de tempo milenares necessárias para que a circulação misturasse calor e dióxido de carbono nas profundezas do oceano e, dessa forma, entrasse em equilíbrio com as novas condições.

Em outras palavras, os modelos prevêem que ao longo dos próximos 20 anos, para uma faixa de emissões plausíveis, a temperatura global vai aumentar a uma taxa média de cerca de 0,2oC por década, próxima à observada ao longo dos últimos 30 anos. Cerca de metade desse aquecimento de curto prazo representa um “comprometimento” com as mudanças climáticas futuras, que surgirão da inércia da resposta do sistema climático às concentrações atmosféricas atuais dos gases de efeito estufa.

O aquecimento de longo prazo durante o século 21, no entanto, depende fortemente das futuras taxas de emissões – e as projeções cobrem uma ampla variedade de cenários, que variam de crescimentos econômicos muito rápidos a mais modesto e da maior ou menor dependência dos combustíveis fósseis. As melhores estimativas do aumento das temperaturas globais variam de 1,8oC a 4,0oC, com emissões maiores levando a temperaturas mais altas. Com relação aos impactos regionais, as projeções são mais confiáveis que nunca, e eles irão refletir os padrões de mudança observados ao longo dos últimos 50 anos (maior aquecimento sobre os continentes do que sobre os oceanos, por exemplo), mas a magnitude das mudanças será maior do que tem sido até agora.

As simulações também sugerem que a remoção de excesso de dióxido de carbono da atmosfera por processos naturais sobre os continentes e os oceanos se tornará menos eficiente à medida que o planeta se aquece. Essa mudança levará a uma porcentagem mais alta de dióxido de carbono emitido que permanecerá na atmosfera, o que irá acelerar o aquecimento global no futuro. Esse é um retorno positivo importante sobre o ciclo do carbono (o intercâmbio de compostos de carbono por todo o sistema climático). Embora os modelos concordem que as mudanças no ciclo do carbono representam um retorno positivo, a faixa de respostas continua muito grande, dependendo, entre outras coisas, de variações pouco conhecidas do seqüestro de carbono pela vegetação ou pelo solo, à medida que o clima se aquece. Esses processos são tópicos importantes de pesquisas em andamento.

Os modelos também prevêem que as mudanças climáticas afetarão as características físicas e químicas dos oceanos. As estimativas da elevação do nível do mar durante o século 21 variam entre 30 cm e 40 cm, dependendo das emissões. Cerca de 60% desse aumento é causado pela expansão térmica da água do oceano. No entanto, essas estimativas baseadas em modelos não incluem a possível aceleração do aumento nas perdas de gelo, observado recentemente nas camadas de gelo da Groenlândia e da Antártida. Embora a compreensão científica desses efeitos seja muito limitada, eles poderiam representar de 10 cm a 20 cm a mais para o aumento do nível do mar, e a possibilidade de que ocorram elevações signifi cativamente maiores não está descartada. A química dos oceanos também é afetada, na medida em que o aumento nas concentrações de dióxido de carbono da atmosfera os torna mais ácidos.

Algumas das maiores mudanças estão previstas para as regiões polares, incluindo aumentos significativos nas temperaturas em latitudes altas dos continentes, degelo das regiões de permafrost e violentas reduções nas extensões do gelo marinho no verão, na bacia do Ártico. Latitudes mais baixas provavelmente sofrerão mais ondas de calor, precipitações torrenciais e furacões e tufões mais fortes (mas talvez menos freqüentes). Até que ponto os furacões e tufões poderão se tornar mais violentos é tema de novas pesquisas.

É claro que algumas dúvidas importantes ainda permanecem. Por exemplo, como as nuvens vão se comportar com o aumento da temperatura? Esse é um item crítico que afeta todas as dimensões das previsões do aquecimento, e o conhecimento que se tem sobre a complexidade das nuvens ainda é muito precário.

Agora estamos vivendo numa era na qual tanto os efeitos do homem quanto da Natureza afetam a evolução futura da Terra e de seus habitantes. Infelizmente, a bola de cristal fornecida pelos nossos modelos climáticos fi ca turva para previsões além de um século ou pouco mais. Nosso conhecimento limitado às respostas tanto dos sistemas naturais quanto da sociedade aos impactos crescentes das mudanças climáticas completa nossas incertezas. No entanto, uma coisa é certa sobre o aquecimento global: as plantas, os animais e as pessoas viverão com as conseqüências das mudanças climáticas por pelo menos mais mil anos.

Revista Scientific American Brasil

Aquecimento global ou mera retórica?

11/12/2009

A China ganha bilhões com a venda de carbon-offsets (créditos de carbono; instrumentos financeiros criados com o objetivo de reduzir a emissão de gases causadores do efeito estufa). Mas, ao assumir crédito por projetos que, independentemente da questão climática, teriam sido de qualquer forma construídos, Pequim pode não estar jogando de acordo com as regras.

Nas colinas cobertas de florestas próximas à cidade de Harbin, na província de Heilongjiang, no nordeste do país, empresas chinesas estão construindo enormes turbinas eólicas que girarão 24 horas por dia para gerar energia limpa. O projeto representa a esperança de que a China, que recentemente superou os Estados Unidos como a maior fonte mundial de gases causadores do efeito estufa, tenha realmente abraçado o ambientalismo.

