sábado, 31 de dezembro de 2011

A fé que vem da África

A fé que vem da África
Entenda os cultos brasileiros inspirados em rituais que atravessaram o Atlântico
Angélica Moura | 06/07/2010 04h14
Os 3,5 milhões de africanos que vieram para o Brasil como escravos ao longo de 300 anos deixaram marcas profundas. Uma das heranças mais marcantes desse encontro é a religiosidade de origem afro. Ao desembarcar em estados tão distantes entre si como Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, os escravos criaram diversos novos nichos da religião originada do outro lado do oceano Atlântico.

Os africanos acreditam que o mundo é constituído de forças. Tudo e todos, sejam seres vivos ou inanimados, possuem uma força vital (chamada de "ntu" pelo povo bantu, originário da África subsariana, e "axé" pela nação ioruba, vinda da região de Nigéria, Benin e Guiné). De acordo com essa fé, os seres humanos podem manipular essas forças. Graças à mediunidade, eles estabelecem a comunicação entre a força visível (o homem) e a força não visível (os orixás ou os antepassados).

"Nos povos iorubas, a força vital é movida através da incorporação de forças da natureza, representadas pelos orixás. Nos povos bantus, a força vital é manipulada pela incorporação da força humana dos antepassados", afirma Dilma de Melo Silva, professora de Cultura Brasileira da USP. Segundo Eduardo Oliveira, no livro Cosmovisão Africana no Brasil, "as religiões africanas são eminentemente comunitárias. O importante é o bem-estar de todos os membros do grupo". Ou seja, tanto aqui como na África, o culto religioso visa a harmonia espiritual e social.
Os mais famosos
A rota de oito cultos praticados por aqui

Os mais famosos

Catimbó
Mais comum na Amazônia, é marcado pela influência indígena. As entidades cultuadas são caboclos e um instrumento dos índios, o maracá, está sempre presente.

Tambor de Mina
Nome dado no Maranhão à religião africana praticada de acordo com a tradição jeje-nagô. Os filhos de santo incorporam voduns, orixás e caboclos.

Xangô
Praticado principalmente em Pernambuco. As diferenças com relação ao candomblé são sutis: o dia de oferenda ao orixá ou a fixação do couro no atabaque.

Candomblé
Comum principalmente na Bahia, segue a tradição ioruba e cultua os orixás. Cada um contém uma qualidade específica da natureza.

Culto aos Egunguns
Praticado sob direção de um sacerdote mais velho, que evoca as almas dos mortos. Encontrado principalmente na ilha de Itaparica, na Bahia.

Islamismo
Trazido pelas nações Haussás, Malês e Fula (vindas do reino muçulmano do vale do Niger), em 1835 o Islã negro liderou a Revolta dos Malês em Salvador.

Umbanda
Nome dado em vários estados, em especial Rio e São Paulo, para a fé que assimila várias linhas religiosas: culto aos ancestrais, culto aos orixás, kardecismo e cristianismo.

Batuque
Fruto de religiões dos povos da costa da Guiné e da Nigéria, de nações Jeje, Ijexá, Oyó e Oba, cultua os orixás e é encontrado principalmente no Rio Grande do Sul.

Iorubas
Várias nações ocupavam essa área: Mina, Níger, Fanti-Aschanti, Oyo, Jeje, Ketu e Ijexá. Seus moradores cultuavam voduns e orixás.

Bantu
Na região que comportava as nações de Benguela, Angicos, Macuas e Cabinda, praticava-se o culto aos ancestrais.

Palavras de crença
Expressões marcantes da religiosidade africana
Banto: grupo etnolinguístico localizado principalmente ao sul do deserto do Saara.

Ioruba: idioma da família linguística que habitava a região que hoje corresponde a Nigéria, Benin e Guiné.

Eguns: mortos.

Orixás: ancestrais divinizados.

Exu: mensageiro dos orixás e dos homens.

Macumba: significa "o tambor".

Padê: despacho oferecido antes de começar os rituais religiosos.

32% da energia ofertada no país vêm da agroenergia

Da redação do jornalextra.com.br

A agroenergia é responsável por cerca de 32% da energia ofertada no Brasil, o que coloca o país na liderança mundial do setor. Quase 48% do total de energia ofertada são obtidas de fontes renováveis, como a biomassa, a energia hidroelétrica e os biocombustíveis. A situação brasileira destaca-se no cenário internacional, pois 85% da energia consumida no mundo vêm de fontes não-renováveis, que se encontram na natureza em quantidades limitadas e se extinguem com a utilização. Uma vez esgotadas, as reservas não podem ser regeneradas. Exemplos disso são o petróleo, o gás-natural e o carvão mineral.

O Brasil conta com características que favorecem a liderança no setor, como a grande extensão territorial e os recursos naturais que possibilitam ampliar a produção de insumos energéticos provenientes da biomassa. Os avanços na substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis, como o etanol e o biodiesel, servem de modelo para outras nações.

Os biocombustíveis são derivados de biomassa renovável que podem substituir, parcial ou totalmente, combustíveis derivados de petróleo e gás natural em motores a combustão ou em outro tipo de geração de energia. Os dois principais biocombustíveis líquidos usados no Brasil são o etanol, extraído de cana-de-açúcar, e o biodiesel, produzido a partir de óleos vegetais ou de gorduras animais e adicionado ao diesel de petróleo em proporções variáveis. Os dois emitem menos compostos químicos poluidores do que os combustíveis fósseis no processo de combustão dos motores. Além disso, o processo de produção é mais limpo.http://www.jornalextra.com.br

Expansão islâmica na África


Juntamente com o Oriente Médio, o sudeste asiático e algumas regiões da Índia, a África vem adquirindo cada vez mais relevância no chamado mundo islâmico.
O islamismo entrou no continente africano a partir dos países da África do Norte, como Marrocos e Egito, e foi uma das primeiras regiões a ser conquistadas pela expansão inicial árabe-islâmica (séculos VII e VIII). Dos séculos X a XVI, mercadores muçulmanos contribuíram para o surgimento de importantes reinos na África Ocidental, que floresceram graças ao comércio feito por caravanas que, atravessando o Saara, punham em contato o mundo mediterrâneo ao das estepes e savanas do Sudão Ocidental e África centro-ocidental.
No entanto, a difusão do islã no continente africano se deu muito mais pelo comércio e pra migração do que por imposições militares. A expansão islâmica se deu, basicamente em três frentes:

• do noroeste do continente (região do Magreb), para o Saara e a África Ocidental
• do baixo para o alto vale do Nilo, chegando ao nordeste da África (península da Somália e arredores)
• comerciantes originários da porção sul-sudoeste da Península Arábica e imigrantes do subcontinente indiano, criaram assentamentos no litoral do Índico e, dali, difundiram a presença muçulmana para o interior.

O número de muçulmanos na África é na atualidade estimado em mais de 300 milhões, cerca de 27% do total dos seguidores da religião criada pelo profeta Maomé.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O legado de Kim Jong-Il: fome, repressão e temor nuclear

Coreia do Norte

O legado de Kim Jong-Il: fome, repressão e temor nuclear

Funeral de ditador reuniu milhares de coreanos sob intensa neve



Kim Jong-Il fez com que a Coreia do Norte continue a ser o país mais isolado do mundo em plena era da comunicação (Reuters)

O adjetivo "nuclear" ocupa um lugar fundamental no legado que o ditador Kim Jong-Il - morto no último dia 17 e cujo funeral foi realizado nesta quarta-feira - deixou para seu empobrecido país. Além disso, ele será lembrado por consolidar a péssima política agrária que seu pai implementou e por fazer com que a Coreia do Norte continue a ser o país mais isolado do mundo em plena era da comunicação.

O programa atômico norte-coreano foi iniciado nos anos 60 com apoio de Rússia e China durante o governo do pai de Kim Jong-Il e fundador da Coreia do Norte, Kim Il-sung (1912-1994). Os Estados Unidos criticaram progressivamente o projeto até o ponto de a tensão alcançar níveis muito altos na península nos anos 90, depois que Pyongyang rejeitou, em 1993, a presença de inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e abandonou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP).

Crise - Kim Jong-Il assumiu o poder em um momento crítico, em 1994, pouco depois de seu recém falecido pai ter aceitado se reunir com o então chefe de estado sul-coreano, Kim Young-sam, para diminuir a crescente tensão entre os dois países. Logo após o falecimento de seu pai, o novo ditador deu a impressão de que tomaria medidas para atenuar a crise, já que em outubro de 1994 Coreia do Norte e EUA assinaram um acordo em Genebra que estipulava que Washington e seus aliados forneceriam a Pyongyang reatores nucleares civis em troca da suspensão de seu programa atômico.

No entanto, o passar dos anos revelou que o país, sob comando do novo Kim, sempre conservou a intenção de usar a 'carta nuclear' a seu favor como elemento dissuasório. Tal postura ficou clara com uma nova expulsão, em 2002, dos inspetores da AIEA, no teste nuclear realizado em outubro de 2006 e em inúmeros lançamentos de mísseis que fizeram com que a ONU impusesse severas sanções à nação comunista.

Por isso o regime decidiu abandonar, em 2007, a mesa de negociação de seis lados - da qual participam as duas Coreias, além de Rússia, China, EUA e Japão - para a desnuclearização de Pyongyang. As conversas não foram retomadas desde então.

Fome - No plano alimentício, Kim Jong-Il herdou também as crises de fome crônicas que começaram a golpear o país no fim da era de seu pai no poder. Kim Il-sung pôs em prática um plano de coletivização no campo e industrialização em grande escala que, nos primeiros anos de seu mandato, deu resultados, mas logo mostrou suas limitações - as limitações inerentes a um sistema de planificação comunista.

Kim Jong-Il, por outro lado, será recordado apenas por desflorestar a Coreia do Norte e destroçar o solo pelo mal uso de adubos. Isso, somado às periódicas chuvas torrenciais que ocorrem no no verão local, contribuiu para afundar o sustento agrícola do país.

A política de "o exército primeiro" impulsionada por Kim Jong-Il, que dá prioridade política e orçamentária às Forças Armadas, tirou ainda mais recursos dos trabalhadores rurais na grande crise de fome dos anos 90, na qual se estima que até 2 milhões de norte-coreanos tenham morrido. O desmesurado apoio ao exército, no entanto, demorou para render frutos ao líder, já que ao contrário de seu pai, guerrilheiro que combateu os japoneses quando estes dominavam a península, Kim não tinha formação militar.

Por aparentemente ter tido menos prestígio que seu pai perante as Forças Armadas e inclusive, segundo alguns analistas, em relação aos civis, acredita-se que Kim quis exercer um controle ainda mais severo sobre a população. É difícil estimar o alcance da repressão de Kim Jong-Il devido ao isolamento do regime, embora organizações humanitárias tenham informado que fuzilamentos, penas sem julgamento ou a entrada de milhares de dissidentes em campos de prisioneiros tenham continuado sob seu mandato.

Isolamento - Além disso, Kim Jong-Il também conseguiu isolar ainda mais o seu país. A Coreia do Norte teoricamente inaugurou serviços de internet em 2004 e de telefonia celular no final da década passada, embora seu uso tenha ficado restrito às elites e o controle governamental não permita privacidade alguma.

"O povo não tem acesso aos computadores. No hotel, quando alguém quer enviar uma mensagem pela internet, é preciso escrevê-la em um papel e entregá-la aos responsáveis, que o enviam de uma conta. Se houver resposta, eles a anotam e a levam ao destinatário novamente no papel", afirmou um cidadão espanhol que visitou a Coreia do Norte em 2009.

Enquanto o ditador fez com que 24 milhões de norte-coreanos continuassem fora da realidade do mundo exterior, durante seu mandato Pyongyang obteve aproximações históricas que acabaram com décadas de isolamento diplomático do país, que perdeu boa parte de seus aliados comunistas nos anos 90.

Perfil - Em 2001, a chegada ao poder de George W. Bush, que incluiu a Coreia do Norte em seu "eixo do mal", representou um passo atrás e serviu para o regime justificar uma política externa imprevisível e caprichosa, tal como a personalidade que muitos analistas atribuem a Kim.

Biógrafos do líder norte-coreano utilizavam adjetivos como "inseguro", "tímido" e "irascível" e citavam seu medo de voar (ele se acostumou a viajar a Rússia e China em seu trem particular) como fatores que não contribuíram para melhorar a diplomacia do país asiático.

