quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A polêmica estrada de Evo Morales


Marcha indígena contra a estrada no TIPNIS
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A polêmica estrada de Evo Morales
Conheça a história da marcha indígena, os interesses em jogo e todo o contexto que envolve uma obra que colocou o governo do presidente boliviano em uma encruzilhada.
Por Lídia Amorim
La Paz. Domingo, 25 de setembro, 19h. Cecília Moyoviri torcia as mãos pequenas, mas dessa vez não era pelo frio. Os olhos rasgados estavam cheios de lagrimas. Meio fora de si, como um fantasma, caminhava no meio da Praça São Francisco. As mama t’allas, anciãs sábias do Conamaq, instituição representativa dos indígenas do altiplano, começaram a agir. Pouco a pouco acenderam velas, escreveram cartazes. Rosto imóvel, expressão de decepção, trabalhavam em silêncio até que começou a se ouvir: “Assassinos! São assassinos! Governo assassino!”. Era assim que gritava Cecília, as mãos apertando forte o microfone. Sua voz ecoou pela praça.
Cecília é uma das representantes das mulheres indígenas da região do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS). Está em La Paz desde 19 de setembro. Veio com a intenção de mobilizar e sensibilizar, explicar por que seu povo não quer a estrada, planejada pelo governo boliviano, que corta ao meio seu território. E por isso está, junto a outros representantes de povos indígenas e instituições ambientalistas, fazendo uma vigília, vivendo em barracas na Praça São Francisco. Nesta noite, todos foram surpreendidos por uma noticia: a polícia desalojou os indígenas marchistas que estavam na região de Chaparina.
Chaparina, Beni. Domingo, 25 de setembro, 16h30. 41 dias de marcha indígena, 15 deles sem poder seguir. Indígenas yuracarés, moxeños e chimanes, além de dirigentes de terras altas, descansavam sob a sombra das árvores perto da Ponte San Lorenzo, onde estavam acampados há dias. Ganharam uma vaca do proprietário do lugar. Enquanto algumas mulheres limpavam e separavam as partes do animal, outras lavavam roupas. Os homens caminhavam pelo acampamento, faziam planos, pensavam em como fazer para atravessar o bloqueio que não deixava a marcha passar. Os bebês dormiam nas barracas de camping, as crianças maiores brincavam.
De repente, notaram uma movimentação diferente. Policiais se acercavam, olhavam entre as árvores. Os dirigentes perceberam. Perguntaram o que faziam ali, dizendo que não queriam presença policial no acampamento e pediram que mostrassem sua identificação. Com a identificação, veio a primeira bomba de gás lacrimogêneo.
As pessoas se assustaram. As crianças gritavam enquanto esfregavam os olhos. Todos correram desesperados. Os dirigentes foram os primeiros a ser agarrados pela policia. Fernando Vargas, dirigente dos indígenas do TIPNIS, pensou: “Vão me matar”. Resistiu. Apanhou. Os policiais colocaram fita adesiva na sua boca, procedimento que repetiram com muitos ali para que não gritassem.
Um dia antes, a Bolívia e o mundo se chocaram com a audácia dos indígenas amazônicos. O ministro de Relações Exteriores, David Choquehuanca, estava na região com os vice ministros Cesar Navarro e Wilfredo Chávez, então nas pastas de Relações com Movimentos Sociais e de Coordenação Governamental. A intenção da visita oficial ao lugar da marcha era dupla: convencer os indígenas da importância da estrada para a região e fazer com que o grupo dos chamados interculturais deixasse o grupo de indígenas seguir seu caminho. Os interculturais ou colonos são grupos que saíram de outras partes do país, como La Paz e a região cocaleira do Chapare de Cochabamba, em busca de novas terras para plantar. Desde que chegaram à região do TIPNIS o que plantam é, principalmente, coca. De acordo com um monitoramento feito via satélite pelo Serviço Nacional de Áreas Protegidas, Sernap, de 1976 a 2007 foram perdidos mais de 76 mil hectares de espaço vegetal nativo no TIPNIS, dos quais 97% foram destinados ao plantio de coca. Nesse momento, eles querem a estrada. E querem mais terras.
Segundo os marchistas, Choquehuanca disse que a barreira policial que separava os grupos não estava ali para evitar que passassem, e sim para evitar um conflito entre os dois grupos. As mulheres, indignadas, agarraram a autoridade pelo braço e o fizeram caminhar por três horas, até chegar ao cerco policial, para que vissem por si mesmas o que chamavam de bloqueio policial. Chegando ali, as coisas se complicaram.