Recentemente, a China ultrapassou os EUA como a maior emissora de gases do efeito estufa

As 29 turbinas que deverão ser instaladas perto de Harbin representam também algo mais: a ideia amplamente aceita de que as forças do mercado podem ser utilizadas para ajudar na luta contra a alteração climática global. Segundo o tratado internacional conhecido como Protocolo de Kyoto, as empresas que transformam energia eólica em elétrica estão vendendo "créditos de carbono" que refletem as suas reduções de emissões de dióxido de carbono e outros gases que capturam calor na atmosfera terrestre.

Compradores corporativos e governamentais de países industrializados pagam pelos créditos como forma de obedecer às regras do Protocolo de Kyoto referentes à alteração climática. As verbas geradas deveriam encorajar projetos adicionais de energia verde sem obrigar os donos de velhas fábricas e usinas de energia a fecharem as suas instalações ou a implementarem caras reformas. Os créditos vendidos segundo o pacto de Kyoto geraram no ano passado quase US$ 7 bilhões (R$ 12,4 bilhões) em todo o mundo. Pequim ficou com quase dois terços do total de rendas com o comércio de carbono desde 2002.

Infelizmente, onde quer que tenham sido usados, os créditos de carbono foram objeto de manipulação. Em 4 de dezembro último, o comitê da Organização das Nações Unidas (ONU) que supervisiona o comércio internacional desses créditos recusou-se a aprovar dez usinas eólicas chinesas, incluindo o complexo em Harbin. A ONU acredita que estes projetos chineses teriam sido implementados mesmo sem as rendas obtidas com os créditos.

Se isso for verdade, as vendas de créditos não estimulariam a produção de energia limpa adicional. Os compradores de créditos receberiam direitos ambientais destituídos de valor verdadeiro, e as corporações chinesas obteriam um benefício imerecido. "Esta é a versão do século 21, referente às políticas climáticas, da tradicional venda de 'óleos curativos milagrosos' por parte de mascates", diz Michael Dorsey, professor de estudos ambientais da Universidade Dartmouth.

Funcionários da Comissão Nacional de Reforma e Desenvolvimento da China, que supervisiona as ambiciosas metas do país para a ampliação do uso de energia renovável, não respondeu às várias mensagens telefônicas solicitando comentários sobre a decisão da ONU.

Offsets sem benefícios
Apesar do potencial para a exploração do mercado de carbono, representantes de 192 nações estão discutindo formas de expandir este mercado na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, em Copenhague, que terminará em 18 de dezembro. Enquanto isso, o Senado dos Estados Unidos deverá cogitar no início do ano que vem a aprovação de amplos projetos de lei que incluam provisões permitindo que as indústrias evitem certas normas para a redução da poluição por meio da compra de créditos de carbono.

Desde que o Protocolo de Kyoto foi assinado, em 1997, muitos economistas, ambientalistas e políticos endossaram a ideia de que a venda de vários tipos de créditos de carbono (também chamados de offsets) constitui-se em um meio eficiente de alocar fundos para os projetos de energia limpa mais viáveis em todo o mundo. Atualmente existem vários sistemas de comércio desses créditos; a ONU supervisiona aqueles que operam de acordo com o que ficou estabelecido no acordo de Kyoto.

O sucesso disso, no entanto, baseia-se em créditos que estimularem atividades que não teriam ocorrido na ausência de incentivos financeiros especiais. David G. Victor, professor da Escola de Relações Internacionais e Estudos do Pacífico da Universidade da Califórnia em San Diego, calcula que entre um terço e dois terços de todos os créditos de carbono concedidos a países em desenvolvimento segundo o que está previsto no acordo de Kyoto beneficiaram empresas cujos projetos teriam sido construídos mesmo sem esses créditos.

"Os créditos de carbono oferecem às corporações a promessa de que elas levarão vantagem em qualquer circunstância", diz Michael W. Wara, professor de direito da Universidade de Stanford especializado em políticas ambientais. "O problema é que eles não funcionam muito bem".

Burlando o sistema?
As dez usinas eólicas chinesas foram rejeitadas, em parte, porque os funcionários da ONU temem que Pequim esteja na verdade reduzindo o seu apoio financeiro à energia eólica em uma tentativa de ajudar os projetos de energia limpa do país a qualificarem-se para os pagamentos de carbono recebidos do exterior. O governo chinês pode estar fazendo tal coisa por meio da redução dos valores que serão pagos às usinas eólicas pela eletricidade gerada, segundo os funcionários da ONU.

Os construtores da usina eólica de Harbin estimavam inicialmente que o projeto renderia a eles um lucro anual de 8,76%. Isso faria com que a usina eólica não se qualificasse para receber os fundos de carbono, já que o índice máximo para que uma empresa beneficie-se das vendas de créditos de carbono é de 8%. O governo chinês aparentemente respondeu à situação reduzindo o valor que ele deveria pagar pela eletricidade de Harbin, reduzindo a margem de lucro do projeto para menos de 8%.

