domingo, 18 de janeiro de 2009

Construção interrompida - Metrópoles Brasileiras

Favela da Rocinha - RJ

Construção interrompida
por Luiz Antonio Cintra e Rodrigo Martins
Sem uma política coordenada em esfera regional, as metrópoles brasileiras estão fadadas a repetir os fracassos que marcam a longa agonia das últimas décadas

De tempos em tempos, as vizinhas cidades de Barueri e Carapicuíba, ambas na região metropolitana de São Paulo, estranham-se. Separadas por uma lagoa, hoje poluída, as respectivas autoridades municipais entram em choque em torno das atribuições que lhes cabem. A tendência natural é uma tentar empurrar o problema para a outra, apesar de muitas vezes a origem da dor de cabeça residir longe dali, em um ou vários dos 39 municípios que compõem a maior metrópole do País.

A proximidade física não se reflete em uma proximidade política ou administrativa, o que reforça as disparidades sociais existentes entre as duas cidades, apesar da evidente influência recíproca. Recente pesquisa da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) elegeu Barueri a quarta cidade do Brasil em qualidade de vida, muito acima da “vizinha pobre”, 243º lugar no ranking. Mas é difícil imaginar que a qualidade de vida de uma cidade possa ser tão boa estando umbilicalmente ligada a outra com índices deploráveis.

Disputas dessa natureza não são uma prerrogativa paulista. Ao longo dos próximos meses, nas dezenas de programas eleitorais em tevê e rádio espalhados pelo País, candidatos a prefeito vão gastar recursos e energia para se apresentar como os “salvadores da municipalidade”. Nas capitais, haverá também uma evidente disposição para futuros vôos federais.

Com raríssimas exceções, as plataformas eleitorais deixarão de lado um detalhe decisivo: sem uma política coordenada em esfera regional, as áreas metropolitanas, onde se concentram os mais dramáticos problemas sociais e ambientais do País, estarão fadadas a repetir os fracassos que marcam a longa agonia das últimas décadas. O combate à poluição, a solução dos engarrafamentos monstruosos e cada vez maiores e os problemas de moradia e violência, é consenso entre os especialistas, só serão de fato solucionados com ações coordenadas.


Nas seis principais aglomerações populacionais – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador – vivem 48 milhões de brasileiros, do total de 145 milhões de moradores das cidades, e produzem-se 40% do Produto Interno Bruto (PIB). Ao contrário do que certos economistas e sociólogos afirmam, as metrópoles não estão perdendo poder econômico relativo nem se desinflando.

É o que defende o professor Luiz César Queiroz Ribeiro, coordenador do Observatório das Metrópoles da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A tese de que as cidades pequenas e médias estão tomando o lugar das metrópoles, afirma ele, reforçaria a noção de que há no País um processo de desconcentração da riqueza. “Falta cautela ao analisar os dados de municípios que verificaram crescimento econômico ou populacional. Muitos deles estão interligados a regiões metropolitanas, como é o caso de Hortolândia, pólo tecnológico integrado à Grande Campinas, no estado de São Paulo. E a participação das metrópoles no PIB nacional passou de 51,6% em 2000 para 53,3% em 2005”, afirma o pesquisador.

Apesar dos avanços pontuais recentes, o panorama das regiões metropolitanas, garantem os especialistas, é preocupante. Embute mesmo elementos explosivos, como atestam os congestionamentos de mais de 200 quilômetros vividos por São Paulo no início deste ano. E perspectivas nada boas: enquanto a China pretende construir, até 2015, mais 400 quilômetros de metrô em apenas duas cidades, São Paulo planeja mais 31 quilômetros nos próximos quatro anos, sujeitos aos costumeiros atrasos. Nem se fala dos metrôs do Rio, de BH ou Salvador, cujas obras já viraram motivo de anedota.
Na falta de transporte público e de renda, registra-se no Brasil o aumento consistente do número de pessoas obrigadas a andar a pé. Além disso, calcula a Organização das Nações Unidas (ONU), haverá, até 2020, 55 milhões de residentes em favelas.
Em São Paulo, quase 20 milhões convivem em uma área contínua de 8 mil quilômetros quadrados, cuja administração é fragmentada em 39 administrações municipais. Uma trágica tradição nacional. “No Brasil, o planejamento urbano sempre foi inviável e ainda é. É conseqüência do fato de termos um Estado privatizado. Em muitos bairros, o Estado chega somente sob a forma da política do favor, predominante em todas as esferas de poder no Brasil. As metrópoles brasileiras estão ‘ao deus-dará’, do ponto de vista da governança administrativa”, afirma a urbanista Erminia Maricato, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, secretária-executiva do Ministério das Cidades durante a gestão de Olívio Dutra (2003-2005).