(Com agência EFE)

Amazônia - Com os dias contados


Com os dias contados

Se continuar neste ritmo, desmatamento pode acabar com metade da Amazônia entre 50 e 100 anos

Cristina Charão, Flávio Amaral e Lígia Ligabue*


Há duas maneiras de se olhar para o mapa da Amazônia brasileira. A primeira, com as lentes do urgente crescimento econômico do país. E aí se verá na extensa área uma fonte de riqueza imediata. Embora responsável por apenas 7% do PIB nacional, a região amazônica produz hoje alguns dos mais importantes itens da pauta de exportação brasileira: soja, carne e minérios. A segunda maneira é sob a ótica do desenvolvimento progressivo e sustentável. Com o foco posto mais adiante, a Amazônia promete ganhos ainda maiores. Segundo Carlos Nobre, coordenador do Experimento em Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA, na sigla em inglês), em cem anos a região pode ser responsável por 30% a 40% do PIB brasileiro. O problema é que, como afirmam muitos pesquisadores e ambientalistas, a Amazônia pode não sobreviver até lá.
Se for mantido o atual ritmo de desmatamento, mais da metade da maior floresta tropical do mundo deixaria de existir em um período que pode variar entre 50 e 100 anos, segundo pesquisadores que participam do LBA. A partir de simulações virtuais desenvolvidas em computadores, eles traçaram diferentes cenários para o futuro. No mais pessimista, que prevê a manutenção do atual nível de desmatamento, 60% da Floresta Amazônica deixaria de existir. No lugar, surgiriam grandes savanas, com vegetação semelhante a que é encontrada no cerrado. Os outros cenários traçados pelos cientistas são menos drásticos. A transformação da floresta em savana poderia ser até nula se ações contra o desmatamento fossem tomadas desde já. Mas, por enquanto, a perspectiva não é otimista.
Somente no período de agosto de 2002 a julho de 2003, mais de 23 mil km2 de floresta foram desmatados. É uma área um pouco maior que o território ocupado por Sergipe. Desde que começou a ser explorada, a Amazônia já perdeu cerca de 15% de suas árvores. É como se a área de dois países com a dimensão da Itália tivesse deixado de ter sua cobertura vegetal original. A situação fica ainda mais grave quando se verifica o crescimento dos índices de desmatamento nos últimos 25 anos. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre 1977 e 1988, pouco mais de 21 mil km2 da floresta foram desmatados. Nos dez anos seguintes, a área destruída foi de quase 150 mil km2. Já nos últimos cinco anos, a área ocupada por floresta perdeu mais de 100 mil km2.

Boa parte do potencial econômico da região é desperdiçado. Junto com as árvores, tombam espécies de animais, microrganismos e plantas, alguns extintos antes de serem conhecidos. Perde-se uma riqueza de biodiversidade inestimável. Novos remédios para combater doenças são destruídos sem serem descobertos. Tudo isso tem um valor incalculável e o grande problema enfrentado por pesquisadores e ambientalistas é ter de entrar na guerra pela Amazônia com balas de faz-de-conta, contrapor um valor que ainda não existe contra milhões de dólares bastante reais. "Os minérios, as madeiras, os bois e a soja possuem valor financeiro imediato, e a política econômica exige respostas imediatas, pois o Brasil é grande devedor e não possui poupança interna para custear seu próprio desenvolvimento", afirma Charles Clement , do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
De fato, a receita gerada por atividades extrativistas não destrutivas na Amazônia hoje não se aproxima do que é arrecadado pela produção de soja ou pelo comércio de madeira. Em 2003, a soja movimentou US$ 2,8 bilhões na Amazônia Legal, segundo as estimativas de Emeleocípio Botelho de Andrade, da Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa). A exploração da madeira gera US$ 2,5 bilhões por ano (aproximadamente R$ 7 bilhões), pelos cálculos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Já a castanha-do-pará, produzida exclusivamente na Amazônia e exportada para o mundo inteiro, rende apenas US$ 33 milhões, ou R$ 92,4 milhões.
A contradição amazônica é que as maiores responsáveis pelo desmatamento são exatamente as atividades mais lucrativas hoje. Segundo especialistas, uma das principais ameaças à preservação da Amazônia é a soja. Em 2003, foram colhidas mais de 14 mil toneladas de soja na Amazônia Legal, que abrange toda a extensão florestal e áreas limítrofes. Segundo Andrade, a plantação de soja em áreas de floresta ainda é pequena: "91% da produção amazônica saiu de áreas de cerrado do Mato Grosso, mas o que preocupa é que a produção em áreas de floresta triplicou em 2004."
Algumas das principais empresas do ramo plantam na região e já constroem portos para escoar a produção. "Um grupo de empresários paulistas plantou 6 mil hectares de soja no ano passado e este ano vai plantar 15 mil", afirma o pesquisador. O grupo construiu na região uma usina de calcário, usado para reduzir a acidez de solo.
A expansão do plantio da soja e outros grãos, no entanto, pode prejudicar outras áreas hoje produtoras. Pesquisas divulgadas durante a Conferência do LBA, realizada no fim de julho, indicam que o desmatamento da Amazônia pode afetar o clima em várias regiões do Brasil e em países distantes. As nuvens de fumaça geradas pelas queimadas podem diminuir o nível de chuvas sobre a própria floresta e sobre as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país. O desmatamento na região prejudicaria até a produção de soja nos EUA.
Em carne viva - Se a soja preocupa no futuro, a destruição da floresta para que as terras sejam usadas pela pecuária é uma realidade. No início deste ano, o Banco Mundial publicou o estudo Causas do Desmatamento da Amazônia Brasileira, que afirma que a transformação da floresta em pastos seria responsável por 75% do desmatamento. Segundo estudo do Centro Internacional de Pesquisas Florestais (Cifor), o número de cabeças de gado na Amazônia mais que dobrou desde 1990. Em 2002, chegou a 57 milhões. Três estados da região - Pará, Mato Grosso e Rondônia - contribuíram para o crescimento de 100% do rebanho nacional e o aumento de cerca de 160% das exportações de carne brasileira no período de 1999 a 2002.
O crescimento da pecuária é o principal fator de destruição da floresta, mas ainda está concentrado em poucas regiões. Já a exploração ilegal de madeira, muitas vezes considerada a principal vilã da Amazônia, atinge um número maior de localidades. Segundo o Greenpeace, dos 36 pontos críticos de desmatamento, 26 estão relacionados à indústria madeireira.
Marco Lentini, pesquisador de economia florestal do Imazon, cita dados do Ibama que indicam que só 53% da produção amazônica é legal. Desse percentual, 20% vem de desmatamentos autorizados pelo órgão federal e o restante é originário de áreas onde ocorre o manejo florestal, uma técnica que prevê a colheita de árvores maiores, preservando as menores para que sejam utilizadas no futuro.
O manejo florestal deveria ser uma garantia que a exploração da madeira não traria grandes conseqüências para o equilíbrio do ecossistema florestal. Mas, segundo o Greenpeace, mesmo esse tipo de extração é altamente destrutiva devido ao uso de tecnologias obsoletas. Pior ainda é o desperdício da madeira e de oportunidades. Apenas um terço das toras extraídas é transformado em produto final. E segundo Lentini, "se aumentássemos as exportações e vendêssemos móveis prontos em vez de madeira serrada, o produto seria valorizado, aumentaria a arrecadação e geraria mais empregos".
A industrialização é a sugestão de Antônio Nobre, pesquisador do Inpa, para garantir o desenvolvimento com preservação ambiental. "Ela agrega valor e gera empregos, ao contrário do investimento em agricultura." O exemplo citado por Nobre é a Zona Franca de Manaus, responsável pelo maior volume do PIB amazônico e não destrói as florestas em volta.
No entanto, para vários pesquisadores, a salvação para a Amazônia é o desenvolvimento da região, com o investimento em atividades sustentáveis. O crescimento dessas atividades e a conseqüente geração e distribuição de renda desestimulariam as atividades predatórias. Aparentemente, não são esses os planos do governo federal para a região amazônica.
"Nossa visão é que a Amazônia não é um problema para o Brasil, e sim a solução, tanto para geração de emprego, geração de renda ou equilíbrio na balança comercial", afirma Djalma Mello, diretor da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA). "Temos aqui as maiores reservas mundiais em energia, água doce e minério, basta que esse potencial seja explorado economicamente, sem danificar o ambiente", completa. O diretor da ADA afirma que "o Ministério da Integração Nacional quer desenvolver sustentavelmente a região, com inclusão e preservação social". No entanto, questionado sobre as principais atividades financiadas pela agência, Mello citou a indústria da soja, a agropecuária e a mineração.
As contradições externas também se refletem dentro do governo. Jorg Zimmermann, secretário de Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, olha para a região com olhos no futuro. "Se pensarmos a médio e longo prazo, não plantaríamos soja", afirma Zimmermann. "Ela dá lucro imediato, mas em dez anos não dá mais para plantar." O secretário acredita que é preciso casar desenvolvimento com meio ambiente, mas admite que, atualmente, "as forças econômicas não estão favorecendo o meio ambiente".
"Os principais investidores são empresas responsáveis por megaprojetos, que visam beneficiar o mundo externo, não a Amazônia", afirma o jornalista Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra - Amazônia Brasileira. "Empresas das áreas de mineração, energia e agricultura quando muito desenvolvem técnicas para diminuir os impactos, nenhuma faz avaliações ambientais estratégicas", completa, antes de lembrar que boa parte desses projetos são financiados com verbas provenientes de instituições públicas. A Amigos da Terra também acredita que o desenvolvimento pode ajudar a preservar a Amazônia. Tanto que criou o projeto Eco-Finanças , cujo objetivo é "assegurar que investimentos de instituições financeiras privadas eliminem o impacto adverso sobre os recursos naturais, estimulem o desenvolvimento sustentável e incorporem as comunidades locais no âmbito de seus projetos".
Em mais uma fatídica contradição, o aquecimento da economia regional, seja ele criado por atividades sustentáveis ou convencionais, exige obras de infra-estrutura. A construção de usinas hidrelétricas na Amazônia resultaria na submersão de grandes extensões de floresta. Só a Usina de Tucuruí inundou quase 3 mil km2 de mata. Já a abertura de estradas facilita tanto o escoamento da produção sustentável quanto das atividades predatórias. Um levantamento feito pelo Inpa estima que a abertura de uma única estrada na Amazônia desmata uma faixa que se estende de 50 km a até 200 km mata adentro, em ambos os lados da rodovia.
Charles Clement só consegue vislumbrar uma saída para que a Amazônia não desapareça: "O Brasil teria que investir pesado em ciência e tecnologia e em pesquisa e desenvolvimento em busca de alternativas que mantenham a floresta em pé e tenham viabilidade econômica." Hoje, a Amazônia recebe apenas 2% dos investimentos nacionais em ciência. De cada cinco artigos científicos sobre a região, quatro são feitos por pesquisadores estrangeiros. Os institutos de pesquisa voltados para a região, como o Inpa, do Amazonas e o Museu Emilio Goeldi, do Pará, atravessam constantes crises de recursos. Mas, no último mês de julho, durante a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em Cuiabá (MT), o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos (por sinal, ex-governador do Amazonas), anunciou investimentos de R$ 37,6 bilhões em política científica até 2007, sendo que uma das prioridades será o estudo dos biomas brasileiros, incluindo a Amazônia. Resta conferir se a promessa será cumprida.
*Da Agência Repórter Social.

Os filhos do inimigo

A mais destruidora das armas de guerra é usada na Líbia: o estupro
Mulheres e crianças têm sido vítimas de abuso sexual coletivo pelas tropas do ditador. Infelizmente, está longe de ser a primeira vez na história da humanidade

Nana Queiroz

Mulher vítima de uma série de estupros em massa que ocorreram na cidade de Fizi, no Congo. Ela é uma das quase cinquenta mulheres que foram violentadas por soldados congoleses só na noite de 1 de janeiro de 2011 (Pete Muller/AP)

“A psicologia é a seguinte: se você mata alguém no campo de batalha, o transforma em herói. E a honra que vem disso faz seus concidadãos mais fortes. Mas o estupro só traz humilhação. Você não acaba com vidas, destrói a alma de uma sociedade”

A paz controlada do hotel onde os jornalistas são confinados pelo governo da Líbia foi interrompida em uma tarde de março pelos brados de Iman al-Obaidi, uma jovem de 26 anos, originária da cidade de Bengasi. Com os cabelos expostos e desgrenhados, a estudante de Direito repetia, chorando: “Eu fui estuprada por 15 homens das tropas do (ditador Muamar) Kadafi”. As primeiras mãos que chegaram a ela, agressivas, foram justamente a de mulheres. As garçonetes da hospedaria taparam-lhe a boca, ameaçaram-na com uma faca e chamaram-na de “traidora da pátria”. Iman foi detida para que parasse de falar o que o regime não queria que o mundo soubesse. Chegou a ser chamada de “vagabunda” na TV líbia. Esse foi o preço pago pela primeira voz a denunciar os estupros coletivos que têm sido usados como arma de guerra pelo Exército do ditador.