Em 4 de dezembro, a ONU anunciou que colocaria um fim àquilo que parecia ser a tentativa por parte da China de burlar o sistema. Lex de Jonge, presidente do comitê da ONU que fiscaliza os créditos de carbono, disse em uma declaração que o seu departamento "tem que preservar a integridade ambiental do mercado de carbono". Ele acrescentou: "Isso significa registrar somente os projetos que apresentariam reduções de emissão adicionais quando comparadas àquelas que ocorreriam sem que houvesse o projeto".

Alguns financiadores da energia eólica que seriam beneficiados por um robusto mercado de carbono contestam a lógica da ONU. Segundo eles, a rejeição dos créditos de carbono para os projetos chineses assustará os investidores em energias renováveis. "Sem essas rendas (derivadas das vendas de créditos), muitos investidores sairão deste mercado", adverte Steve Lyons, conselheiro geral da China Wind & Energy, uma companhia de Hong Kong que ajuda a construir usinas eólicas na China. "Para os construtores internacionais, o retorno não será suficientemente elevado sem os créditos de carbono".

Pequim pode não ser o único governo que recua de uma posição pró-ambientalistas devido ao desejo de gerar créditos lucrativos de carbono.

A Nigéria está encorajando a empresa estatal Nigerian National Petroleum Corporation e outras companhias petrolíferas do país a buscarem créditos pela redução da queima de gás natural, um subproduto da prospecção de petróleo. A queima gera grandes quantidades de gases que capturam calor, o que contribui para a mudança climática.

Mas a queima de gás já está proibida na Nigéria. Agora a companhia petrolífera nacional está fazendo um lobby contra uma nova legislação que reforçaria a proibição, de forma que o pais possa beneficiar-se das vendas de créditos de carbono.

O diretor-geral da Nigerian National Petroleum, Mohammed S. Barkindo, defendeu a estratégia em uma conferência sobre a alteração climática em Abuja, realizada em novembro passado. "Qualquer medida ou legislação para abolir a queima de gás enfraquecerá o critério para o registro de projetos junto à ONU para a venda de créditos", segundo a publicação nigeriana NEXT.

Levi Ajuonuma, porta-voz da companhia nacional de petróleo nigeriana, diz que está procurando a melhor maneira de reduzir a queima de gás. "Os principais motivos para a busca dos créditos de carbono não são financeiros", afirma eles. "São ambientais".

No entanto, Victor, o professor da Universidade da Califórnia, adverte que a distorção dos efeitos do comércio de créditos de carbono está apenas começando. "Não é de se surpreender", afirma Victor. "Os incentivos para que se faça isso têm um valor de bilhões de dólares".

Tradução: UOL

Der Spiegel

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Monções - Colheita de água

A Índia vive à mercê das monções desde tempos imemoriais. Agricultores enriquecem a terra e a vida vai esculpindo encostas para captar a água da chuva.
Um campo empoeirado próximo ao vilarejo de Morabgi oferece pastagem rala para as ovelhas de Janoba Tambe, de 65 anos. Rebanhos como o dele, conhecidos como "cheques ambulantes", com frequência são vendidos animal por animal, na medida em que o proprietário precisa de dinheiro. Essa terra foi tão devastada pela falta de chuva que os dois filhos de Tambe precisaram se mudar para outro sítio e trabalhar como empregados.
Foto de Lynsey Addario

Um caprichoso céu de monção decepciona os agricultores que atravessam o rio Bhima em uma peregrinação hindu a Pandharpur. Em vez da tromba d'água, as nuvens mandam um chuvisco.
Foto de Lynsey Addario
Como as novas regras sobre as vertentes em Satichiwadi proíbem cortar árvores, Nandabai, à esquerda, e Sakhuba Thama Pawar preparam uma refeição para 20 parentes com fogo abastecido por pequenos galhos.
Foto de Lynsey Addario
Seguindo uma rotina matutina antiquíssima, mulheres em um local próximo a Darewadi tiram água do poço para cozinhar, beber e lavar naquele dia. Na medida em que o programa de conservação foi progredindo no vilarejo e o nível da água subiu, este poço também passou a ser capaz de fornecer irrigação para as plantações durante a estação da seca.
Foto de Lynsey Addario
A família Karande planta e vende cebola, uma cultura que exige muita água, beneficiando-se de mais de uma década de remodelação do perfil do terreno em Darewadi. Antes, subsistiam com painço arrancado a muito custo dos campos ressequidos.
Foto de Lynsey Addario
Em três anos, aldeões de Satichiwadi cavaram uma vala para captar a chuva que corre pela encosta. Os sem terra são remunerados pela tarefa, e quem possui, beneficiados pelo aumento do nível de água no lençol freático, faz trabalho parcialmente voluntário.
Foto de Lynsey Addario
Quando chegam as chuvas de monção, entre junho e setembro, um tapete verdejante revigora os campos cultivados e os pastos.
Foto de Lynsey Addario
Na estação seca, as plantações de Satichiwadi queimam sob o sol impiedoso.
Foto de Lynsey Addario
Gozando o luxo de ficar ensopados, convidados do parque Wet’N Joy, perto de Shirdi, dançam músicas de Bollywood. Usar água na região assolada por secas para fins não essenciais priva os agricultores de um recurso vital.
Foto de Lynsey Addario
Narya Pathari, de 10 anos, migrou com a família de Beed para cortar cana-de-açúcar nas proximidades de Sangamner. Negócio que vale centenas de milhões de dólares por ano no estado de Maharashtra, o plantio da cana exige irrigação copiosa. Canais carregam água subsidiada pelo governo de reservatórios criados por grandes represas.
Foto de Lynsey Addario
Vilarejos que não aproveitam suas vertentes, como Yethewadi, dependem de cascatas de caminhões-pipa para reabastecer seus poços.
Foto de Lynsey Addario
Alinhar ao centroDurante a temporada da seca, a chegada de um caminhão de água dá início a uma correria na cidadezinha de Beed. Para recolher a água, garotos pulam em cima do caminhão e enfiam mangueiras lá dentro. As mulheres colocam o fluxo em latões e também em recipientes de metal com gargalo fino, que elas vão carregar para casa em cima da cabeça.
Foto de Lynsey Addario