Favela da Rocinha

Nascido no início do primeiro mandato de Lula e símbolo da boa intenção do governo em reconhecer os problemas urbanos, o Ministério das Cidades ensaiou uma virada histórica, ao criar organismos como o Conselho das Cidades e as conferências municipais, estaduais e nacional, encarregadas de discutir publicamente o tema. Hoje, Erminia não esconde o receio de que iniciativas como essas, apesar de positivas, levem a soluções localizadas, resultantes de pressões de grupos organizados. Também vê como complicada a atuação federal, pois o poder é exercido principalmente pelas autoridades municipais, conforme prevê a Constituição de 1988. Após a saída de Dutra e diante da necessidade de o governo refazer a sua base parlamentar, passada a crise do mensalão, o ministério foi parar nas mãos do PP (ex-PL) e virou mero balcão de trocas políticas.
Leodegard Tiscoski, atual secretário nacional de Saneamento do ministério, contesta o argumento. “Os investimentos têm sido empregados prioritariamente nas metrópoles”, afirma. Dos 40 bilhões de reais previstos para intervenções de saneamento, 28 bilhões estão sob a responsabilidade da pasta e estão sendo aplicados em cidades com mais de 50 mil habitantes. Outros 15 bilhões de reais serão destinados a projetos de recuperação de favelas, em ações de regularização fundiária, construção de moradias e criação de redes de esgotamento sanitário. As favelas vão receber 4 bilhões neste ano. Cerca de 75% dos moradores desses aglomerados se concentram nas nove maiores regiões metropolitanas.
A precariedade das informações censitárias dá uma boa medida das condições de “governabilidade” das grandes cidades. “O conceito criado pelo IBGE, de aglomerado subnormal, no caso das favelas, é ruim, foi feito apenas para facilitar o trabalho dos pesquisadores”, diz o economista Sérgio Besserman, ex-presidente do instituto. Acrescente-se a isso a ausência da contagem populacional prevista para 2005, e o resultado é que a administração pública está, sintomaticamente, “no escuro, em plena era da informação”, avalia.

Responsável por um quinto do PIB brasileiro, a Grande São Paulo acumula problemas cada vez mais difíceis de enfrentar. O trânsito caótico na metrópole, provocado em grande parte pela precariedade do sistema público de transporte, gera um custo anual de 4,1 bilhões de reais aos cofres públicos. Na capital, estima-se que mais de 896 mil habitantes vivam em assentamentos irregulares, muitas vezes em áreas de risco ou mananciais. A região metropolitana apresenta a maior concentração de favelas do Brasil. Apenas as cidades de São Paulo, Guarulhos, Osasco e Diadema possuíam 938 favelas em 2000, cerca de um quarto do País, segundo o último Censo realizado no Brasil.
Para a urbanista Regina Meyer, também da FAU/USP, o maior desafio é encontrar uma figura institucional capaz de planejar a metrópole e que não se transforme num quarto poder, a esvaziar a autonomia dos municípios. “Mas é indispensável que essa instância exista e tenha capacidade de intervenção. Não adianta São Paulo despoluir o rio Tietê e Guarulhos continuar despejando resíduos nas águas. Assim como não dá para a capital voltar-se para o próprio umbigo e não se esforçar na expansão do metrô e das linhas de trem interligadas às cidades vizinhas, porque nelas reside boa parte da sua força de trabalho.”