Teve início um empurra-empurra que deixou quatro policiais levemente feridos. Depois disso, os marchistas liberaram um assustado e suado ministro, que chegando à sede de governo comunicou à nação que havia sido sequestrado, tomado como refém, obrigado a marchar. “Me deixaram com o pescoço vermelho de tanto puxar minha camisa, foi um momento angustiante”, contou.
O então ministro de Governo Sacha Llorenti, em conferência de imprensa, prometeu uma demanda internacional pelo sequestro de Choquehuanca e das outras duas autoridades. Afirmou que o governo não voltaria à marcha para negociar, que corriam risco de vida. “A marcha já não é pacífica”, afirmou Llorenti, de maneira contundente.
Diálogos fracassados
O dia fatídico em que obrigaram David Choquehuanca a marchar não foi o primeiro encontro dos indígenas com autoridades do governo boliviano. Na verdade, era a nona tentativa de diálogo. O encontro anterior, também com o ministro, foi solicitado pela marcha, que pediu a presença de uma autoridade que fosse indígena, para que pudesse se sensibilizar com sua causa. Chegou a comitiva oficial, na qual estavam também os ministros da Presidência, Carlos Romero, e o de Obras Públicas, Walter Delgadillo. Foi um completo fracasso.
O imbróglio começou com um longo discurso de Choquehuanca falando da união dos povos, e, metaforicamente, explicando que não era possível atender à solicitação dos hermanos marchistas, que era o planejamento de outra rota para a estrada. Os indígenas, que já não estavam felizes com a atuação do presidente Evo Morales, que dias antes ignorou a marcha e se reuniu com indígenas da comunidade de Santo Domingo, no coração do TIPNIS, manifestaram todo seu desagrado.
“Hermano canciller, quero ressaltar novamente o erro que está cometendo o presidente em ir reunir-se com a comunidade de Santo Domingo, desconhecendo as estruturas orgânicas do movimento indígena. O governo nacional quer fazer consulta quando já violentou as normas, creio que devemos partir desse princípio, desde a consulta prévia”, analisou Fernando Vargas.
O dirigente se referiu ao artigo 30, parágrafo 15 da Constituição Política do Estado, aprovada em 2009 por meio de um referendo popular e escrita pela bancada de apoio ao presidente Morales. O artigo afirma que “as nações indígenas gozam do direito de serem consultadas mediante procedimentos apropriados, em particular através de suas instituições, cada vez que se planejem medidas legislativas ou administrativas que possam lhes afetar”.
Os ministros escutaram tudo com atenção. Mas a resposta de Choquehuanca provocou desalento e revolta. “Hermanos, o presidente já tomou uma decisão. Não se pode mudar a decisão do presidente do Estado.” Além disso, ao anoitecer, durante um dos intervalos da conversa, Choquehuanca afirmou aos jornalistas ali presentes que não havia nenhum bloqueio em Yucumo e que a polícia não ia impedir que os manifestantes seguissem seu caminho.
O que o canciller ignorou era, na verdade, a grande preocupação do momento. Quando Choquehuanca afirmou que não havia bloqueio, os interculturais, nessa época conhecidos como colonizadores ou colonos, estavam fechando o caminho com paus e ameaçando com dinamite. A intenção era evitar que a marcha chegasse ao seu destino, a sede do governo boliviano, La Paz. “Queremos que dialoguem”, repetiam em coro os dirigentes interculturais.
O presidente Evo Morales, em visitas a comunidades e em conferências de imprensa, assegurou que a estrada não iria provocar a destruição do parque nacional. Enquanto isso, a proposta da nova Lei de Terras Comunitárias, elaborada pela Confederação Sindical Única de Trabalhadores Campesinos da Bolívia (CSUTCB), dispõe que zonas que são parte de áreas protegidas podem ser consideradas como disponíveis para ser repartidas entre comunidades indígenas e colonos. Além disso, na proposta, sugere-se congelar o desalojamento das colônias ilegais.
“Eu nasci e vivi nessa região. Minha placenta está enterrada aí. Venho do sul do parque, onde os colonizadores estão invadindo. Você tem que ver meu lugar, dá pena, como sem estrada eles estão invadindo”, conta Cecília Moyoviri.