Revista National Geographic

Desafios entre as voçorocas

Desafios entre as voçorocas
A desertificação no Piauí, que afeta a região há mais de seis décadas, pode ser revertida com soluções viáveis e boa vontade política

texto e fotos Brito Júnior

Com um pano velho nas mãos, o sertanejo retira os últimos vestígios de orvalho, deixados durante a madrugada sobre o para-brisa da caminhonete. Na caçamba, além de parte da família, carrega toda a produção de sua pequena propriedade, que será comercializada em mercados públicos e feiras a quilômetros dali. O personagem em questão é Joaquim Ferreira, o Umbilino, como prefere ser chamado o pequeno produtor rural de Gilbués, município localizado a 750 km de Teresina, capital do Piauí. Ele vive em sua propriedade de 110 hectares, no bairro de Enseada, onde produz quase todas as hortaliças comercializadas na região. Suas terras estão localizadas em uma área de vazante, com água o ano todo, dádiva possível graças a uma pequena lagoa existente dentro da propriedade. Com a esposa Osmandina e alguns de seus nove filhos, Umbilino entra no caminhão e se prepara para percorrer os 35 km que o separa do centro da cidade, onde irá vender sua produção no galpão do pequeno mercado municipal - na verdade, um estábulo coberto. Lá, cerca de 30 famílias de agricultores e magarefes (vendedores de carnes) aportam em todas as madrugadas de sábado.

No trajeto até o mercado, o cenário que se avista não é dos mais motivadores. Ali, a terra é uma imensidão árida e ruborizada, não plana, revolvida aos montes, como ondas vermelhas, cortada no cerne até expor seu subsolo. A visão que Joaquim tem, ao se retirar de suas terras férteis e irrigadas, é a mesma da grande maioria dos sertanejos menos afortunados que ele, que fazem de suas janelas molduras para uma paisagem arrasada e seca, que adentra suas plantações e quintais. O processo erosivo de degradação dos solos que se abate sobre Gilbués e outras seis cidades do cerrado piauiense é um problema antigo, afeta a população há mais de seis décadas. Muito já se falou sobre o processo de desertificação nessas terras, mas o tema ainda é tabu na região, evitado ao máximo durante as conversas entre os moradores locais.

Gilbués, ao lado de Monte Alegre, Corrente e Barreiras, é o maior núcleo de desertificação do Brasil, com um processo degradante que atinge 770 mil hectares, em 7.780 km2. É como se toda a região metropolitana da Grande São Paulo fosse tomada por erosões imensas.

Apesar desse triste cenário, pesquisas recentes mostram que há, sim, riquezas a explorar na região e que o processo degradativo "pode ser controlado e até revertido nestas áreas", como atesta Adeodato Salviano, engenheiro agrônomo com doutorado em ciência dos solos pela Universidade de São Paulo (USP). Ele é membro-fundador da Fundação Agente, que desenvolve atividades de natureza científica, técnica e educativa nas áreas da agronomia e meio ambiente, e há seis anos acompanha de perto o processo de desertificação de Gilbués. Segundo Salviano, amostras pontuais do subsolo da região apontaram altos índices de minerais e macronutrientes, como fósforo, cálcio e magnésio, interessantes à agronomia. "O problema está na primeira camada da terra, chamada de solo, e que compreende entre 1 m e 1,5 m de profundidade. Ela é extremamente fragmentada e arenosa, retendo pouca água e quase nenhum material orgânico", explica. Isso causa a falta de liga no solo, deixando-o exposto às ações externas, como as fortes chuvas que acabam por varrer as terras, abrindo fendas que, aos poucos, se transformam em enormes voçorocas, os enormes buracos com até 15 m de profundidade.

