domingo, 18 de janeiro de 2009

Uma obra inacabada - Constituição de 1988


Uma obra inacabada
por Mauricio Dias
Aos 20 anos, a Carta Magna vive a sua contradição. Teve 55 emendas e ainda aguarda leis para vigorar plenamente

A desilusão com a hoje esquecida Nova República, que tinha à frente o presidente José Sarney e sucedia à ditadura militar, e a esperança com a elaboração da nova Constituição, comandada pelo deputado Ulysses Guimarães, formavam a moldura político-social do Brasil em meados dos anos 1980.

Os mais velhos se lembram, os mais novos já viram ou ouviram falar daquela foto de Ulysses Guimarães, presidente do Congresso Constituinte, erguendo sobre a cabeça um exemplar da Constituição e proclamando, com a voz encharcada de esperança, a promulgação da nova Carta Magna, que apelidou de “Cidadã”.

Já se passaram 20 anos, desde aquele dia 5 de outubro de 1988. O Brasil ainda tem desilusão com umas coisas e esperança com outras. Talvez em porcentuais diferentes. Mas a Constituição já não é a mesma. Para uns, foi desfigurada pelo número exageradamente grande de emendas: 55 ao todo. Para outros, foi modernizada por elas.

Há mais 1.107 propostas de emendas constitucionais tramitando na Câmara dos Deputados, 77 delas apresentadas em 2008, considerada a data de fechamento desta edição de CartaCapital. E resta um surpreendente número de 141 dispositivos constitucionais à espera de regulamentação. Há propostas de reforma política, tributária, judiciária e educacional. Também há quem sonhe com uma nova Carta para substituir a velha.

A Constituição brasileira é uma obra aberta. Um trabalho em constante progresso, sem previsão de conclusão.

Transformado equivocadamente em único grande vilão dos fracassos do País, o Congresso tem merecido em parte a quantidade de pedras jogadas sobre as duas casas, Senado e Câmara, cuja arquitetura saiu da prancheta do mundialmente famoso Oscar Niemeyer, um brasileiro centenário que acompanhou seis das sete constituições elaboradas na República. Mas o Congresso é simplesmente o reflexo da sociedade, o saco de pancadas mais visível. O Narciso brasileiro acha feio quando vê o espelho.

O passo seguinte é sempre resultado do passo anterior. O restabelecimento da democracia brasileira foi feito à brasileira. A morte da ditadura militar obedeceu a um funeral estabelecido pelo ditador, o general Ernesto Geisel, gestor da “abertura lenta, gradual e segura”. O primeiro presidente civil, José Sarney (era o vice e assumiu com a morte do titular, Tancredo Neves, ocorrida na véspera da posse), apoiou o golpe de 1964 e consolidou-se politicamente ao longo do regime do qual virou um expoente. É de Sarney a frase que Tancredo Neves repetia: “A democracia não foi feita contra os militares, mas com os militares”.

Tudo parecia repousar sobre os ombros do ministro do Exército, Leonidas Pires Gonçalves. Ele negociou pessoalmente a manutenção do item constitucional que concede aos militares a responsabilidade pela manutenção da “ordem interna”.

A convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte frustrou-se com a realização de um Congresso Constituinte. “Vai ser uma Constituinte da hora do almoço”, ironizava Raymundo Faoro, o primeiro a propor a elaboração de uma nova Carta, a partir de uma Constituinte exclusiva. Ele falou dez anos antes na Assembléia Nacional Constituinte, que se formou, dez anos depois, como Congresso Constituinte.

“Seu caráter congressual, inerente ao formato adotado de um Congresso Constituinte, foi por muitos – notadamente entidades da chamada sociedade civil, OAB, ABI e CNBB à frente – tido como uma restrição intransponível a maior inovação”, escreve Renato Lessa, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), em A Constituição de 1988 na Vida Brasileira, em livro coletivo que será lançado na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), com início no dia 22 de outubro, em Caxambu (MG).

Mas não era somente a sobreposição confusa entre a rotina do Legislativo e o caráter extraordinário da Constituinte o único empecilho. Lessa anota que “um terço dos senadores escolhidos em 1982 iria participar dos trabalhos sem que tivesse nenhuma autorização do eleitorado para tal”.

Ninguém naquele Congresso, eleito em 1984, tinha mandato para a tarefa constituinte. A vitória acachapante do PMDB, alcançada pelo sucesso inicial do Plano Cruzado, balizaria os trabalhos de uma nova Constituição. O PMDB já era, então, um partido desfigurado e guardava uma identidade longínqua com o seu antecessor (o MDB), que tinha as marcas do confronto com a ditadura.

Mas nem tudo se perdeu naquele emaranhado de interesses políticos, onde pontificou o articulado “Centrão”, formado por parlamentares conservadores de todos os partidos e que acabou impondo limites a muitos dos avanços esperados pela sociedade.

Ainda bem que nem tudo se frustrou. Maria Tereza Sadek, professora do Departamento de Ciência Política da USP, é autora do capítulo do já citado livro sobre aquele que veio a ser o grande protagonista da vida brasileira, como decorrência da Constituição. “O Ministério Público deixou de ser advogado dos interesses do Estado para converter-se em defensor dos interesses da sociedade”, anota Sadek.

As mudanças formais na Constituição deram ao MP, na prática, os mesmos e necessários privilégios da magistratura, só que organizado de forma monocrática, sem os princípios de mando e obediência da hierarquia administrativa. Mesmo assim, nada aconteceu automaticamente. No livro, a cientista política registra que o comportamento do primeiro procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, manteve um vínculo com o governo Fernando Henrique Cardoso, que o tornou conhecido como “engavetador” da República. “Durante o seu mandato – escreveu Sadek –, não foi oferecida nenhuma denúncia ao Supremo Tribunal Federal.”

José Ricardo Ramalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escreveu sobre “Trabalho, Direitos Sociais e Sindicato” no livro. “Esse capítulo é uma das grandes virtudes da Constituição de 1988. Ela contém aspectos que se tornaram essenciais para proteger os trabalhadores na conjuntura dos anos 1990”, disse o autor à CartaCapital.

Ramalho cita como exemplos nefastos para os trabalhadores que a Constituição neutralizou a flexibilização do mercado de trabalho, a vulnerabilidade das relações de emprego, a reestruturação produtiva e a industrial. “Embora a constitucionalização dos direitos permaneça sob constante questionamento do empresariado e de seus intelectuais, e às vezes de setores importantes dos governos desde então, sua existência tem garantido, ao menos na letra da lei, o reconhecimento dos trabalhadores como parte integrante da sociedade”, escreveu Ramalho.

Ainda assim, a criminalização dos movimentos sociais tem avançado e aumentado o conflito trabalhista. Para isso, despontam no horizonte novas reformas constitucionais, com ímpeto capaz de matar a criança no berço. Nenhuma surpresa, pois a Constituição Brasileira, aos 20 anos de idade, é uma obra inacabada.
Revista Carta Escola dezembro de 2008

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