A barreira e os conflitos
Com o tempo, os colonizadores aumentaram as medidas de pressão. Todas as doações de ONGs ou particulares que chegassem para os indígenas eram confiscadas no meio do caminho. Revistavam-se mochilas, carros e documentos de quem quisesse passar. “Era ruim ser indígena de terras baixas, porque era marchista, e era pior ser indígena de terras altas, porque era agitador”, conta o ativista ambiental Edwin Alvarado. Não era permitida a entrada de comida, água e medicamentos para os indígenas que marchavam. O governo, nesse momento, dizia que esse era um problema que os dois grupos deveriam solucionar entre si, e, para evitar que uma tragédia maior, colocou uma barreira policial no meio.
Alguns dias depois de o canciller dizer que não havia bloqueio, uma caminhonete da ONG Fobomade (Fórum Boliviano sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento) foi apreendida pelos colonos por estar levando comida e remédios para os manifestantes. As coisas se tornavam cada vez mais tensas. Até os jornalistas foram impedidos de passar. Muitos, como eu, nesse momento, tiveram que voltar para casa desde o meio do caminho. Ser um elemento externo já era um problema. Ser de outro país era muito pior.
Quando os indígenas levaram Choqueuanca para ver pessoalmente a barreira policial, já tinham completado 15 dias nessa situação. O ápice desse conflito foi quando os mesmos policiais impediram que os indígenas chegassem ao rio que havia perto do acampamento. As imagens divulgadas pelos canais de televisão eram duras: mulheres com crianças nos braços, chorando para poder recorrer a um pouco de água.
Quando conheci Cecília, na vigília instalada na Praça São Francisco, ela estava assustada pela notícia de que os colonos estavam jogando dinamite perto do acampamento dos marchistas. Nesse lugar, ela deixou seus irmãos, sobrinhos, esposo, filhos. Quando começou a falar, a voz a principio não saiu. Depois, foi aumentando de volume, até se transformar em gritos de revolta e medo. “Naquele momento, nossos hermanos marchistas estão sofrendo esse atropelo, isso que estão fazendo. Não queremos mais mortos, não queremos mais sangue.”
Depois das imagens divulgadas por vários canais de TV do país, o governo mandou um caminhão com 2,5 mil litros de água para os 1.200 marchistas. As principais cidades do país se mobilizaram para juntar alimentos e água para doar. Mas em função do bloqueio dos colonos, grande parte de tudo isso nunca chegou.
A origem da marcha
A marcha saiu de Trinidad, estado do Beni, dia 15 de agosto, com a proposta de defender o TIPNIS. Estavam presentes 33 etnias. E como eram muitos grupos, a demanda cresceu: o que queriam os marchistas já não era apenas um, mas a efetivação de 16 pontos. Escreveram sua carta, com seus pedidos, e encaminharam ao governo.
A resposta não foi muito favorável, já que alguns dos pedidos incluíam a suspensão de atividades hidrocarboríferas que se considera de fundamental importância para o país. Outra solicitação que o governo boliviano considerou impossível atender foi a possibilidade de que os indígenas recebam diretamente do Banco Mundial o fundo verde, sugerido por organizações internacionais na 16ª Conferencia das Nações Unidas sobre Mudança Climática em Cancun, no ano passado. Isso porque o governo boliviano é totalmente contra o fundo que, nas palavras de Morales, “seria como uma autorização para depredar livremente”.
Mas essa marcha, na verdade, não é a primeira e tem um significado muito mais profundo. O nome da manifestação é VIII Marcha Indígena pela Vida e Dignidade, fazendo referência à primeira marcha em defesa dos direitos dos povos indígenas, realizada em 1990, e que fez conhecido o então cocaleiro e ex-mineiro de ascendência indígena Juan Evo Morales Ayma. Desse protesto, nasceu o reconhecimento do primeiro território comunitário indígena: o Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure – TIPNIS.
Para muitos, a marcha de agora é uma continuação, que busca resgatar bandeiras de Morales que podem ter se perdido no meio do caminho. “Se fazem isso com os hermanos do TIPNIS, logo vai ser comum, e vão fazer tranquilamente com todos nós. Aí já não vai existir nenhum direito”, explica Alberta Condori, mama t’alla do Conamaq. “Essa é também uma marcha que mostra a capacidade de coesão dos povos indígenas para não dar um passo atrás nos direitos de consulta e território”, avalia Edwin Alvarado.