O solo é pobre em matéria orgânica, restos vegetais e animais, mas pode ser trabalhado, pois tem recuperação muito fácil devido ao subsolo rico. "Seria preciso introduzir capim, cana ou algodão, entre outras culturas, para aumentar a matéria orgânica do solo. Revegetar as áreas é fator essencial para a recuperação da capacidade de retenção hídrica, maior problema encontrado no solo da região", explica Salviano. Ele aponta que o simples reflorestamento, em poucos anos, afetaria o nivelamento do terreno, recuperando as áreas esburacadas, pois as voçorocas são frágeis e naturalmente tendem a nivelar-se.

Mas não é só a aparente fragilidade do solo que garante o avanço do processo de degradação. Para atingir o atual estágio de erosão, o solo da região contou com a ação do homem. Durante décadas se desmatou, poluiu e queimou as terras da região, para uso em toda sorte de atividades, mas principalmente a pecuária extensiva, a agricultura familiar e o garimpo de diamantes. Sem contar as enxurradas que caem num curto período do ano, entre os meses de janeiro e abril, e que chegam a medir 1.400 mm, o equivalente a toda a água que atinge a cidade de São Paulo em um ano inteiro.

Uma pequena volta por Gilbués é o suficiente para o visitante observar também a incompreensão e a falta de consciência da população para questões básicas de educação ambiental. As ruas costumam ficar repletas de lixo, amontoado em frente às casas e comércios, às vezes durante dias, à espera de um dos velhos caminhões de carroceria aberta que a prefeitura usa para a coleta pública.

Outro hábito é a queima de lixo nos quintais das casas, sempre à noite. Em muitas manhãs, é comum acordar e se deparar com camas e sofás cobertos de cinzas. "Meu filho, quando chove forte, a água vem desaforada, invade a casa e, se não cuidarmos, leva tudo. Antes não tinha isso, agora até o lixo dos vizinhos entra dentro da minha casa", conta Ildarci Borges, moradora do bairro Santo Antônio. No seu quintal já é visível a formação de um declive, característica primeira para a formação das voçorocas. Apesar dos indícios claros de que algo não vai bem, boa parcela da população é relutante em aceitar a existência do problema. "Voçorocas? Ah, essas coisas já existiam mesmo antes de eu nascer. Brinquei muito no meio desses buracos quando era ainda uma criança", diz Turene Mascarenhas, 78 anos vividos nessas terras. Ex-comerciante, Mascarenhas conta que durante muitos anos foi de caminhão até Brasília, onde comprava mercadorias para serem revendidas em Gilbués. Segundo ele, a paisagem já era a mesma, sempre seca e desolada, com os "buracos a perder de vista".

Mascarenhas se lembra de que em outros tempos a população vivia quase que exclusivamente do garimpo de diamantes. Um ou outro cidadão se fixava à terra, vivendo de pequenas plantações e criação de gado. Após décadas de extração, o garimpo minguou, devido à escassez de diamantes em pequenas profundidades, o que impossibilita sua extração por métodos simples, como os aplicados pelos garimpeiros da região. Desde então, as famílias passaram a adotar a pecuária e a agricultura de base como fonte de renda. Apesar da dificuldade de extração, o garimpo ainda é o lampejo idílico que alimenta a mente do homem do cerrado. A atividade é explorada há seis décadas, e talvez por este motivo tenha criado em alguns a associação com o processo de degradação. "Isso é uma ideia errônea, pois as escavações do garimpo, apesar de agressivas, são muito pontuais e não são extensas o bastante para justificar a situação encontrada na região", explica Salviano.

Atualmente, o garimpo não representa muito para a economia da região, pois não movimenta o comércio de maneira significativa, nem gera empregos de forma substancial. Muito diferente do que era nos tempos áureos do garimpo, quando milhares de pessoas chegaram a essas terras com o brilho do diamante nos olhos. "O cascalho dava na flor da terra, era só passar a mão e lavar para encontrar as pedrinhas. Quando chovia, era possível ver os diamantes brilhando no chão, no meio da lama", lembra Herculano Martins de Sousa, o Cula, 85 anos, que veio da Bahia nos anos 1940, tornando-se um dos primeiros garimpeiros da região. "Mas, em algumas situações, a gente tinha de cavar fundo, até 12 m, para encontrar o cascalho e, às vezes, morria muita gente", conta.

Nos olhos do velho garimpeiro, de voz rija, aperto de mão forte e lucidez de pensamento, pode-se notar mais que a tristeza pela perda dos amigos. Existe uma clausura emocional que é comum aos demais moradores do povoado Boqueirão, antigo eldorado de baianos e migrantes de toda parte, que hoje em nada lembra a pujança de outrora. Havia em Gilbués e no Boqueirão uma estrutura completa de cidade média, bem diferente do que é hoje. Existiam muitos restaurantes, bares, discotecas, hotéis e pousadas, além de um comércio bastante movimentado. José Fernandes, o garimpeiro Ivo, 88 anos, conta que levava uma vida de festas, mulheres e bebedeiras. O saldo de toda essa luxúria foram nove filhos, dos quais somente cinco foram legitimados. Ivo diz que nunca soube ganhar e acumular dinheiro. "Quem lucrava com o garimpo eram os faisqueiros, atravessadores que chegavam a obter 600% de lucro, revendendo os diamantes comprados no garimpo, direto das mãos dos garimpeiros." Enquanto fala, Ivo aponta para a terra e diz que o maior diamante que encontrou tinha "4,8 quilates". "O maior que vi alguém achar tinha 14 quilates, parecia uma pitomba", relembra.