Mais tarde, outras se juntaram a ela. O Centro Egípcio de Direitos Femininos lançou, na semana passada, um comunicado denunciando “casos de estupros coletivos de mulheres em diversas cidades líbias pelas forças de Kadafi”. E, quando o mundo acreditava que o show de horrores não poderia ficar pior, a ONG Save the Children reportou na última terça-feira que, depois de escutar os relatos de 200 crianças e 40 adultos, encontrou diversas evidências de que crianças a partir de oito anos foram abusadas sexualmente no país. “O mais preocupante é que apenas pudemos falar com um número limitado de crianças. O que estará acontecendo àquelas presas em Misrata e outras partes do país e que não tiveram voz?”, questionou Michael Mahrt, conselheiro da ONG.

A mais antiga das armas - Infelizmente, não é a primeira vez – e provavelmente não será a última – que estupros em massa são usados como estratégia de guerra. Essa é uma das armas mais antigas da humanidade. “As primeiras guerras foram, na verdade, estupros coletivos. Nas ‘tribos’ da Pré-História, eram os líderes quem mantinham relações sexuais com as mulheres do grupo. Os demais só podiam procriar quando ‘conquistavam’ fêmeas de outras tribos em batalhas”, conta Thomas Hayden, autor de Sex and War: How Biology Explains Warfare and Terrorism and Offers a Path to a Safer World (Sexo e Guerra: como a Biologia explica a guerra e o terrorismo e oferece o caminho para um mundo mais seguro, Benbella Books).

Caminhando na história do homo sapiens, a violência sexual ganhou, com gregos e romanos, a definição de prêmio para os vencedores do conflito. Só no século XIX foi considerada crime de guerra. Hoje, é condenada pelo artigo 7 do estatuto do Tribunal Penal Internacional de Haia. Mas mesmo contra toda legislação e filosofia, a humanidade assistiu a episódios tenebrosos no último século. Um dos mais populares foi a Guerra da Bósnia, na década de 90, em que soldados sérvios foram estimulados por seus generais a estuprar mulheres croatas para distrair os inimigos. No Congo, mulheres, homens e até crianças pequenas são violentadas, há anos, por grupos armados como meio de mantê-los aterrorizados e submissos. Em termos de estratégia militar, a tática, aparentemente imitada por Kadafi, é bastante eficaz. “A psicologia é a seguinte: se você mata alguém no campo de batalha, o transforma em herói. E a honra que vem disso faz seus concidadãos mais fortes. Mas o estupro só traz humilhação. Você não acaba com vidas, destrói a alma de uma sociedade”, explica Hayden.

Os filhos do inimigo – O Exército nazista havia feito um estrago enorme na União Soviética no decorrer da Segunda Guerra Mundial. Quando, finalmente, os soviéticos chegaram à Alemanha, em 1944, seu ódio pelo povo alemão era imensurável. Estima-se que 1,9 milhão de estupros tenham sido cometidos por eles na ocasião. Em 2009, o psiquiatra alemão Philipp Kuwert analisou as consequências da violência sobre 30 dessas vítimas, então na faixa dos 80 anos. “Mesmo quase seis décadas depois da guerra, 1/3 daquelas senhoras sofria de estresse pós-traumático”, conta Kuwert. “Essa é uma característica comum a vítimas de abuso sexual em zonas de conflito. Também compartilham uma média de 12 estupros por pessoa e têm seus traumas agravados por outros, consequentes da guerra, como o deslocamento forçado e a violência não-sexual”.

Quando os soldados alemães voltaram do campo de batalha e descobriram que suas mulheres tinham sido violentadas, houve uma onda de divórcios. Os índices de doenças sexualmente transmissíveis, geralmente mais comuns entre homens, se inverteram em 1945. O regime nazista decadente fez uma lei autorizando o aborto que, na época, era criminalizado. Mesmo assim, algumas mulheres decidiram seguir com a gravidez. O mesmo aconteceu na Escandinávia, onde acredita-se que os militares alemães tenham deixado 70.000 filhos (entre estupros e casos de amor). Essas crianças, apelidadas de “filhos do inimigo”, nunca conseguiram levar uma vida normal e sofreram discriminações de todos os tipos.

Na Líbia, as consequências são ainda mais funestas. Algumas tribos que compõem o país têm o hábito de matar, na maioria dos casos a pedido das próprias mulheres, as vítimas de violência sexual. Em países como o Paquistão, elas aderem ao suicídio. “Em algumas sociedades, o estupro de uma mulher é visto como o fracasso de seus parentes homens em protegê-la. E existe a triste visão de que a única maneira de livrar a família dessa humilhação é matar a mulher”, diz Hayden. Neste ponto da entrevista, ele para e comenta: “Não só é a arma mais antiga, mas a mais cruel já inventada pelo homem. Que sociedade pode sobreviver à culpa de ter matado suas próprias mulheres?”

Era dos contêineres

A população planetária vive hoje majoritariamente em cidades. É hora de trazer para o universo da educação a reflexão sobre essa nova condição

Michel Lussault*, do Le Monde de L´Éducation



No início de 2008, um marco se consumou sem que houvesse muito alarde sobre ele: ultrapassamos a barreira de 50% da população do globo - 3,5 bilhões de pessoas - vivendo em aglomerados urbanos. A população urbana do século 20 passou de 220 milhões para 2,8 bilhões de habitantes. Esse crescimento não vai parar, mas sua geografia vai evoluir.
Com efeito, o fenômeno é e será cada vez mais marcante na Ásia e na África, onde existem ainda "reservatórios" de populações rurais e agrícolas, e onde os saldos urbanos naturais (diferença positiva entre nascimentos e mortes) são significativos - saldos que se tornaram motor da urbanização. Nesses dois continentes, a população urbana dobrará entre 2000 e 2030. Nessa data, perto de 80% dos 4,9 bilhões de residentes urbanos viverão num país do "sul", enquanto em 1900 dois terços da população urbanizada estava concentrada nas regiões desenvolvidas. Note-se que o crescimento atual é mais rápido nas áreas urbanas médias (500 mil a 1 milhão de habitantes) e pequenas (menos de 500 mil habitantes) do que nas megalópoles (mais de 10 milhões de habitantes). Este não representa senão 9% da população urbana mundial, enquanto os outros acolhem 52%, uma proporção que não cessará de crescer.

O urbano está se generalizando, e pode-se mostrá-lo aos alunos, por meio de cifras e por análises iconográficas. Das imagens via satélite às fotografias, passando pelo cinema, a urbanização é doravante visível em toda parte, através de seus objetos (as roupas baratas usadas até o fundo dos campos africanos, panelas, pias e utensílios de plástico que, em todo lugar, se impõem, como rádios, telefones celulares e televisores), sua arquitetura e sua infra-estrutura, seus modelos ideológicos, seu imaginário, seus modos de morar e existir em sociedade.
Alguns desses ícones maiores do sistema urbano mundial devem chamar a atenção: o escalonamento, a hipermobilidade, a separação, a pobreza, a vulnerabilidade.

O escalonamento se verifica em todo lugar, quaisquer que sejam o tamanho da área urbana considerada e as formas materiais tomadas por essa evolução. O espaço periurbanizado [situado na vizinhança imediata de uma cidade, segundo o Houaiss] reagrupa uma massa incessantemente maior de habitantes, e esse processo constitui um transtorno espacial, social, cultural, econômico e político dos perímetros implicados.

A periurbanização é acompanhada, em geral, de uma baixa da densidade e da diversidade relativas, antes presentes nos setores centrais das cidades, mesmo que existam verdadeiros núcleos de centralidades periféricas. Ela provoca também uma atenuação dos limites urbanos, que se tornam cada vez mais fluidos, até desaparecerem. Entretanto, antes e durante muito tempo, a delimitação entre a cidade e seu entorno (o campo) era evidente e materializada, e torna-se cada vez mais difícil saber onde começa e onde termina um dado conjunto urbano. Em certas sociedades, pode-se até estimar que a urbanização, dilatada, englobe quase a integralidade de um território nacional ou, pelo menos, um conjunto amplo.

Movimentos incessantes
O escalonamento é fruto e ao mesmo tempo condição de um aumento exponencial dos deslocamentos, pois não seria viável tal esparrame sem transportes confiáveis e rápidos. Daí a mobilidade de todos e de qualquer coisa ser constitutiva da urbanidade contemporânea, em todas as escalas. A vida urbana é móvel: todo mundo se desloca, os objetos mudam permanentemente de lugar, os fluxos imateriais circulam incessantemente, difundindo dados em toda parte.

Uma boa maneira, muito pedagógica, de apreender a onipresença da mobilidade é observar os objetos que a assinalam: o contêiner, por exemplo. Em algumas décadas, o contêiner impôs-se como um objeto espacial universal. Essa simples caixa revela-se indispensável ao funcionamento da urbanização globalizada - e globalizante - isto é, que constrói o mundo como espaço social de escala global. Enviado por via marítima, ferrovia, por estrada (e até em formas adaptadas para vias aéreas) e padronizado, ele transporta o que quer que seja, até seres humanos, visto que serve também aos imigrantes clandestinos e, aliás, a todos os comércios informais. Seus preenchimento, carregamento, descarregamento e estocagem impõem arranjos urbanos muito específicos, instrumentos convenientes (barcos, trens, caminhões, materiais de manipulação) e ofícios particulares. Seu acompanhamento em tempo real, graças ao código de barras e ao GPS, passou a ser regra, por via dos autômatos de inteligência artificial das companhias logísticas - e aí se estabelece a conexão entre o transporte material e os fluxos imateriais - que se tornam empresas-chave do funcionamento econômico e social.

A mobilidade, escolhida mais ou menos livremente, é inegável em todos os grupos sociais, incluindo os mais desprovidos. As populações frágeis (trabalhadores pobres, imigrantes, clandestinos) vêem-se incessantemente confrontadas com a instabilidade de suas situações residencial e profissional. Elas são mais freqüentemente submetidas à mobilidade.

O espaço desse mundo móvel não é aberto, liso, nem sem entraves por causa do sucesso planetário do princípio da separação espacial das realidades sociais, que caracteriza a urbanização contemporânea. A existência e a legitimação do princípio separativo aparecem com o nascimento de um urbanismo científico, no fim do século 19. Desde então, a separação se generaliza. Quando funcional, é chamada de zoneamento, mas quando se deve aos problemas de repartição espacial dos grupos sociais e dos indivíduos, passa a ser segregação. Quase não há situação urbana, no mundo, em que o fato separativo e segregacionista não apareça e constitua, às vezes, um modo predominante de organização.

A segregação é uma separação espacial fatiada dos grupos sociais, que se manifesta na constituição de áreas marcadas por uma fraca diversidade social, dos limites nítidos entre esses espaços e os que os justapõem e os englobam. Um espaço segregado pode ser, no absoluto, rico (um condomínio fechado) e pobre (um gueto). Pode-se deplorar o fato de ser obrigado a morar numa zona marcada pela segregação, ou sentir-se feliz por nela ter acolhida. A segregação não impede que os residentes se integrem nas lógicas desse tipo de rede, via mobilidade: os habitantes vivem então, ao mesmo tempo, a segregação e a mobilidade.

A organização urbana associa espaços sociais e funcionais separados e interagentes via mobilidade. Modelos espaciais constituem atrativos aos quais se pode facilmente fazer referência em sala de aula, apoiando-se primeiramente na vivência dos alunos: citemos o aeroporto, o shopping center, o parque de diversões. Este último é um dos modelos dominantes. Áreas urbanas inteiras constituem por justaposição espaços recreativos separados, todas as atividades (esporte, comércio, cultural, jogo) adaptadas ao fogo do triunfo planetário do entretenimento. É assim que se pode fazer com que os jovens compreendam a organização de Dubai, de Macao, de Las Vegas, onde tudo o que não é recreação é mandado para trás ou para os "subsolos". Em todas as metrópoles, muitos pobres são relegados às margens e ao "debaixo", debaixo da ponte, das estradas suspensas, porões, buracos diversos: a segregação social é também, às vezes, vertical.

A pauperização urbana
A pobreza tem aspectos das favelas, as quais cobrem o planeta e reúnem um bilhão de indivíduos. Às vezes, muito grandes e agrupando vários milhares de pessoas, até vários milhões; às vezes minúsculas, aninhadas nos interstícios do espaço urbano; em alguns casos, apinhadas com materiais de sucata; em outros, "sedimentadas" e mais sólidas, acolhem os pobres, mas também todos aqueles, muito numerosos e nem todos desprovidos, que não conseguem ter acesso a um mercado oficial da habitação. As favelas são sempre informais (mas não sem ordem nem regulamento interno), loteadas em terrenos difíceis e abandonados. Quando se tornam bem situadas por conseqüência do desenvolvimento urbano, o poder público ou os investidores não tardam a desalojar seus habitantes, mais à força do que por vontade. Ao lado dos sinais reluzentes da urbanidade espetacular, a "favelização" é um dos marcadores flagrantes da urbanização.