Enquanto a marcha caminhava rumo a La Paz, muitas coisas aconteceram para enfurecer de verdade os indígenas. Uma das primeiras foi um discurso do presidente Evo Morales na região do Chapare, quando uma brincadeira pesada indignou as mulheres que participavam da manifestação. “Não sei o que estão fazendo os jovens do Chapare. Eu, se tivesse tempo, ia conquistar as mulheres yuracarés, chimanes, mojenhas. Jovens do Chapare, vão conquistá-las e convencê-las a deixar que se construa a estrada.” A reação foi dura. As indígenas responderam aos meios, pela voz de Justa Cabrera, presidente da Confederação Nacional de Mulheres Indígenas da Bolívia (CNAMIB): “Senhor presidente, não somos prostitutas, somos mulheres dignas e sua conquista nos repugna”.
Os meios de comunicação do país viraram palco de um vai-e-vem de provocações. O governo falava A, os marchistas respondiam A, B e C. Pouco a pouco, foram aparecendo os oportunistas. Partidos de direita, de oposição ao governo Morales, pessoas que só queriam uma pontinha de atenção. Gente esquecida, ex-presidentes, pesquisadores que ninguém sabe bem quem é. O governo também aproveitou a situação e começou a acusar a marcha de ter tonalidade política, insinuando que os indígenas seriam motivados e financiados por ONGs e pelos Estados Unidos, tudo com a intenção de desestabilizar um processo de mudança.
Renúncias e crise no governo
Na segunda-feira depois da invasão policial, o país amanheceu perplexo. Nas ruas de La Paz, as pessoas paravam para ver os jornais e as televisões de boteco. As expressões eram as mais variadas possíveis, e iam do sorrisinho irônico à boca aberta de espanto. As imagens das agressões policiais, crianças correndo e mulheres com cinta adesiva na boca sendo arrastadas pareciam vindas de outros tempos, talvez de um 2003 dominado pelo presidente Gonzalo Sanchez de Lozada, que promoveu um verdadeiro massacre no país.
Em San Borja, os moradores bloquearam a cidade em protesto contra a agressão. Os dirigentes da marcha foram levados até a cidade de Rurrenabaque, onde deveriam embarcar em um avião que levaria todos até Trinidad de novo. Esse era o plano. Mas, do nada, centenas de pessoas, lideradas por membros de uma comunidade indígena tacana, tomaram o aeroporto de Rurrenabaque. No final das contas, os dirigentes foram liberados, e pouco a pouco voltaram a se reunir.
Mas não foram só as imagens das agressões que surpreenderam os bolivianos. Também na segunda pela manhã a ministra da Defesa, Cecília Chacón, enviou ao presidente Evo Morales sua carta de renúncia. “Assumo esta decisão porque não compartilho da medida de intervenção da marcha que o governo assumiu e não se pode defender nem justificar a mesma”, dizia na carta.
Também na segunda, o ministro de Governo Sacha Llorenti explicou à nação que havia “uma ordem para o procedimento em Chaparina, a marcha já não era pacífica e isso foi feito para evitar mortes.” Um dia depois, quem renunciou foi ele, além do vice-ministro do Interior, Marcos Farfán. Ambos são acusados por marchistas de todo o país de haver dado a ordem que deu início aos eventos daquele domingo, 25 de setembro.
No meio de toda a confusão, Morales deu posse a seus novos ministros: Wilfredo Chávez ficou com o cargo de Llorenti como ministro de Governo, e Rubén Saavedra voltou ao posto de ministro da Defesa, depois de seis meses longe da cadeira por ter se encarregado pelas negociações com o Chile por um acesso boliviano ao mar.
Mas ninguém está satisfeito, porque, até o momento, não há responsáveis nem punições. A polícia diz que recebeu ordens superiores. Não se sabe de que superiores. Quem protesta em todo o país pede que se investigue e se faça justiça, além de pedir também a renúncia dos ministros da Presidência, Carlos Romero; de Obras Públicas, Walter Delgadillo, e de Relações Exteriores, David Choquehuanca.
A suspensão
Na segunda à noite, o presidente Evo Morales pediu desculpas à nação e prometeu investigar os fatos e punir os culpados. Além disso, suspendeu a construção da estrada até que se realize um referendo nos departamentos de Beni e Cochabamba, envolvidos diretamente no tema da estrada.