Para velhos garimpeiros, como Cula e Ivo, o destino reservou a mesma e já conhecida sorte do povoado Boqueirão - uma vida isolada e medida em dias empoeirados, tocada com sofreguidão e assistindo da varanda a partida dos moradores mais jovens. Situação não muito diferente é a vivida pelos moradores de Vaqueta, a 6 km de Gilbués. Às portas do povoado, o visitante é recebido por uma enorme voçoroca na estrada, em frente à única igreja do local. No último incidente grave, a caminhonete utilizada no transporte de estudantes chegou a tombar uma das rodas sobre a cratera. "Não morreu ninguém porque Deus não deixou", diz o produtor rural Manoel Rodrigues, 75 anos, outro velho sertanejo que ainda luta pela sobrevivência nestas terras. "Só tem promessas por essas bandas, mas nunca fizeram nada. E os buracos aumentam junto com as promessas, ninguém acredita mais em solução."

COMÉRCIO LOCAL
O pequeno mercado municipal do centro de Gilbués, onde os produtores chegam ainda de madrugada para vender suas mercadorias: frutas, hortaliças e carnes


Rodrigues conta que já teve metade de uma de suas plantações tomadas por erosões oriundas do riacho Sucuruiú, que é sazonal e só corre durante o período de chuvas. A microbacia do riacho Sucuruiú engloba boa parte das terras erodidas no município de Gilbués e tem sido alvo de um projeto de revitalização das terras, em uma parceria dos governos federal e estadual, e que conta com recursos da ordem de R$ 2,9 milhões. Segundo fontes da Secretaria de Meio Ambiente do Piauí, as verbas estão liberadas e o projeto foi pré-aprovado, aguardando somente questões técnicas para a aprovação e posterior licitação das obras, que preveem ações de educação para técnicas de manejo de solo, pesquisa e aplicação de culturas ideais à contenção das erosões, além da construção de um viveiro para reprodução de mudas.

Todas as etapas do projeto do governo são de caráter técnico e agrícola, não deixando indícios de uma aposta das autoridades na questão social do problema. Aliás, nem mesmo os políticos locais querem tocar nesse assunto, como se pôde observar nas últimas eleições para prefeito. Se os políticos locais não demonstram interesse pelo problema, cabe aos diretamente afetados a tarefa de alardear suas agruras, mas o preço a se pagar é alto. "Fui muito criticada depois de ter aparecido no programa de televisão. Disseram que eu tinha dito um monte de mentira. Mas eu sou uma mulher da roça e só falo a verdade", relata Expedita Batista, de 71 anos, moradora de Campo Roçado, zona rural de Gilbués. Expedita refere-se a uma entrevista que deu para um programa de televisão exibido em rede nacional. Nas imagens, ela aparece de enxada na mão, trabalhando a terra ao lado de uma profunda erosão. Logo depois, aparece no fogão a lenha, cozinhando fava. A reportagem relata ainda o périplo percorrido por sua família Brasil afora, com boa parte dos dez filhos vivendo em São Paulo e outras capitais. "Pediram para eu fazer uma simulação de como seria o trabalho na roça, então peguei a enxada e fui mostrar como faz, mas eles filmaram e colocaram a imagem na TV. Na verdade, não tenho o hábito de pegar em enxada, participo mais da colheita, que é mais leve", diz.

As afirmações de Expedita confirmam uma realidade, a constante visita de jornalistas que transformam sua breve passagem em previsões apocalípticas, como a extinção total da cidade em um prazo de dez anos, veiculada em uma reportagem impressa, fato que, segundo os populares, ajudou muito a espantar investimentos para a região. Até a ausência de operadoras de telefonia celular é justificada pela população como efeito das inúmeras matérias "especulativas". Fato é que a revolta dos populares e a recusa em tocar no assunto só isola ainda mais a comunidade do problema.

Por outro lado, há aqueles que conseguem encarar o problema de frente e superar os obstáculos. É o caso de Honório Siqueira, um pequeno produtor da localidade Compra Fiado, distante 25 km de Gilbués. Ele resolveu abandonar a vida de comerciante na cidade e engajou-se na pequena propriedade de 12 hectares que adquiriu cinco anos atrás. Hoje, diz que está plenamente satisfeito pela opção que fez, só reclamando da falta de investimentos que facilitariam o escoamento de sua pequena produção, como a pavimentação da estrada em cascalho e a chegada da energia elétrica. Honório produz com facilidade mais de uma dúzia de artigos, como mamão, laranja, acerola, manga, buriti e feijão, colhidos da terra sem a necessidade de correções ou uso de técnicas mais sofisticadas de plantio. Com relação à água, toda a região é abastecida por um denso lençol freático, facilmente alcançado com a perfuração de poços, que chegam a apenas 20 m em algumas regiões. Com exemplos dentro da própria comunidade e a aceitação do problema por populares e autoridades, seria razoável dizer que o problema de Gilbués está mais ligado à questão humana que natural. O velho Turene, que passa os dias relembrando seus tempos de menino, encontra outro motivo para a degradação. "Noto que chove um pouco menos que nas décadas anteriores e que agora faz mais calor. Também venta mais. Mas tem uma vantagem nos fortes ventos, pois vez por outra uma moça de saias é surpreendida", sorri.