A pobreza urbana explica-se pelo fato de a urbanização ser acompanhada da criação de menos atividades do que o aumento demográfico demandaria e de as riquezas crescerem de maneira vertiginosa, porém marcadas pela má distribuição. A urbanização mudou a geografia mundial da miséria: se a indigência existe ainda nos campos, a miséria urbana não tem mais nada a invejar-lhe, enquanto outrora os rurais fugiam da pobreza para encontrar na cidade melhores condições de vida.

As populações vulneráveis, concentradas, fornecem a mão-de-obra barata, os serviços a baixo custo, a que empreendedores - mas também os traficantes e investidores da economia informal - recorrem para recrutar os "profissionais" dos quais precisam. Essa fragilidade social de um número crescente de pessoas não é um resíduo dos funcionamentos urbanos, e sim uma condição para a viabilidade destes. Sem esse inumerável exército de reserva, as bases atuais da urbanização e da globalização são desmoronadas, pois os baixos custos que os produtores e os consumidores exigem não poderiam ser obtidos.

O urbano mundial acumula e reúne a maior potência e a maior fragilidade. É o que exprime a noção de vulnerabilidade, a saber, a probabilidade de conhecer uma disfunção maior. À medida que a urbanização progride, a vulnerabilidade das organizações urbanas cresce. Essa vulnerabilidade muda de forma a todo momento: é econômica, social, ambiental. Manifesta-se em particular nos grandes episódios de crise. Os casos dos ciclones Katrina, em Nova Orleans, e Nargis, em Mianmar, são exemplos de vulnerabilidade. Mas pode-se também analisar segundo a perspectiva dos atentados maiores, os atos de guerra urbana, cujo número é impressionante, os motins de toda espécie, ou os casos de desenvolvimento urbano de patologias infecciosas, as situações de poluição recorrente ou de subnutrição generalizada.

Essa constatação pode parecer muito pessimista, mas a fragilidade do sistema urbano só se iguala à sua potência. Ainda mais que em muitos dos territórios, incluindo os desenvolvidos, o urbano praticamente não é governado senão pelos interesses privados e pela luta feroz entre todos os que precisam dominar uma fração urbana.

Assim, a organização do sistema urbano é antes uma auto-organização, em que se ajustam mais ou menos convenientemente as ações dos diferentes e múltiplos agentes sociais. Esse urbano generalizado auto-organizado tornou-se o novo "meio" da existência humana. Para que seja habitável, é importante criar uma política ao mesmo tempo muito localizada e mundial. Muito localizada porque é preciso que os indivíduos participem plenamente da gestão coletiva de seu futuro e de seus espaços de vida. Mundial, pois diante de um fenômeno global deve-se construir uma esfera pública e pôr em funcionamento grandes ações nessa escala. Construir um mundo urbano comum, menos vulnerável e mais equilibrado, eis a mais urgente tarefa à qual devemos nos ater.
(Tradução Mônica Cristina Corrêa)

* Michel Lussault é geógrafo e co-autor, com Jacques Levi, do Dictionnaire de la geographie et de l´espace des societés

O mapa, esse desconhecido

Ensino da cartografia vive momento de transição, dificultado pela pouca renovação conceitual na formação docente

Rubem Barros


Alunos do Colégio Santo Américo: alfabetização cartográfica

No divertido e erudito livro em que faz a defesa da história como ciência e compara os métodos do historiador aos dos cientistas de outras áreas, o historiador americano John Lewis Gaddis, da Universidade de Yale, evoca o poder de síntese, a combinação "de economia e intensidade com que as imagens visuais podem expressar metáforas".

As imagens a que Gaddis faz referência logo no início de Paisagens da história - Como os historiadores mapeiam o passado (Editora Campus, 2003) permitem que o pesquisador exercite diferentes níveis de análise ao se aproximar ou se afastar de um objeto, tendo dele diferentes perspectivas que ajudam a enxergá-lo de forma mais rica e variada. E essas imagens e as metáforas delas decorrentes corresponderão sempre não à realidade propriamente, mas à sua representação.

Essa multiplicidade de pontos de vista mencionada por Gaddis - como, não por acaso, atesta o título do seu livro - é exatamente aquela traduzida pelos diferentes níveis de leitura pressupostos pela cartografia moderna, como sintetiza Andréa Zacharias, em texto dedicado às questões de "Comunicação cartográfica e representação gráfica das unidades de paisagem". O nível elementar, inventário de questões simples (onde, o quê, como etc.); o nível de conjunto, que corresponde a uma visão global, como uma paisagem vista de cima; e o médio, próprio para a percepção de "agrupamentos intermediários", marcando subdivisões ou regionalizações.

Ou seja, numa era de prevalência da imagem e das abordagens interdisciplinares, a linguagem cartográfica, elemento essencial para representar o espaço, deve ser um instrumento didático recorrente na educação das novas gerações, certo? Ao contrário. A cartografia tem sido subutilizada ou, muitas vezes, utilizada segundo padrões ainda ligados à geografia clássica. No momento em que os geógrafos recorrem cada vez mais a uma cartografia semiológica, parece haver um vácuo entre o que se pratica nas escolas e a metodologia que tem pautado a disciplina em seus estudos e práticas mais avançados.

Para entender o que acontece na escola, muitas redes públicas e colégios particulares têm investido na capacitação de docentes da Educação Básica, na oferta de novos materiais e na reformulação das licenciaturas. Foi o caso, por exemplo, da rede estadual paulista, que adota essa nova visão da cartografia no projeto "São Paulo faz escola", iniciado em 2009, além de ter ofertado cursos de formação aos coordenadores pedagógicos de suas 91 diretorias, depois da constatação de que os docentes da rede tinham dificuldade de trabalhar com mapas.

Segundo Sérgio Damiati, membro da equipe técnica de geografia da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (Cenp) da secretaria paulista, a proposta visava introduzir no ensino médio noções de cartografia temática (semiológica) e sistemática (conceitos sobre os princípios de construção do mapa). A secretaria espera aferir no final deste ano, quando o Saresp testará as habilidades dos alunos também em geografia, como anda a capacidade dos alunos para ler as informações cartográficas. Mas Damiati relata que houve bastante dificuldade dos alunos no entendimento de representações cartográficas com anamorfoses, ou seja, distorções da imagem em relação à tradicional ou conhecida, em função normalmente de um tema a ser representado. Quando o tema é a densidade populacional da Ásia, por exemplo, o Japão ganha área bem maior do que quando apenas a área do território é representada.

Métricas
"As anamorfoses só eram utilizadas no ensino superior. O aluno do ensino médio não está habituado à distorção, ela complica sua leitura do mapa, eles não conseguem localizar algumas informações que antes dominavam", diz Damiati sobre o que tem sido percebido no processo. A ênfase nesse tipo de representação é propositada para deixar claro que, qualquer que seja o mapa, ele deriva de escolhas sobre o que representar e como fazê-lo. E que o espaço geográfico comporta métricas diversas. "A métrica é um componente do mapa e não pode ser naturalizada. No discurso geográfico, essas outras dimensões não expressas pela métrica euclidiana são óbvias. Nos mapas, não", resume Fernanda Padovesi Fonseca, do departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Fernanda é coordenadora do grupo de pesquisa responsável pela análise e avaliação da presença da cartografia nas aulas do ensino médio da rede estadual. Em relatório deste ano sobre o uso dos mapas na implementação do "São Paulo faz escola", chegou-se à conclusão de que a semiologia gráfica está distante da geografia, "tanto no ensino desta linguagem quanto seu uso nos mapas dos materiais didáticos". Apesar de a pesquisa ter pouca abrangência - apenas quatro universitários foram a campo para observar as aulas do ensino médio - dá indícios de que, além da resistência dos professores aos materiais, há limitações derivadas da formação docente. Essas decorrem de uma visão ainda presa aos conceitos da geografia clássica, pois os professores mostram domínio "teórico-metodológico para tratar as questões de escala e projeção", mas patinam quando se trata de outras métricas e semiologia.

O que quer dizer que o mapa ainda resta como recurso de localização, memorização e ilustração para outras fontes de informação, sem que seja visto como um "polo consistente de discurso". "O mapa é um desconhecido de todas as classes sociais. Há um estranhamento grande do trabalho com ele. É preciso mostrar que o mapa pode revelar coisas que as outras linguagens não podem, pois ele tem uma linguagem instantânea, fácil de visualizar", diz Fernanda.



Alfabetização cartográfica

No âmbito escolar, há um movimento não só para superar o dilema "falta de uso/uso apenas para localização/memorização", como também para introduzir o conhecimento do paradigma semiológico. Apesar de as ideias de semiologia gráfica do francês Jacques Bertin terem aportado por aqui desde os anos 80, foi apenas nos últimos anos que ganhou corpo o conceito de alfabetização cartográfica, por meio de autores como Maria Elena Simielli, Sônia Castellari, Rosângela de Almeida e Helena Callai, entre outros que tiveram a preocupação de renovar os livros didáticos para a Educação Básica.

Para a efetivação desse processo, o desenvolvimento de algumas noções e conceitos passa a ser feito já no início do ensino fundamental, para dar ao aluno recursos que permitam que ele aproveite a carta em nova dimensão: "o mapa passa a ser um instrumento de análise das informações geográficas", diz Arno Goettens, supervisor de geografia do Colégio Santo Américo, escola particular de São Paulo.

Nessa perspectiva, o domínio cartográfico está associado principalmente à psicologia cognitiva de Jean Piaget, como sumariza Andréa Zacharias no texto citado, com um deslocamento do "produto da ação", para o "sujeito da ação". Ou seja, aqui a questão comunicacional não se resume, como numa visão funcionalista anterior (ligada à geografia clássica), aos polos transmissor e receptor da informação, mediados por um código. Os conhecimentos prévios do sujeito que busca a leitura do mapa poderão fazê-la maior que a própria mensagem, de acordo com sua capacidade de juntar informações e fazer inferências.

Para o professor Goettens, o perío­do é de transição nesta nova prática, o que demanda cuidados na hora de associar os conteúdos a determinados estágios cognitivos. No colégio em que trabalha, no entanto, as aulas de geografia ganharam nova dimensão há três anos, depois que a disciplina de estudos sociais foi dividida em geo­grafia e história já no fundamental 1. Assim, os alunos passaram a trabalhar com noções de cartografia a partir do 2º ano do fundamental, quando aprendem noções de lateralidade. No ano seguinte, passam a desenvolver a percepção de visão oblíqua, horizontal e vertical, e leitura e representação de paisagens; no 4º ano, ampliam os elementos para a leitura de paisagens e adicionam questões de proporção e escala, conceitos trabalhados nos planos nacional e regional no 5º ano. Esses ensinamentos constituem a base a ser aplicada no fundamental 2 e no ensino médio, com acréscimos tanto nos conteúdos quanto nas habilidades desenvolvidas.

Apesar de a identificação dos alunos menores não ser imediata com a cartografia, pois demanda que eles se instrumentem para fazer uma leitura mais rica dos mapas, os relatos dos professores dão conta de que as aulas de geografia tiveram boa aceitação. Ancorada nos mapas, a disciplina trouxe atividades lúdicas e interativas. "Essas práticas ajudam, inclusive, a identificar e resolver problemas e defasagens em outras disciplinas, como a dificuldade para trabalhar com proporção em matemática, ou com descrições em língua portuguesa", diz Goettens.

Essa dimensão prática trazida pela cartografia no colégio vem ao encontro daquilo que foi detectado como um fator positivo na análise feita pelo grupo de estudos da USP nas escolas públicas de ensino médio: quanto maior a participação direta dos alunos, como no caso dos exercícios de construção de mapas, maior a adesão deles à disciplina. Fato que anima os pesquisadores a propor aos docentes que façam com os estudantes desde a coleta e a sistematização de dados até a elaboração do fundo de mapa (derivado da escolha de métrica, escala e projeção). Ou seja, atividades que mostrem aos alunos a relação entre a experiência do olhar e a interpretação de uma realidade. Afinal, como diz John Lewis Gaddis, "os mapas têm em comum com os historiadores a tarefa de empacotar a experiência alheia".