Em oito dos nove departamentos do país seguiam no fim de setembro os protestos pedindo justiça pelas agressões e crianças separadas de suas famílias. Quatro dias depois, os dirigentes da marcha contam que ainda há crianças desaparecidas. “Todos correram por todos os lados e se meteram na floresta” conta Walberto Baraona, da Comissão de Meio Ambiente do Conamaq. Em Santa Cruz, a Assembleia do Povo Guarani, representantes do povo Guarayo e outros grupos estavam em greve de fome.
Na quarta-feira, 28, a Central Obreira Boliviana assegurava também seu apoio ao protesto dos indígenas, e promoveu uma paralisação em nível nacional. Como estão filiados à COB trabalhadores de diversos setores, o país parou mesmo. O único movimento que se viu até o fim da tarde em La Paz foi de uma enorme marcha que incluía mineiros, professores de campo e cidade, estudantes, intelectuais, ambientalistas.
No mesmo dia, o presidente voltou a aparecer na televisão para acalmar os ânimos. “Eu, como vítima que fui um dia, nunca poderia haver instruído essa violência. Jamais pensamos que as coisas iam ser desse jeito. Essas mobilizações são uma chamada de atenção para mim. Devemos corrigir os erros.” Além do pedido de desculpas, Morales fez uma forte crítica aos meios de comunicação, com referências à guerra midiática em que se tornou o conflito e as notícias de desaparecidos e mortos sem confirmação.
Cecília Moyoviri ficou doente, pelo frio e pelo ar da cidade. Mas, na quarta-feira, saiu a marchar, gritando com a pouca voz que ainda tinha. Em San Borja, a marcha indígena, já com a presença dos seus dirigentes, o que inclui um ainda ferido Fernando Vargas, se reestruturava. Ainda não se sabe o dia, mas vão voltar a marchar. Ainda para que se analise sua proposta de caminho, e agora com um pedido a mais: justiça.

A estrada da discórdia
Em 2008, o governo de Evo Morales assinou um contrato com a empresa brasileira OAS para a construção de uma estrada que deveria promover a integração entre os vales andinos e a região amazônica. A obra tem um total de 306 quilômetros, e seu preço final é de 415 milhões de dólares. Em fevereiro deste ano, o governo boliviano assinou um contrato de crédito com o BNDES, de 80% do valor total. O que o presidente Morales não imaginava era a dor de cabeça que a estrada ia provocar.
A Administradora Boliviana de Estradas (ABC, Administradora Boliviana de Carreteras, em espanhol) dividiu o projeto da construção da estrada em três partes: a primeira sai do lado cochabambino; a terceira sai do lado beniano; e a segunda, que atravessaria o TIPNIS e que é, por essa razão, a raiz dos protestos. As partes 1 e 3 têm licença ambiental, já que se considera que não existe nessa parte nenhum território indígena, nem área protegida. Inclusive, com autorização do governo boliviano, a empresa brasileira já começou os trabalhos nessas duas partes.
O problema é que a segunda parte cortaria ao meio a zona núcleo do TIPNIS, um parque nacional que além de ser reconhecido por lei como área protegida, é também uma TCO – território comunitário de origem. Ou seja, é uma área protegida de 1,1 milhão de hectares que abriga três etnias – yuracarés, moxeños e chimanes. E são exatamente essas pessoas que começaram a marcha. É gente que, mesmo tendo seu território garantido por lei, sofre invasões por parte de madeireiros, cocaleiros e outros grupos.
Para os indígenas do Oriente boliviano, a floresta é a casa grande onde caçam, colhem frutas, buscam água, se divertem. É parte da sua vida cotidiana. E faz parte da sua filosofia defendê-la com a própria vida. Não é que os indígenas não queiram a estrada. Eles querem. O problema é por onde vai passar. O que pedem é que a estrada não atravesse a zona núcleo do parque, que são as poucas partes onde existe mata virgem.
O TIPNIS é um campo minado, com conflitos desde os anos 1970, quando os colonos de terras altas começaram a avançar sobre a reserva. Além disso, há a ameaça dos traficantes de madeira. “Na reserva existem 500 mil árvores, segundo cáclulos do PIEB (Programa de Investigación Estratégica de Bolivia)”, conta Edwin Alvarado.
O governo propôs sete rotas alternativas, mas nenhuma foi aprovada pelos indígenas da região. Para eles, a solução é contornar o parque por fora, seja pela esquerda ou pela direita. O problema é que, para isso, seria necessário alterar totalmente as partes 1 e 3. E o novo trajeto aumentaria em pelo menos 150 quilômetros a segunda parte.
Revista Fórum

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