Revista Brasileiros

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Como a indústria farmacêutica lucra com a gripe suína

26/11/2009
Kerry Capell*
Outrora menosprezadas pelas companhias farmacêuticas como arriscadas e pouco lucrativas, as vacinas para combater doenças como a gripe suína são atualmente um negócio em crescimento para a Novartis e outras empresas.

A Novartis, uma gigante do setor farmacêutico, deu um impulso aos esforços dos Estados Unidos para combater gripes pandêmicas com a inauguração em 24 de novembro da maior instalação do país para cultura de células em grande escala. Situada em Holly Springs, no Estado da Carolina do Norte, a fábrica da Novartis, que recebeu verbas federais de US$ 487 milhões (R$ 841 milhões) , representa um grande marco na utilização de tecnologias de produção biotecnológica para substituir o processo de fabricação utilizado há 50 anos baseado na produção de vacinas a partir de ovos. "Esta tecnologia tem o potencial para contornar o tradicional método de utilização de ovos, aumentando o grau de confiança e a produtividade da produção de vacinas", afirma o presidente da Novartis, Daniel Vasella.

Em Dresden, na Alemanha, funcionário do laboratório GlaxoSmithKline segura amostra do vírus H1N1, da gripe suína, antes de realizar testes para a fabricação de vacinas contra a moléstia


A Novartis é uma das duas fabricantes de vacinas que utilizam o novo método baseado em células. A fábrica da Novartis produzirá vacinas contra gripe em células de rim de cão, e não em ovos de galinha, eliminando desta forma um mês do período total estimado de três a seis meses necessário para a produção da vacina utilizando ovos. Segundo a Novartis, a fábrica será capaz de produzir 50 milhões de doses da vacina contra a gripe sazonal e 150 milhões de doses da vacina pandêmica para os Estados Unidos em um período de seis meses após a declaração de uma pandemia. No entanto, só a partir de 2011, na melhor das hipóteses, a fábrica será capaz de começar a produzir vacinas a partir de células.

Adjuvantes e a vacina contra a H1N1
Mesmo assim, qualquer futuro aumento da capacidade de produção é uma boa notícia para os Estados Unidos. A atual escassez de vacinas contra a H1N1 (também conhecida como gripe suína) nos Estados Unidos tem demonstrado a necessidade de tecnologias de produção mais novas e confiáveis. Embora 50 milhões de doses da vacina contra a gripe suína tenham sido distribuídas nos Estados Unidos até o momento, isso só é suficiente para atender a um terço dos 160 milhões de norte-americanos que o Centro de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês) gostaria de ver inoculados.

Uma grande parte do problema reside no fato de a United States Food & Drug Administration (FDA, agência do governo norte-americano responsável pela fiscalização de alimentação e remédios), ao contrário da sua congênere europeia, ainda não ter aprovado o uso de adjuvantes, aditivos que aumentam a resposta do corpo às vacinas, possibilitando a redução da dose necessária. A Novartis já fabrica vacinas a partir de células contra a gripe sazonal e a gripe suína com o seu próprio adjuvante licenciado em uma fábrica em Marburg, na Alemanha.

A vacina sazonal da Novartis é aprovada na Europa e no Japão, e a vacina pandêmica recentemente recebeu aprovação regulatória na Alemanha e na Suíça. Vasella diz que os testes demonstraram que o uso de adjuvantes poderia possibilitar que se dobrasse, ou até quadruplicasse, o suprimento de vacina. "Cerca de 45 milhões de doses da vacina produzida a partir de células com adjuvante já foram administradas com segurança, de forma que ela já é bem aceita em outros países", explica Vasella. Ele está convicto de que a tecnologia baseada em células acabará sendo aprovada nos Estados Unidos. E, se a pandemia aumentar subitamente de forma explosiva, a FDA provavelmente tomará medidas rápidas no sentido de aprovar o uso de adjuvantes.

A ressurgência de vacinas
Não faz muito tempo que as vacinas eram consideradas o produto menos lucrativo da indústria farmacêutica. A sua complexidade e altos custos de produção - aliados a margens de lucro relativamente baixas e ao risco de litígios importantes - desencorajaram os fabricantes, com a exceção de uns poucos como a Novartis, a britânica GlaxoSmithKline, a francesa Sanofi Aventism, a Merck, de Nova Jersey e a Wyeth - que atualmente é uma unidade da Pfizer.

No entanto, mais recentemente tem havido um certo renascimento do setor de vacinas. Isso deve-se em parte ao fato de a indústria farmacêutica estar enfrentando sérios desafios no seu setor de drogas fornecidas mediante prescrição médica. Haverá uma perda de US$ 135 bilhões (R$ 233 bilhões) referente à venda de remédios cujas proteções de patente expirarão nos próximos cinco anos, e há poucos produtos na linha de produção das companhias para repor essa perda, afirma Alan Sheppard, consultor da IMS Health.