Para saber mais
Paisagens da história - Como os historiadores mapeiam o passado, de John Lewis Gaddis, Editora Campus, 2003, trad. Marisa Rocha Motta

Cartografia escolar, de Rosângela Doin de Almeida (org.), Contexto, 2007

Cartografia no ensino fundamental e médio, de Carlos Afã (org.), Contexto, 2005

A representação gráfica das unidades de paisagem no zoneamento ambiental, de Andréa Zacharias, Unesp, 2010.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Sonhos de lítio


A Bolívia se tornará a Arábia Saudita da era do carro elétrico?

por Lawrence Wright
No sul da Bolívia, há uma montanha chamada Cerro Rico. É uma rocha pálida e calva, riscada por caminhos de terra que se entrecruzam encosta acima como cadarços de sapato. Mais de 4 mil túneis de mina escavaram a tal ponto o interior da montanha que ela corre o risco de desabar. A base é rodeada de casebres que se espalham até a velha cidade de Potosí, um Patrimônio da Humanidade. Evo Morales, o presidente da Bolívia, disse-me há pouco tempo que, para ele e seus compatriotas, Potosí é "um símbolo de pilhagem, de exploração, de humilhação". A cidade representa uma Bolívia que poderia ter sido um país que tivesse capitalizado sua extraordinária riqueza mineral para se transformar numa potência industrial. Uma Bolívia que poderia ser imaginada com facilidade em 1611, quando Potosí era uma das maiores cidades do mundo, com 180 mil habitantes - mais ou menos o tamanho de Londres na mesma época.

Embora Potosí tenha surgido como uma cidade de mineiros, com as tabernas e as casas de jogo que acompanham os homens da fronteira, em pouco tempo construiu igrejas e teatros magníficos, e mais de uma dúzia de escolas de dança. De meados do século xvi a mea-
dos do xvii, metade da prata extraída no Novo Mundo vinha de Cerro Rico. Carlos Mesa, o historiador que ocupou a presidência da Bolívia de 2003 a 2005, contou-me que, "por todo o império espanhol dizia-se 'Isto vale uma Potosí', quando se falava de sorte ou riqueza". Hoje Potosí é um dos lugares mais pobres daquele que é há muito tempo um dos países mais pobres da América do Sul.

Do lado de lá da fronteira da Revolução Industrial, há outra cidade cuja promessa de grandeza jaz em ruínas: Detroit. Antes mesmo que o primeiro Oldsmobile Curved Dash emergisse da linha de montagem, em 1901, tornando-se o primeiro carro americano produzido em massa, Detroit já era um vistoso centro industrial, com suas imensas fábricas de ferro, cobre, vagões de carga, navios, cerveja e produtos farmacêuticos. Seguindo os passos do Oldsmobile, fabricantes de carros como a Ford, a Packard e a Cadillac mudaram a economia americana. Mas a glória de Detroit foi incrivelmente passageira. A cidade tem hoje metade do tamanho que tinha há cinquenta anos. Duas das "Três Grandes", a gm e a Chrysler, foram à bancarrota no ano passado, e todas elas reduziram drasticamente o número de funcionários.

O índice de desemprego em Detroit é de 15%, a proporção de assassinatos por habitante é a quarta maior dos Estados Unidos e cerca de um terço dos seus moradores vive na pobreza. Uma quantidade estimada de 70 mil construções - entre casas, igrejas, fábricas e até arranha-céus - encontra-se vazia, muitas delas vandalizadas ou incendiadas. Como a Bolívia, Detroit espera uma segunda oportunidade. E ambas sonham com um tesouro que poderia ressuscitar sua riqueza e, de quebra, proporcionar ao mundo um ambiente mais limpo. Esse tesouro é o lítio.

O mais leve de todos os elementos sólidos, o lítio teve até agora um papel industrial apenas modesto. De cor prateada, mais maleável que o chumbo, ele vinha sendo usado sobretudo em ligas de alumínio, como base para graxa de automóveis e na produção de vidro e cerâmica. É tão instável que não se pode encontrá-lo em forma pura na natureza. O lítio flutua - ou melhor, se agita descontroladamente à flor d'água, emitindo uma nuvem de vapor de hidrogênio até se dissolver. De maneira estranha, tendo em vista sua natureza freneticamente reativa, o lítio tem um poderoso efeito tranquilizante, e há muito vem sendo usado como droga para o tratamento de transtornos de comportamento, sobretudo as manias.

Na década de 50, o governo americano criou um mercado para o lítio quando um isótopo do metal revelou-se útil para a construção de armas termonucleares. Mas a demanda por lítio, que tem propriedades corrosivas, além de tendência à combustão espontânea, manteve-se praticamente inalterada noutras frentes. Isso mudou de uma hora para outra com a proliferação dos telefones celulares e dos computadores portáteis: o lítio é ideal para fazer pilhas leves. Agora, com o surgimento dos carros elétricos, ele poderá suceder o petróleo como o principal combustível. E metade da reserva mundial encontra-se sepultada em vastas planícies de sal do sudoeste da Bolívia, a maior das quais se chama Salar de Uyuni. Os bolivianos já começam a falar da transformação do país na "Arábia Saudita do lítio".

Mas não está claro se a Bolívia será capaz de ganhar dinheiro com o seu tesouro. Morales, que está alinhado com o socialismo populista de Hugo Chávez, o presidente da Venezuela, é dado a declarações radicais: "Ou bem o capitalismo morre ou então o planeta Terra morre." Essa retórica tende a afugentar o investimento estrangeiro que poderia facilitar o desenvolvimento do Salar. E há também as deficiências do país em matéria de infraestrutura: a eletricidade, a água e o gás têm distribuição esparsa, e poucas das estradas são pavimentadas. Antes que a Bolívia possa ter a esperança de explorar um combustível do século xxi, ela precisa desenvolver os rudimentos de uma economia do século xx.

Chega-se ao Salar por uma estrada de terra suja e estreita, que desce os Andes e serpenteia, em zigue-zague, cânions ensolarados e planícies secas. Lhamas e vicunhas pastam, flamingos chapinham em charcos rasos. Até há pouco, geleiras cobriam o topo das montanhas, mas o aquecimento global vem provocando um considerável recuo do gelo, reduzindo o suprimento de água da Bolívia. Às portas de Uyuni, uma cidade de casas de argila erguida à beira da planície de sal, a paisagem mirrada está cheia de lixo, e sacolas de plástico colorido agitam-se nos ramos das árvores queñua.

Ao entrar na cidade, depara-se com um comitê de recepção de cães que latem sem parar. O aeroporto local está fechado há anos. Com uma população de 10 mil habitantes, Uyuni está a pouco mais de 300 quilômetros do oceano Pacífico, mas há mais de um século o acesso da Bolívia ao mar foi bloqueado pelo seu inimigo histórico, o Chile. O país não tem saída para o mar e vive isolado - "uma ilha cercada de terra por todos os lados", como me foi descrito pelo jornalista Fernando Molina, um dos intelectuais mais conhecidos da Bolívia. "Um terço do território fica acima dos 3 mil metros de altitude, e o resto bem abaixo, num desnível impressionante. Nossa capacidade de transporte é horrível. A geografia torna difícil produzir qualquer coisa, porque não temos como movê-las."

O Salar de Uyuni parece um mar congelado. De uma brancura cegante e cobrindo mais de 10 mil quilômetros quadrados, ele é visível da Lua. (Neil Armstrong chegou a confundi-lo com uma geleira gigante.) Uma das lendas dos índios da região diz que o Salar foi criado quando a deusa de um vulcão próximo, irritada, arrancou seu bebê do seio e o leite jorrou longe, misturado a lágrimas. Os índios, em sua maioria quíchua ou aimara, usam o sal para fazer tijolos e alimentar animais. Ocasionalmente, uma caravana de lhamas transporta o sal para rebanhos de gado das terras baixas. Na breve estação chuvosa, uma lâmina imóvel de água cobre a planície de sal, formando um interminável espelho do céu. A cada inverno, polígonos de cristal se encaixam uns nos outros na superfície do sal, lembrando gigantescos azulejos de banheiro. Por baixo dessa crosta grossa existe uma camada de uma solução impregnada de sal. Nela, o lítio se encontra dissolvido.

O Salar tem sido o destino de viajantes aventureiros há anos, mas não existe quase mais nada que ajude a sustentar a economia da região. "Sabemos do lítio desde 1985", disse-me Francisco Quisbert, presidente da federação dos camponeses de Uyuni. Os camponeses da área dirigiram inúmeras petições ao governo para que explorasse o Salar. Em 1990, o presidente Jaime Paz Zamora concordou, a princípio, com um contrato plurianual com a Lithium Corporation of America (hoje fmc Corporation). O contrato permitiria à empresa extrair todo o lítio que pudesse, destinando à Bolívia apenas 8% dos lucros. Muitos bolivianos ficaram indignados com o negócio. Quando os camponeses iniciaram uma campanha contra o acordo, a Lithium Corporation anunciou a transferência de suas operações para a Argentina, que também possui reservas de lítio. "Todos nos condenaram, dizendo que perdemos uma oportunidade única", comentou Quisbert, citando em seguida um antigo ditado espanhol: "Diziam que éramos 'o cachorro do jardineiro' - como não podíamos comer, não deixaríamos que mais ninguém comesse."

Eric Norris, um executivo da mineradora americana, disse-me que a Bolívia foi cogitada inicialmente devido à vastidão de suas jazidas de lítio, mas que o empreendimento logo se revelou "impraticável". Explicou que, além da carência de infraestrutura e da dificuldade de extração no Salar, "o ambiente político não era favorável". Em 2005, Morales tornou-se presidente da Bolívia. Mais uma vez, os camponeses apresentaram uma proposta para a exploração mineral do Salar. Morales concordou em criar um projeto-piloto para a extração e o processamento do metal. Dessa vez, prometeu o presidente, tudo seria comandado por bolivianos. Como afirmou: "O Estado nunca abrirá mão da soberania em relação ao lítio."

Marcelo Castro, engenheiro-chefe do projeto-piloto, levou-me de carro a um dos locais em teste no Salar. Usava óculos escuros fechados dos lados para bloquear o brilho; a brancura da paisagem estende-se até o horizonte, onde é interrompida pelos picos serrilhados dos Andes. "Como usamos o método evaporativo, o processamento do lítio pode ser rentável", disse-me Castro enquanto caminhávamos pelo Salar, com o sal rangendo sob as solas grossas das nossas botas. Encontramos uma camionete com caçamba e um rolo compressor: pareciam brinquedos de criança esquecidos numa praia. Ali perto ficava uma espécie de acampamento de trailers, onde moram os trabalhadores da estação de pesquisas. Um tanque quadrado e raso fora aberto na crosta de sal e preenchido com a solução, de um tom azul leitoso, onde está o lítio. Exposta ao vento e ao sol, a solução se transforma numa pilha de sais de manganês, potássio, bórax e lítio, que em seguida é filtrada e depositada em mais um tanque, e depois em outro. Após um ano e meio, é possível separar quimicamente o carbonato de lítio dos demais elementos.

O processo é supervisionado por um organismo governamental chamado Dirección Nacional de Recursos Evaporíticos. Castro, um homem de cabelos rebeldes, expansivo e passional, que parava repetidas vezes para admirar a operação, declarou-me que o projeto envolveria mais de 12 hectares de tanques como aqueles. "Antes, nossa mina-piloto era um sonho", disse. "Agora está se tornando realidade."

O projeto-piloto é um teste crucial para o governo. Mas, para Morales, é tão somente uma parte do que prometeu. Numa manhã de novembro passado, juntei-me à caravana do presidente, que estava em campanha para a reeleição. (E venceria as eleições, em 6 de dezembro, por uma larga margem de votos.) Morales seguia para a província de Beni, no nordeste, em plena bacia Amazônica. Normalmente, ele se desloca num avião de passageiros Fokker fabricado há vinte anos. Dessa vez, usava a aeronave de seu vice, um avião de seis lugares capaz de pousar nas curtas pistas de terra que nos aguardavam. O aviãozinho levantou voo sobre La Paz, a capital, no alto de uma encosta dos Andes. E as montanhas logo ficaram para trás enquanto sobrevoávamos o interior amplamente inexplorado do país. Olhando pela janela, Morales disse que o Salar "não pode ser um novo Cerro Rico". A Bolívia, continuou, nunca mais exportará matérias-primas sem se beneficiar do valor agregado auferido pelo mundo industrializado. Os bolivianos não se limitariam a extrair e processar o lítio por conta própria; produziriam também as baterias - e, a longo prazo, os próprios carros elétricos. "A partir dessa solução salina, a Bolívia fabricará carros a lítio para exportação", afirmou. "Este é o sonho. Sem sonhos, que valor têm as coisas? Os sonhos se tornam reais."