O urbanista Jorge Wilheim, ex-secretário de Planejamento Urbano da capital, afirma que a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S.A. (Emplasa) no passado cumpriu esse papel, assim como suas similares das demais metrópoles. Criada em 1975, a companhia paulista viu suas atribuições se esvaziarem. “Havia muita crítica pelo fato de a empresa ter sido constituída durante a ditadura, mas ela realmente criou planos importantes de ordenação da metrópole que foram abandonados”, diz Wilheim, um dos fundadores da Emplasa. “Em 1994, tentei integrar a macrometrópole entre Campinas e Santos e entre Sorocaba e São José dos Campos, com São Paulo no foco. Governo estadual e prefeituras não aderiram.”
Os desafios da metrópole paulista são semelhantes às do Rio: expandir a rede de metrô e trens, criar um sistema de transporte integrado e capaz de estruturar o espaço urbano, disciplinar o uso do solo para evitar adensamento populacional excessivo em determinadas áreas, democratizar o acesso à moradia em áreas próximas dos centros urbanos e reverter os passivos ambientais decorrentes da ocupação de mananciais, encostas e matas.
O professor Orlando dos Santos Júnior, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro, não se ilude com a perspectiva de uma alteração na forma de gestão das metrópoles a curto prazo. “Temos um ambiente político arcaico, baseado no coronelismo urbano. É desolador.”

O impasse da gestão dos resíduos sólidos é exemplo da falência da administração metropolitana no Rio. “O lixão de Gramacho está sobrecarregado, mas os municípios fluminenses não conseguem encontrar espaço para abrigar um novo aterro. Ninguém quer receber lixo”, avalia Santos. O urbanista ainda destaca que a raiz de boa parte dos conflitos sociais reside na “disputa predatória” pela ocupação do solo. “Os empreendimentos imobiliários constroem onde querem, com o aval estatal, assim como os pobres buscam sobreviver nos únicos espaços que encontram: os morros, os mananciais, as áreas de risco.”

Desde a década de 80, a população de Belo Horizonte cresce a taxas abaixo da média metropolitana. Nos anos 90, a capital mineira cresceu apenas 1,1% ao ano, enquanto a média dos 34 municípios do aglomerado urbano aumentou 3,9% anualmente. Apresenta indicadores sociais bastante diversos dos de seus vizinhos. Mais de 90% da população da capital tem acesso à rede de coleta de esgoto, realidade distante de muitos municípios da região.

Cidade-dormitório, na qual cerca de metade da população trabalha fora do município, Ribeirão das Neves tinha mais de 25 mil domicílios sem tratamento de esgoto em 2000, de acordo com o Censo. “Essa população trabalha em Belo Horizonte e demanda a infra-estrutura de saúde, educação e assistência social no município de origem. Quando não, sobrecarrega os equipamentos da capital, por não ter acesso a serviços de qualidade onde mora”, explica Jupira Mendonça, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Na avaliação da urbanista, o planejamento metropolitano sofreu um forte revés na década de 90, quando municípios como Belo Horizonte, Betim e Contagem municipalizaram o serviço de transporte e procuraram soluções próprias para as questões urbanas. “Felizmente, nos últimos anos, houve a união em torno de conselhos de desenvolvimento e fóruns metropolitanos. Resgatou-se a idéia de criar um fundo para solucionar problemas comuns.”

Hoje, a Grande Salvador apresenta uma situação mais confortável em relação ao saneamento básico. De 1991 a 2000, o acesso às redes de esgoto passou de 33,7% para 78,4% das residências. Apesar do avanço, a metrópole baiana ainda tem de enfrentar grandes desafios nas áreas de habitação e transportes. Gilberto Corso, coordenador do programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, diz que o déficit é de mais de 100 mil moradias, problema mais sensível em Salvador, onde vivem 80% da população metropolitana.

Enquanto a orla da metrópole é ocupada por casas de veraneio e os prédios ditos de alto padrão, prevalecem as favelas e habitações irregulares, que abrigam quase 70% dos soteropolitanos. Para quem conheceu a cidade nos anos 50, uma espécie de longo naufrágio. “São duas cidades. Uma legal, institucionalizada, e a outra ilegal, para a qual o poder público muitas vezes fecha os olhos”, diz Corso. A realidade é tão distinta que os urbanistas “globais” talvez tivessem pouco a ensinar aos brasileiros.