As vacinas são classificadas como drogas biológicas, que são caras e difíceis de produzir, mas isso faz com que elas sejam menos vulneráveis à competição dos genéricos produzidos por fabricantes mais fracos. Além do mais, com a dificuldade cada vez maior de criação de drogas altamente rentáveis, o sucesso da vacina pediátrica da Wyeth contra pneumonia, a Prevnar, que atualmente gera mais de US$ 3 bilhões (R$ 5,2 bilhões) em vendas anuais, provou que vacinas podem ser lucrativas.

Com o mercado global de remédios vendidos mediante receita médica, no valor de US$ 780 bilhões (R$ 1,35 trilhão) crescendo lentamente a uma taxa anual de apenas 5%, muitos analistas percebem que o setor de vacinas, que deverá experimentar um aumento de 13% anuais até 2012, oferece o maior potencial de lucros. "Mais companhias estão investindo em vacinas como forma de diversificação, e novas tecnologias, como a cultura de células, estão possibilitando que elas produzam vacinas mais sofisticadas", afirma Michael Boyd, diretor geral da Federação Internacional de Fabricantes e Associações de Produtos Farmacêuticos (IFPMA, na sigla em inglês).

A vacina contra a gripe aquece os negócios da indústria farmacêutica
Basta ver o crescimento de recentes negócios envolvendo vacinas. Devido à sua aquisição da Wyeth, no valor de US$ 68 bilhões (R$ 117,4 bilhões), a Pfizer participa agora do setor de vacinas. Em 28 de setembro, a Abbott Laboratories desembolsou US$ 6,6 bilhões (R$ 11,4 bilhões) para a compra da fabricante belga de vacinas Solvay, enquanto que a Johnson & Johnson adquiriu 18% da fabricante holandesas de vacinas Crucell. A GSK - que se beneficiou com a demanda por vacinas contra a gripe suína - também fechou recentemente um negócio de dez anos no valor de US$ 2,2 bilhões (R$ 3,8 bilhões) para fornecer a sua vacina contra pneumonia ao Brasil.

À medida que as economias dos países em desenvolvimento crescem e os gastos com a saúde aumentam, as vacinas também oferecem às companhias farmacêuticas novos mercados atraentes. Em junho passado, a GSK criou uma joint-venture no valor de US$ 78 milhões (R$ 135 milhões) com a chinesa Shenzhen Neptunus Interlong Bio-Technique para desenvolver vacinas contra gripe. Um mês depois, a Sanofi adquiriu ações majoritárias da fabricante indiana de vacinas Shantha Biotechnics, calculando que a companhia valha US$ 824 milhões (R$ 1,4 bilhão). E, em 4 de novembro, a Novartis comprou 85% das ações da companhia privada chinesa de vacinas Zhejiang Tianyuan por US$ 125 milhões (R$ 216 milhões).

Uma aplicação de vacina sazonal no braço
No curto prazo, pelo menos, as vendas da vacina contra a gripe suína estimularão bastante as vendas de três grandes fabricantes europeias do produto. A GSK afirma que as previsões dos analistas de que as vendas de vacinas contra a H1N1 no quatro trimestre deste ano chegarão a US$ 1,7 bilhão (R$ 2,9 bilhões) são bastante acuradas, e há previsões de números similares para o primeiro trimestre de 2010.

A Novartis diz esperar vendas no valor de US$ 700 milhões (R$ 1,2 bilhão) em vacinas contra gripe suína apenas no quarto trimestre deste ano. E a Sanofi-Aventis prevê que as suas vendas deste tipo de vacine cheguem a US$ 500 milhões (R$ 863 milhões) no quarto trimestre.

Mas Vasella observa que o setor de vacinas contra gripe é sazonal e imprevisível. No longo prazo, outras áreas como o câncer e a meningite oferecem maior oportunidade. De fato, os analistas dizem que as duas vacinas contra a meningite produzidas pela Novartis têm um potencial de vendas de bilhões de dólares. A Novartis tem muito a ganhar com o sucesso dessas vacinas, porque os analistas da Sanford C. Bernstein calculam que as vacinas e diagnósticos da companhia gerarão em 2009 vendas de US$ 1,5 bilhão (R$ 2,6 bilhões), contra prejuízos de US$ 257 milhões (R$ 444 milhões) com outros produtos.

Vasella diz que o aumento de investimentos em pesquisa, desenvolvimento, testes clínicos e fabricação de vacinas é um dos motivos para os prejuízos. Por exemplo, a companhia investiu US$ 200 milhões (R$ 345 milhões) nos últimos três anos na construção de uma segunda instalação em Liverpool, na Inglaterra, dedicada à produção da vacina contra a gripe suína fornecida aos Estados Unidos. "Esse tipo de investimento só se justifica como parte de uma estratégia de longo prazo", diz Vasella. Nós acreditamos que os nossos investimentos terão retorno".

*Capell escreve para a sucursal da "BusinessWeek's" em Londres.

Tradução: UOL

Der Spiegel

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