A pilha elétrica, inventada em 1800 por Alessandro Volta, é um aparelho relativamente simples. Compõe-se quase sempre de dois eletrodos de carga diferente - um anodo e um catodo - imersos num eletrólito, material que permite a passagem da corrente de um para o outro. Quando a pilha é acionada, fecha-se o circuito que permite o deslocamento de elétrons de carga negativa do anodo para o catodo, gerando energia.

Há décadas os carros utilizam baterias de chumbo-ácido, que fornecem energia para os sistemas elétrico e de ignição. Essas baterias também poderiam acionar um carro elétrico, mas são volumosas demais e, em comparação com a gasolina, geram muito menos potência. Dez anos atrás, a General Motors produziu um carro elétrico, o ev1, que utilizava 26 baterias de chumbo-ácido ligadas em linha. O veículo precisava ser recarregado a cada 110 quilômetros. Uma segunda versão, dotada de bateria à base de níquel, ampliou a autonomia para 180 quilômetros, mas também era pesadíssima.

Outra opção era o lítio, que é oito vezes mais leve que o níquel. Na década de 70, cientistas da Exxon desenvolveram uma bateria que tinha um anodo de óxido de alumínio e lítio e um catodo de dissulfeto de titânio. A bateria era relativamente fraca, e houve alguns acidentes no laboratório. "Depois de várias explosões, decidiram abandonar o investimento em energias alternativas", lembra John Goodenough, pesquisador de materiais na Universidade do Texas. Goodenough decidiu então experimentar uma bateria de íon de lítio. Construiu um isótopo, usando óxido de cobalto e lítio como catodo, e ela produziu o dobro da energia de qualquer bateria do mesmo tamanho.

Em 1991, a Sony recorreu às ideias de Goodenough para produzir a primeira bateria comercial de íon de lítio, provocando uma verdadeira revolução na indústria de bens eletrônicos de consumo. Um dos primeiros telefones celulares, o Motorola Dynatac, pesava quase 800 gramas quando foi lançado, em 1983, e permitia apenas trinta minutos de conversação. Em 1996, usando a tecnologia de íon de lítio, a Motorola lançou o Startac, que pesava 85 gramas e podia ser usado durante uma hora de conversa. Em pouco tempo, as baterias de íons de lítio tornaram-se o padrão em laptops e smartphones.

Na última década, a tecnologia do lítio migrou para a indústria automobilística. Em 2006, um grupo de empresários californianos lançou o Tesla Roadster, um carro esporte movido por 6 800 baterias de íons de lítio usadas em laptops. O Roadster é capaz de andar 400 quilômetros sem recarregar, e acelera de zero a 100 quilômetros por hora em menos de quatro segundos. Mais recentemente, a gm apostou o seu futuro no Chevrolet Volt, um carro híbrido com bateria de íon de lítio que começará a ser vendido até o final do ano.

Embora as baterias de íon de lítio sejam mais leves que as de chumbo-ácido ou à base de níquel, elas ainda são grandes e pesadas. A unidade de bateria do Volt, por exemplo, tem 2 metros de comprimento e pesa quase 180 quilos. "Ela é do tamanho de um jogador de futebol americano dos grandes!", brinca Larry Burns, ex-vice-presidente de Pesquisa e Desenvolvimento da gm.

A reatividade do lítio é outra fonte de problemas. Desde 2003, a Comissão para a Segurança dos Produtos de Consumo registrou centenas de casos de incêndio em baterias de íon de lítio de aparelhos portáteis nos Estados Unidos, embora ninguém tenha sofrido ferimentos sérios. (Em 2004, o avião em que viajava John Edwards, então candidato à Presidência, precisou fazer um pouso de emergência quando uma câmera de televisão explodiu a bordo.) Joe LoGrasso, que supervisiona o desenvolvimento de baterias para os veículos híbridos e elétricos da gm, admite que "a segurança é um problema". Recentemente, ele me levou ao laboratório de testes de baterias da empresa. A exatidão absoluta na produção é crucial, disse-me ele, porque qualquer impureza pode provocar um curto-circuito na bateria. "A umidade dentro da bateria é um risco, e as partículas de pó também." Ele diz que a bateria do Volt é segura, tendo sido submetida a mais de 150 tipos de testes. "Esmagamos, incendiamos e atiramos nas baterias", contou LoGrasso.

Embora os carros elétricos sejam de utilização barata - cerca de 2 centavos de dólar por quilômetro, se comparado aos 12 centavos dos carros a gasolina -, as baterias custam caro. A gm não revela o valor da sua bateria, mas várias fontes calculam que o custo é cerca de 1 mil dólares por quilowatt-hora - o que levaria o preço da bateria do Volt a 16 mil dólares. "Estamos tentando chegar a 300 dólares por quilowatt-hora", disse-me Britta Gross, outra executiva da gm. O preço do Volt deve ficar em torno de 40 mil dólares, mas os incentivos fiscais do governo para o uso de energias alternativas podem cortar 7 500 dólares desse total.

A Toyota anunciou recentemente que um Prius "de carregar na tomada", com bateria de íons de lítio, será lançado no segundo semestre. A Nissan e a Mitsubishi também divulgaram planos de fabricar carros a bateria, assim como a Mercedes-Benz, a bmw e a Hyundai. A Ford planeja vender uma versão totalmente elétrica do Focus no próximo ano. E a China afirmou que, em meados de 2011, terá a capacidade de construir meio milhão de carros híbridos e elétricos ao ano. "Todos esses veículos usam baterias de íons de lítio", disse-me Ted Miller, um veterano da administração da Ford.

Em janeiro, a gm abriu uma nova fábrica, em Detroit, de baterias de íons de lítio. Embora ela vá empregar apenas cerca de 100 trabalhadores, foi saudada como o prenúncio da salvação da empresa. O deputado John Dingell chegou a declarar: "Os Estados Unidos, Michigan, a General Motors e a indústria automobilística americana estão de volta."

A despeito de toda a animação com os carros elétricos, há dúvidas quanto às perspectivas de sucesso. No ano passado, o Departamento de Energia afirmou que as baterias de lítio conti-
nuavam caras e pesadas demais para a quantidade de energia que fornecem. A imensa bateria do Volt, por exemplo, pode fazer o carro rodar por cerca de 65 quilômetros (e aí o motor de combustão interna tem que ser acionado), a mesma distância que um Honda Civic consegue percorrer com menos de 4 litros de gasolina. Enquanto os carros elétricos não conseguirem se equiparar em autonomia e potência aos movidos a gasolina, deverão continuar ocupando um pequeno nicho de mercado: o dos ricos das grandes cidades.

Ainda assim, cientistas vêm abrindo novos caminhos. Pesquisadores da ibm trabalham numa bateria "lítio-ar". Nelas, em vez de ser selado num invólucro, o lítio permanece em contato com o ar, e usa o oxigênio ambiente como catodo, a exemplo do que fazem as baterias de zinco dos aparelhos de audição. O processo torna a bateria bem mais leve.

Visitei recentemente um laboratório da ibm perto de San Jose, na Califórnia, onde uma equipe de cientistas testava versões experimentais da bateria que, segundo esperam, mudará o mundo. A engenheira química Sally Swanson mostrou-me uma bateria lítio-ar construída no que parecia ser uma dessas juntas de plástico usadas para engatar duas mangueiras. Ela mostrou também um pequeno disco preto, do tamanho de uma moeda de 10 centavos. "Este é o catodo, e o carbono eu pinto por cima - tecnologia de última geração", disse, rindo. "E depois aqueço tudo numa grelha elétrica." Como o carvão é poroso, ele deixa o ar passar. "Aí, colocamos um pedaço de filtro de fibra de vidro em cima do catodo e, em cima dele, colocamos o lítio." O conjunto é montado sob um fluxo constante de argônio, um gás inerte. "Em seguida, terminamos a montagem e trocamos o gás por oxigênio", falou, girando uma válvula no alto do equipamento.

A equipe de pesquisa vem usando supercomputadores para construir modelos com várias combinações de eletrólitos, catalisadores e eletrodos, a fim de tornar ótimas todas as reações químicas. Outros cientistas vêm usando a nanotecnologia para tornar mais densa a superfície do catodo, o que poderá multiplicar o número de reações e aumentar, ao menos em teoria, a potência da bateria. Winfried Wilcke, chefe da equipe, calcula que será necessária mais uma década para produzir uma bateria de lítio que possa suplantar a gasolina. "Vamos passar os próximos três anos atrás de um resultado grandiloquente", disse ele. "No meio da década, talvez tenhamos algo espetacular para mostrar." Se esses esforços forem bem-sucedidos, o mundo poderá acabar sendo movido a lítio.

Um dos paradoxos mais famosos da economia é a maldição dos recursos naturais. Os países que possuem reservas abundantes de riqueza mineral tendem a ser pobres, pouco desenvolvidos e politicamente opressivos. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a Opep, por exemplo, reúne alguns dos países mais problemáticos do mundo, como o Irã, o Iraque, a Líbia, a Nigéria, Angola, a Arábia Saudita e a Venezuela. A Bolívia também tem uma história política bastante caótica, e uma longa tradição de não usar suas riquezas para o desenvolvimento da infraestrutura ou para oferecer uma educação decente a seus cidadãos. "A dependência dos recursos naturais sempre nos trouxe pobreza", lamentou Fernando Molina. "Quando vendemos matérias-primas, recebemos uma onda de dinheiro e, junto, o conflito para definir quem o controla. Criamos ciclos de elites." A Bolívia tem uma desigualdade extrema de renda e praticamente nenhuma base industrial. Como diz Pablo Salón, o embaixador boliviano nas Nações Unidas: "Precisamos importar até pregos." Evo Morales prometeu mudar tudo isso.

Em nosso voo, perguntei ao presidente como o lítio seria diferente dos outros recursos naturais com os quais a Bolívia fracassara. "Esses recursos nos foram tomados", respondeu ele, referindo-se ao fato de estarem em mãos privadas. "Dessa vez, o dono é o Estado, e já estamos começando a industrializar o lítio a fim de colher todos os benefícios." Morales lembrou ainda que, desde a nacionalização da indústria boliviana de hidrocarbonetos, em 2006, o Estado aumentara sua renda anual em mais de 2 bilhões de dólares. Essa abordagem, embora popular junto à base de apoio do presidente, é considerada imediatista por muitos economistas: as empresas estrangeiras que desenvolveram a exploração dos campos de gás desde a sua descoberta, em 2000, tiveram uma redução dramática nas margens de lucro, o que gerou dúvidas quanto a futuros investimentos. Os vizinhos da Bolívia, enquanto isso, saíram à procura de fontes mais confiáveis de gás natural. No ano passado, o preço do gás boliviano teve uma queda substancial. O ex-presidente Carlos Mesa disse que a produção caiu a tal ponto que hoje a Bolívia precisa importar gás. "Produzimos cada vez menos", afirmou, classificando a situação de "desastrosa".

Evo Morales defendeu sua política: assinalou que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, alarmados com o déficit orçamentário da Bolívia, forçaram o governo anterior a aumentar os impostos. "E houve revoltas populares! E tudo isso para reduzir o déficit!", afirmou. "Agora as taxas pararam de subir, e não temos mais impostos especiais sobre a gasolina. Os salários dos professores e trabalhadores da saúde aumentaram como nunca." (O salário médio de um professor aumentou 40%.) "Hoje temos um superávit fiscal. E foi com a nacionalização do petróleo e do gás que conseguimos esses resultados."

O presidente deixou de mencionar que o déficit foi reduzido também porque alguns credores internacionais perdoaram as dívidas bolivianas. Uma fatia dos recursos auferidos com gás destina-se ao subsídio da merenda escolar, à previdência social dos idosos e a incentivos para que as mães mantenham os filhos na escola. Mas uma parte significativa permanece nos cofres do governo - o que agrada aos credores internacionais. O governo afirma que os índices de pobreza caíram substancialmente e a produtividade dos trabalhadores aumentou. Morales me disse que a nacionalização também dará certo com a indústria do lítio. "Depois do petróleo e do gás natural, o lítio é muito importante para a nossa economia", declarou. "Mas, no momento em que começarmos a industrializá-lo, o lítio vai ser o mais importante."

Quando o projeto-piloto do Salar começou, muitas empresas manifestaram interesse em extrair o metal das planícies salgadas. Autoridades bolivianas tiveram conversas preliminares com representantes da lg, o conglomerado coreano que está construindo a bateria do Volt para a gm. Em 2006, Evo Morales visitou a França, onde o industrial Vincent Bolloré o levou para dar um passeio num BlueCar - um pequeno carro elétrico, em forma de bolha, que o bilionário planeja produzir em parceria com a estatal francesa de energia. Segundo Morales, Bolloré teria dito: "O senhor é quem controla a matéria-prima chave para os séculos xxi e xxii. A Bolívia é a Arábia Saudita." Mas Morales não quer que seu país se torne a Arábia Saudita. Ele quer que a Bolívia se transforme na França, numa potência industrial.