Outro impasse, na avaliação do urbanista, é a inexistência de um sistema de transporte de massas. “Não há trens e o projeto de construção do metrô foi prorrogado numerosas vezes.” Nos últimos dez anos, o número de veículos na capital baiana quase dobrou. “O mais preocupante é que não há qualquer tipo de planejamento na Grande Salvador”, afirma.

Ao menos no plano institucional, a região metropolitana do Recife conservou algumas instâncias de planejamento e gestão compartilhada. Os 15 prefeitos do bloco aprovaram, há dez anos, um plano diretor conjunto, com soluções viárias, para resíduos sólidos, saneamento e abastecimento de água, entre outros itens.
De acordo com o geógrafo Jan Bitoun, professor da Universidade Federal de Pernambuco, o maior problema é a falta de investimentos para resolver os passivos de décadas de descaso. “Enquanto as metrópoles do Sul e Sudeste investiam pesadamente para ampliar a cobertura da rede de esgoto, as metrópoles nordestinas enfrentavam o problema do abastecimento de água”, explica. “Hoje, o abastecimento é quase universal, mas intermitente.”

Se o abastecimento de água é precário, o sistema de esgotamento sanitário é pior. Menos de 30% da população metropolitana tem acesso à rede e apenas um terço dos dejetos coletados vai a tratamento. Todo o resto é despejado nos rios.
Com um déficit de 80 mil moradias, o Recife é um dos campeões nacionais em número de favelas. Constata-se a presença de 73 aglomerados de habitações irregulares, distribuídos nos 219 quilômetros quadrados de extensão territorial do município. É uma favela a cada 3 quilômetros quadrados. A tendência também se vê em outras cidades da metrópole.

“A desigualdade é gritante. Há poucos bolsões de riqueza, circundados por imensas áreas de pobreza. Não conheço um único amigo, gente de classe média, que não more a menos de um quilômetro de uma favela. E não acho equivocado relacionar isso com o avanço da criminalidade”, comenta o professor Bitoun.
Segundo o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, do Instituto Sangari e Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana e governo federal, o Recife é a capital com a maior taxa de homicídios. Em 2006, foram 90,9 mortes para cada 100 mil habitantes.

Das seis maiores metrópoles, Porto Alegre é a que apresenta os melhores indicadores sociais. A população sem acesso à rede de esgotamento sanitário caiu de 66,7%, em 1991, para 29,9%, em 2000. Na capital, os “sem-esgoto” não passam de 10%. É também uma das poucas que mantiveram ativas instâncias de planejamento e gestão compartilhada, além do orçamento participativo.
Na avaliação da socióloga Rosetta Mammarela, coordenadora do Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos da Fundação de Economia e Estatística, a tradição de buscar soluções conjuntas entre os municípios contribuiu para o progresso da região, mas ainda restam muitos problemas. “Há um déficit de 67 mil moradias na Grande Porto Alegre, 6% do total.”

Para reverter o quadro, os movimentos sociais e os especialistas apostam em instância de participação pública, como o mencionado Conselho das Cidades e as conferências, iniciativas premiadas internacionalmente. A idéia é trocar experiências e articular soluções conjuntas. “Temas comuns como transporte, saneamento ambiental, poluição atmosférica e moradia não poderão ser resolvidos sem uma política coordenada”, diz a arquiteta Raquel Rolnik, da USP, relatora do direito à moradia adequada da ONU.

Ações coordenadas significam abrir mão do protagonismo político em nome da busca de um bem comum. Ser capaz de superar diferenças políticas ideológicas para racionalizar o uso dos recursos. O problema é que, após a descentralização da Constituição de 1988, as maiores cidades aumentaram seu poder econômico e político. Um prefeito de São Paulo, Rio ou Belo Horizonte é, virtualmente, um nome forte ao governo do estado ou à Presidência da República. A tendência, portanto, é que os alcaides façam seus cálculos políticos na hora de tomar iniciativas. Cálculos legítimos, diga-se, mas nem sempre produtivos ou conseqüentes.

Revista Carta Escola

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