Perguntei ao presidente de que maneira, dado o estado miserável da infraestrutura boliviana, tal transformação poderia ocorrer. "Organizamos uma comissão científica no Ministério das Minas para dirigir as pesquisas", respondeu. A comissão reunirá "estrangeiros e bolivianos" para determinar a melhor maneira de extrair os recursos naturais e começar a industrialização. Morales disse que esperava ver a Bolívia fabricando baterias de íons de lítio até o final deste ano. A produção de automóveis, acrescentou em tom confidencial, ainda precisa esperar "mais cinco ou seis anos".

Evo Morales, que tem 50 anos, é a consequência da sua biografia. Sua abordagem nacionalista da exploração do Salar, e posições políticas em geral, são representativas de muitos bolivianos pobres, de origem indígena, que vivem há séculos à margem da sociedade e estão determinados a acabar com o modelo de espoliação. Morales nasceu numa aldeia aimara, no Altiplano. Cresceu num casebre de barro com teto de palha, onde morava com os pais e os dois irmãos, entre os sete que sobreviveram além dos 2 anos de idade. Começou a vender picolés na rua com menos de 5 anos, e aos 9 foi trabalhar com o pai em canaviais da Argentina. Adolescente, pastoreou lhamas nas planícies em torno da cidade de Cochabamba e aprendeu a jogar futebol com uma bola feita de trapos. Costumava pegar cascas de laranja e banana que as pessoas atiravam das janelas dos ônibus na beira da estrada. "Recolhia cascas para comer", contou ele num panfleto de campanha. "Na época, um dos meus sonhos era andar num daqueles ônibus."

Como tantos bolivianos de pouca escolaridade de sua geração, Morales teve raras oportunidades de emprego. Ser índio também era uma barreira. "Minha mãe não podia passear pela plaza", afirmou Morales. "Não tinha direito de andar pela calçada." Ter se tornado presidente, disse, é um fato "histórico, inacreditável".

Antes de entrar para a política, Morales firmou a reputação de líder habilidoso e destemido do sindicato dos plantadores de coca, cargo que ainda ocupa. Como muitos de seus compatriotas, ele tem uma ligação mística com a planta, cujas folhas os bolivianos têm o costume de mascar como um estimulante suave. No gabinete presidencial, tem dois retratos - um de si mesmo, outro de Che Guevara - feitos com folhas de coca. Na viagem de avião, Juan Ramón Quintana, chefe do Estado-Maior de Morales na ocasião, explicou-me que "a coca funciona como uma ligação entre os seres humanos e a natureza. Ajuda a comunidade a relacionar-se consigo mesma".

Plantador de coca, Morales foi um adversário aguerrido da política norte-americana de erradicação da droga nos Andes e, particularmente, do órgão dedicado ao combate à droga, a dea, Drug Enforcement Administration. Antes que a dea iniciasse uma intervenção pesada na Bolívia, nos anos 80, o país estava à beira de virar um "narco-Estado". Líderes militares corruptos dirigiam o país e usufruíam abertamente dos lucros do comércio de drogas. A dea, porém, criou fama de apoiar represálias brutais. Em 1988, policiais treinados pela agência e por militares norte-americanos tomaram de assalto uma aldeia e foram acusados de matar doze e ferir mais de 100 cocaleros. No ano seguinte, Morales discursou lembrando o massacre. Policiais deram-lhe uma surra, o atiraram de uma encosta e o abandonaram, supondo que morreria.

"Um dos maiores medos de Morales era a presença da dea", contou-me Fernando Molina. "Às vezes, ainda sonha que a dea está atrás dele." Morales não carrega bagagem quando sai do país, temendo que a agência americana possa plantar narcóticos em suas malas para incriminá-lo. (Um assessor transporta suas roupas num voo diferente.) "A dea não compreende o povo boliviano", garantiu-me Morales.

Em 2008, quando o presidente George W. Bush pôs a Bolívia e a Venezuela numa lista negra, alegando que não davam o devido combate ao tráfico de drogas, Morales e Chávez expulsaram os embaixadores americanos de seus países. Em seguida, Morales expulsou também a dea. Gestões vêm sendo feitas para restaurar as relações diplomáticas entre a Bolívia e os Estados Unidos. "Criaremos regras para definir um novo padrão para as relações bilaterais com os Estados Unidos," disse-me Morales. "Não haverá mais submissão."

Perguntei ao presidente como planejava impedir que o comércio de drogas voltasse a corromper a Bolívia. "Controle social", respondeu ele, de maneira vaga. Disse que novas regulamentações governamentais, como a que restringe a área de cultivo da coca, além da modernização da polícia, manteriam os narcotraficantes sob controle. Morales afirmou que, quando deixar o governo - eventualidade que, visivelmente, considera bastante remota - espera voltar à lavoura dos seus campos de coca, na região tropical de Chapare.

Enquanto isso, o presidente vem se aliando aos mais eminentes líderes antiamericanos. Além de se unir a Hugo Chávez, aproximou-se de Fidel Castro e Mahmoud Ahmadinejad, o presidente do Irã. Ahmadinejad visitou La Paz, em novembro, para anunciar um plano conjunto de estudo da tecnologia do lítio. "Sou grande admirador seu e dos iranianos", disse-lhe Morales. "Nossos povos têm a missão de se libertarem dos impérios." Fernando Molina explicou: "Evo é aimara, e os aimaras veem o mundo como uma luta entre as forças do bem e do mal, como em Guerra nas Estrelas. Para ele, as forças do bem são os plantadores e a folha de coca. O mal são a dea e os Estados Unidos."

"Não é que eu não goste dos norte-americanos", assegurou-me Morales. "Gosto de todo mundo. Mas o governo norte-americano se envolve nas nossas questões internas, conspira e ofende. O embaixador americano me tratava como um Bin Laden, um terrorista, um assassino, um narcotraficante. Quem pode gostar disso?" Sobre o presidente Barack Obama, suas palavras foram: "Ele tem as mãos atadas pelo sistema capitalista e pela estrutura do imperialismo." A única diferença entre Obama e seu antecessor, disse, é que "um é gringo e o outro é preto".

Morales representa duas poderosas forças sociais bolivianas: os sindicatos e o movimento indígena. Sua eleição proporcionou certa estabilidade a um país que assistiu a golpes frequentes, assassinatos políticos e mudanças bruscas de governo desde a conquista da independência, em 1825. "Antes, a política boliviana baseava-se em três pilares: os empresários, a Igreja e a embaixada americana", contou-me Walter Chávez, um ex-insurgente peruano que dirigiu uma das campanhas eleitorais de Morales. (Como enfrenta acusações de terrorismo no Peru, Walter Chávez recebeu asilo político da Bolívia.) "Nenhum político podia sonhar em manter a Presidência sem o apoio desses três grupos."

O sucesso de Morales foi decorrência direta da arrogância de seus adversários. Quando ele disputou pela primeira vez a Presidência, em 2002, o embaixador americano, Manuel Rocha, ameaçou cortar a ajuda à Bolívia se Morales se elegesse. Até então, Morales era uma força marginal na política boliviana. Mas, concorrendo na condição de "o pior pesadelo dos americanos", acabou recebendo 20,9% dos votos. O vencedor, Gonzalo Sánchez de Lozada, conhecido como Goni, chegou à Presidência com apenas 22,5%.

Goni, um proprietário de minas que alguns bolivianos consideram o homem mais rico do país, já ocupara a Presidência de 1993 a 1997. Retornou ao palácio presidencial com a renda nacional baixíssima, que ele se propôs a melhorar vendendo gás boliviano à Califórnia. Para que a operação fosse adiante, no entanto, seria preciso exportar o gás por meio de um porto chileno que fizera parte do território boliviano. A dor desse trauma ainda é tão aguda que a ideia desencadeou uma revolução. A Bolívia perdeu seus territórios costeiros quando o Chile, insuflado por investidores britânicos, invadiu o país, em 1879, para se apoderar dos ricos depósitos de guano (fertilizante) e salitre (usado na fabricação de explosivos) do deserto de Atacama. A invasão provocou a Guerra do Pacífico - um dos cinco conflitos bélicos malsucedidos que a Bolívia teve com os vizinhos e que, cumulativamente, acabaram reduzindo seu território à metade. A derrota para o Chile foi a que mais deixou cicatrizes na mente dos bolivianos. Ainda existe uma Marinha boliviana, que patrulha rios e lagos. Perto do quartel-general das forças navais, no Lago Titicaca, fica o monumento a um herói que tombou na Guerra do Pacífico, onde se pode ler a bravata que todo aluno do curso primário aprende na Bolívia: "Render-me, eu? Que se renda a tua avó, carajo!"

A ideia de que a venda do gás boliviano pudesse trazer algum lucro ao Chile inflamou sentimentos nacionalistas, abrindo oportunidade para Morales, para quem o gás deveria continuar boliviano. A controvérsia provocou uma série de greves e bloqueios que acabaram paralisando o país. Luís Ramos de Espejo, um dos organizadores dos protestos, repetiu-me um rumor que então corria solto: "Nosso governo queria vender todo o gás da Bolívia ao Chile, através da Argentina. Sabemos bem, pela nossa história, quem são os chilenos. Sempre quiseram tomar nossos recursos naturais." No dia 13 de outubro de 2003, Ramos reuniu-se a centenas de outros opositores no subúrbio pobre de El Alto, acima de La Paz. Os manifestantes derrubaram quatro vagões ferroviários do alto de uma ponte, fechando a principal estrada de ligação entre La Paz e o aeroporto. Todas as avenidas da cidade foram bloqueadas.

Goni convocou o Exército para romper o cerco. Mais de sessenta pessoas acabaram mortas, no episódio mais sangrento da turbulenta experiência democrática boliviana. Goni fugiu para os Estados Unidos e Carlos Mesa, seu vice, assumiu a Presidência. "Eu podia botar o Exército nas ruas ou ir para casa", disse-me Mesa. "Decidi ir para casa."

Morales chegou ao poder numa eleição especial, convocada em 2005, na qual, pela primeira vez na história boliviana, um candidato conseguiu a maioria absoluta. A partir do momento em que tomou posse, transformou o trabalho constante num fetiche. "Ele nunca tira um dia sequer de folga", contou-me Walter Chávez. "Nem no Natal, nem no Ano-Novo, nem no seu aniversário." Morales às vezes convoca reuniões para as quatro da manhã. No começo do mandato, os ministros mandavam seus motoristas ficarem à espreita do comboio presidencial, que geralmente ia para o palácio às cinco da manhã. Alertados, os ministros se vestiam às pressas e, no encalço do presidente, seguiam para o trabalho. Perguntei a Morales quando ele dormia. "Geralmente durmo no avião", resmungou. "Mas hoje você não está deixando."

O avião pousou numa pista de terra em Baures, perto da fronteira com o Brasil. Morales foi o primeiro presidente a visitar a cidade. Embora sua reeleição nunca tenha sido ameaçada (conquistou 63% dos votos, garantindo o poder até 2015), ele também fez campanha para conseguir dois terços do parlamento para o seu partido, o Movimiento al Socialismo, o mas, e assim poder implantar sem obstruções o programa de nacionalizações. O partido ultrapassou a barreira dos dois terços. Morales examinou a multidão reunida ao lado da pista de pouso - várias centenas de pessoas usando bonés azuis do mas, empunhando bandeiras do partido, gritando "Viva Evo!" e esperando, sob o calor escaldante, para escoltá-lo até a cidade. Assim que desembarcou, usando uma camisa listrada de manga curta, jeans pretos e tênis, Morales foi saudado com guirlandas de conchas e flores. A massa exuberante, acompanhada por uma banda de música, seguiu em passeata com o presidente até a cidade. O próprio Morales já tocou trompete numa dessas bandas.

Na escadaria em frente à prefeitura, tocou-se o hino nacional. Morales observou em tom tranquilo que, na última vez que visitara a região, em 1995, quando era dirigente sindical, fora posto na cadeia. "Nunca achei que fosse acabar presidente de um lugar que conheci preso", comentou.

Morales pode ser desconcertante na maneira como admite suas deficiências. "Irmãs e irmãos, eu sou como vocês", disse ele à multidão que se acotovelava à entrada da prefeitura. "Nunca estudei para presidente. Foi difícil para mim entender como o governo funcionava, como a Bolívia funcionava. Custou-me muito entender como funciona a economia." E agradeceu a seu vice-presidente, Alvaro García Linares, "um intelectual com um grande compromisso com o povo mais pobre e mais abandonado".

Alvaro García, que vem de uma família mestiça da elite, é um ex-guerrilheiro marxista. Carlos Mesa o define como "militante de uma organização terrorista". Ricardo Calla, antropólogo que foi ministro de Assuntos Indígenas, afirma que García é "o outro presidente", e governa a Bolívia com "uma perspectiva neoaustromarxista". García passou cinco anos na prisão durante os anos 90. Dizem que, depois dessa experiência, nunca mais deixou de sentir frio. Quando nos encontramos no palácio presidencial, de fato, ele estava encapotado com um comprido casaco de lã. Quanto à sua influência no governo, García me disse com modéstia: "Fizemos um esforço para indianizar o marxismo e marxizar o movimento indígena."

Morales, que tem dois filhos de relações anteriores, vive sozinho no palácio presidencial. No início, achava que isso era descabido, e encorajou Alvaro García e outros membros do gabinete a se mudarem para o palácio com ele. Sua equipe de segurança disse que era perigoso concentrar todo o governo num lugar só e, rapidamente, contou um antigo assessor, "a festa do pijama acabou". Morales adora esportes. Embora ande curvado, com os ombros para frente, continua a jogar squash e futebol. Jamais teve um terno. Ao ser eleito presidente, chamou um alfaiate, Manuel Sillerico, que criou para ele casacos e paletós que incorporam tecidos e trançados de origem indígena. (Morales diz tê-los desenhado ele mesmo.) Quando viaja ao exterior, mantém a mesma informalidade proletária, tendo sido recebido pelo rei da Espanha usando um pulôver.

No outono do ano passado, quando Morales esteve em Manhattan para a reunião anual das Nações Unidas, o ator Harry Belafonte organizou uma festa em sua homenagem, no Harlem. Mas Morales não pôde comparecer devido a uma dor de ouvido. Segundo um ex-membro de sua assessoria, como o presidente não confia na medicina americana, ligou para um médico na Bolívia, que lhe receitou lavar o ouvido com água quente. "O hotel disse que cobraria 40 dólares por uma panela de água fervente", lembrou o ex-assessor. "Quando saí, seus auxiliares estavam enrolando jornais, ateando-lhes fogo."

Ao assumir a presidência, Morales fez nomeações nada tradicionais. Casimira Rodríguez, uma índia que presidia o sindicato das empregadas domésticas, foi nomeada ministra da Justiça. Um ano mais tarde, o presidente precisou demiti-la. "Ela dava a impressão de não estar aprendendo nada", disse-me Walter Chávez, que contou outro incidente, ocorrido pouco antes das eleições de 2005: "Evo foi a Chapare para uma reunião do sindicato dos cocaleros. O apresentador do evento lia com grande dificuldade, e todos começaram a assobiar. Eu também estava assobiando. Então Evo se levantou, pegou o microfone e disse: 'Só vou ser presidente porque sou exatamente como ele. Quando eu não sabia ler, alguém me deu uma oportunidade. Se tirarmos esse homem que não sabe ler direito, e pusermos no lugar dele alguém que sabe, a revolução da qual achei que estava participando terá se transformado numa coisa muito diferente. Quem não tem paciência para aguentar pode ir embora.'" Ninguém saiu do lugar. "Ficou claro que ele daria oportunidade às pessoas que nunca tinham tido", continuou Chávez. "O sonho dele, esteja dormindo ou acordado, é mostrar que um índio pode governar, e governar bem."

A impressionante votação de Morales deixou seus opositores preocupados com o futuro do sistema partidário. "Morales combina a tradição caudilhesca latino-americana com certo autoritarismo de esquerda", observou Ricardo Calla. "O presidente tem quatro ideias fixas", disse-me o ex-presidente Mesa. "O Estado é sagrado; o Estado representa todos os bolivianos; tudo deve ser propriedade do Estado; e a combinação dessas três coisas garante a felicidade e o progresso."

Mesmo críticos do presidente admitem que, dada a dialética de espoliação e instabilidade que sempre definiu a Bolívia, há poucas alternativas ao caminho que Morales escolheu. "Para a maioria dos bolivianos, o melhor modelo é o do Estado provedor", afirmou Fernando Molina. E ele lembrou que o Chile também tem recursos naturais abundantes, mas é uma nação forte e homogênea, com uma economia diversificada. "A Bolívia, por outro lado, é uma nação muito heterogênea, e nunca foi capaz de integrar-se", disse Molina. E acrescentou: "Prefiro ver o dinheiro ir direto para o povo do que para o empreiteiro corrupto que construiu uma estrada que custou dez vezes mais do que devia."

Quando Morales acabou seu discurso em Baures, o prefeito agradeceu-lhe as novas estradas e os outros projetos que Morales prometera. "Eles virão preencher a sensação de vazio que temos nessas comunidades", declarou o prefeito. Morales voltou para a pista de terra caminhando à frente da multidão. Antes de embarcar no avião, enfiou a mão no bolso da camisa, onde levava um rolo de notas de 100 dólares, e pagou a banda.

Cerca de trinta anos atrás, Guillermo Roelants du Vivier, um jovem engenheiro nuclear belga movido pelo desejo de incrementar mudanças sociais, juntou algum dinheiro de bolsas de estudos e tomou o rumo do sul da Bolívia. Como me contou num café de La Paz, tinha se apaixonado pela cultura andina. Ajudou a criar um mercado para a quinoa, um cereal nativo que hoje figura em mesas do mundo todo, e também fundou uma fábrica de ácido bórico, que usava vapor geotérmico como fonte de energia. "Uyuni era muito, muito pequena", lembrou Roelants. "Agora temos médicos e água potável. As coisas mudaram muito."

Roelants preside o comitê científico encarregado por Morales de organizar a exploração dos recursos do Salar. "O us Geological Survey [órgão americano de prospecção geológica] publicou que o Salar tem 5,5 milhões de toneladas de lítio metálico", disse-me. "Pois estão completamente enganados!" Depois de vários estudos, ele calcula que a cifra correta seja de 100 milhões de toneladas - valor que quadruplicaria o tamanho das reservas mundiais de lítio. "Temos também quantidades expressivas de potássio, magnésio e boro no Salar", completou. "Não as maiores jazidas do mundo, mas quantidades muito importantes."

Ele estima que construir as instalações industriais e a infraestrutura necessária para embarcar o lítio para o exterior custaria pelo menos 600 milhões de dólares. No momento, porém, o mercado mundial total de lítio é de apenas 600 ou 700 milhões de dólares ao ano. Muitos analistas dizem que a demanda irá disparar assim que os carros elétricos começarem a deixar as linhas de montagem. A Byron Capital Markets, uma empresa de assessoria de investimentos, prevê um aumento de 40% na demanda apenas nos próximos quatro anos. Roelants diz que o financiamento para desenvolver o Salar viria do próprio governo, ou de empréstimos. "Todo mundo quer nos dar crédito com ótimas taxas de juros", comentou. Uma alternativa é tentar obter financiamentos junto a "empresas internacionais envolvidas na produção de carros", com base nas vendas futuras. "Conseguir o dinheiro não será problema", garantiu-me. O que é certo, diz Roelants, é que o controle deverá ficar nas mãos do governo. "O povo boliviano não quer outra guerra como a do Pacífico, ou outra Potosí", disse. "O Salar não está à venda."

Apesar de a Bolívia ter um oceano de lítio, quantidades substanciais do metal estão disponíveis em outros lugares. Além das grandes jazidas em solução salina nos Andes e no interior da China, o lítio pode ser encontrado também numa pedra chamada pegmatita. A Austrália já tira lítio da pegmatita. "Dois países, a Argentina e o Chile, poderiam fornecer lítio barato ao mundo inteiro até depois de 2060", contou-me Lucie Bednarova Duesterhoeft, pesquisadora da gm. Devido à infraestrutura precária da Bolívia, além das impurezas encontradas no Salar, o custo da extração do lítio será significativamente maior do que em outros países - cerca de 5 mil dólares por tonelada, avalia Duesterhoeft, comparado a menos de 2 mil no Chile. As duas maiores operações de mineração de lítio no mundo estão hoje no deserto de Atacama, no Chile - em terras tomadas da Bolívia durante a Guerra do Pacífico.

Embora a má vontade de Morales com as empresas multinacionais continue a empolgar seus seguidores, a obsessão do presidente em impedir que o Salar se transforme num novo Cerro Rico também pode impedir que o lítio vire uma fonte de riqueza. A menos que o governo consiga chegar a um acordo com uma multinacional - ou descubra um método de extrair minério do Salar a um custo competitivo -, o lítio boliviano tende a continuar confinado na crosta de sal, tão distante e inacessível quanto o sonho de Morales de produzir baterias e carros bolivianos.

Em janeiro, a Toyota Tsusho, fornecedora da Toyota, anunciou um contrato de 100 milhões de dólares com a Orocobre, uma companhia australiana de mineração, para o fornecimento de lítio argentino para carros híbridos e elétricos. A Orocobre vem conduzindo um estudo de viabilidade para a mineração do Salar de Olaroz - uma planície de sal próxima à fronteira argentino-boliviana. Segundo James Calaway, presidente da Orocobre, a planície argentina é bem menor que o Salar de Uyuni, mas o lítio ali tem menos impurezas. Calaway me disse que a planície boliviana "é como uma mulher sedutora, mas, quando você a olha bem, vê que as coisas não têm como dar certo." Além do mais, disse, "não se pode ignorar o fator Morales". A Orocobre pretende começar sua produção na Argentina em 2012, onde já obteve o direito de explorar mais de uma dúzia de planícies de sal. Apenas 8% dos lucros deverão ficar em mãos argentinas, mas ao longo dos anos devem somar um valor significativo. (E a Orocobre terá de pagar imposto de renda.)

Muitos bolivianos ficaram abatidos com a notícia: mais uma vez, um vizinho lucrava à sua custa. (Um editorial do diário boliviano El Deber afirmou, irritado, que a Argentina, com suas "minúsculas planícies de sal", havia conseguido "os melhores contratos para a exploração do lítio, enquanto os bolivianos perdem tempo".) Mas um porta-voz do governo boliviano afirmou que o contrato da Toyota foi recebido "com calma e cautela, sem desespero".

Um mês depois de o negócio com a Toyota ter sido anunciado, começou a circular o boato de que a comissão científica chefiada por Roelants estudava propostas de empresas estrangeiras interessadas no Salar de Uyuni. Entre elas estariam a Mitsubishi, fabricante de carros e aparelhos eletrônicos; a Kores, megaempresa de mineração controlada pelo Estado sul-coreano; e a Bouygues, o conglomerado francês. Uma delegação japonesa chegou a La Paz e participou de uma conferência promovida pelo governo dedicada ao "futuro da indústria boliviana". Os encontros foram cordiais, mas nenhum acordo parece iminente. Na conferência, Saúl Villegas, diretor de Recursos Evaporativos da Corporação Mineira da Bolívia, reiterou que qualquer projeto de mineração de lítio precisa estar "sob controle 100% governamental". Depois, ele me disse que "não se repetiria a história de Potosí". A Bolívia, prosseguiu, tinha a obrigação de assegurar ao mundo um suprimento constante e confiável de lítio "pelos próximos 100 ou 200 anos". Villegas, no entanto, não falou nada sobre a produção de baterias ou carros na Bolívia.

Uma perspectiva mais realista sobre a economia boliviana parece ter se firmado entre alguns membros do governo. Poucas semanas depois do anúncio do acordo entre a Toyota Tsusho e a Argentina, Roelants declarou que, no fim das contas, o grande "futuro industrial" da Bolívia não era o lítio. Em vez dele, o país devia se concentrar noutras substâncias valiosas encontradas no Salar, especialmente o cloreto de potássio, ingrediente de muitos fertilizantes. O cloreto pode ser extraído com muito mais facilidade do que o lítio, disse Roelants, e em quantidades bem maiores. O engenheiro calculou que o Salar poderia produzir 800 mil toneladas de sais de potássio por ano. "O potássio é mais importante", disse ele, acrescentando que o lítio não passava de um subproduto.

O presidente da Bolívia, porém, não parece ter concordado inteiramente com a ideia de que o tesouro de lítio do Salar pode representar pouca coisa. No dia 10 de março, José Pimentel, o ministro das Minas, anunciou a criação de uma nova empresa estatal, a Empresa Boliviana de Recursos Evaporíticos, destinada a dedicar especial atenção ao lítio, explorando "todas as alternativas" para obter o oro gris. O investimento inicial do governo será de 5 milhões de dólares. O diretor da companhia será escolhido pessoalmente por Evo Morales.

* Tradução de Sergio Flaksman

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos