sábado, 10 de janeiro de 2009

Sobre a Democracia: os limites da tolerância

Tauã Carvalho de Assis analisa a questão da democracia e dos limites da tolerância. Leia o artigo na íntegra.
08/12/08

Por Tauã Carvalho de Assis(1)

Resumo: O presente artigo tem por objetivo o estudo das liberdades democráticas e a sua manifestação. A democracia é conhecida como sendo o governo que melhor agrega a diversidade e permite a sua expressão, entretanto, algumas expressões devem ser limitadas. Esta limitação se deve ao fato de que indivíduo ou grupo tentam cercear a liberdade das diferenças, com o projeto de implantação de uma ótica única sobre a sociedade, face do etnocentrismo, pretendendo uma verdade única e absolutista.

Palavras-Chave: democracia, liberdade, diferença, tolerância, intolerância.

Tem-se, em nível de senso comum, que a democracia é o governo das diferenças e da tolerância, ou seja, que aceita a expressão da liberdade individual e de grupo. Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, um dos significados de tolerância é: “tendência a admitir modos de pensar, de agir e de sentir que diferem dos de um indivíduo ou de grupos determinados, políticos ou religiosos”. A tolerância é essencialmente a aceitação do diferente e da diferença.

O governo democrático, de fato é o que mais se propõe a aceitar as diferenças, e se guia pela “igualdade na diferença”, isso quer dizer que é permitido aos indivíduos o uso de sua liberdade de pensamento e de expressão, criando assim uma sociedade com correntes de pensamentos diversos, compondo a diferença, mas todos devem ter o mesmo valor juridicamente, a “sonhada igualdade”.

O fato de que o governo democrático ter sido pensado, em sua máxima perfeição, como a liberdade e a igualdade puras, na prática a teoria se mostrou falha neste aspecto, visto que a democracia não pode tolerar todas as expressões de pensamento. Essa percepção avança ante a anterior, mas ainda é incompleta, necessita-se objetivar o que a democracia não pode tolerar, e quais os limites desta tolerância.
“O regime democrático é a forma de vida política que dá a maior liberdade ao maior número de pessoas, que protege e reconhece a maior diversidade possível.” (TOURAINE, 1996, p.25) Partindo desta definição de democracia, proposta pelo escritor Alain Touraine, já se pode perceber que ele coloca um critério para a liberdade dentro de uma democracia.

É necessário, segundo esta visão, que em um governo democrático se reconheça e proteja a diversidade. Se for necessário proteger a manifestação da diversidade é porque alguém ou algo é contra esta ação. E que seria contrário à diversidade? O unilateralismo e o etnocentrismo o são, visto que pregam práticas não coletivas e tendo a si mesmo como referência, ou seja, é um único olhar sobre todas as instâncias sejam elas políticas, religiosas, étnicas ou culturais.

A democracia, portanto, não pode tolerar o que fere ela mesma, ou seja, o antidemocrático, “(...) uma democracia tem por exigências a segurança jurídica, a legalidade e o caráter calculável das funções do Estado (...)”. (KELSEN, 2000, p.186) Uma democracia deve permitir a liberdade e a expressão dessa liberdade, mas não pode permitir a visão radical que não aceita as outras ou aquilo que coloque este tipo de governo em perigo. O unilateralismo, o etnocentrismo, são perigosos dentro deste governo porque expressam a visão de um só, ou seja, é expressão de um governo autocrático, diametralmente oposto a democracia.

A democracia não podendo tolerar o que fere a ela própria, não pode também tolerar o intolerante. A intolerância em qualquer nível já é um atentado contra a democracia, visto que é próprio deste regime a liberdade religiosa, de opinião, de imprensa, e política. O intolerante não admite a igualdade perante as diferenças da liberdade de pensamento. “Certamente a idéia de igualdade também participa da ideologia democrática (...) uma vez que todos devem ser livres na maior medida possível (...). Historicamente a luta pela democracia é uma luta pela liberdade política (...).” (KELSEN, 2000, p. 99) Sendo, o governo democrático, definido historicamente, como sendo a luta pela liberdade política, deve defender a liberdade de pensamento e de expressão de todos os indivíduos ou coletividades.



Quem considera inacessíveis ao conhecimento humano a verdade absoluta e os valores absolutos não deve considerar possível apenas a própria opinião, mas também a opinião alheia. Por isso, o relativismo é a concepção do mundo suposta pela idéia democrática. A democracia julga da mesma maneira a vontade política de cada um, assim como respeita igualmente cada credo político, cada opinião política cuja expressão, aliás, é a vontade política. Por isso a democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de buscar conquistar o ânimo dos homens através da livre concorrência. (KELSEN, 2000, p. 105)



Hans Kelsen traz à discussão a idéia de que é permitido, pela via legal, a livre concorrência dos pensamentos políticos, desde que esses não transmitam a mensagem de uma verdade absoluta e única, face do etnocentrismo e oposto ao relativismo. O relativismo é a percepção por um ângulo diferente do seu, admite-se verdades, em lugar de uma absoluta. Aceita-se que pessoas possam pensar diferente de mim ou do meu grupo, que para uns o parlamentarismo é melhor que o presidencialismo ou vice-versa, por exemplo. Não aceitar visões diferentes e verdades diferentes da minha é pregar o absolutismo, o etnocentrismo.

“O problema da democracia (...) é o problema de um governo que garanta a máxima liberdade individual possível.” (KELSEN, 2000, p. 191) É de responsabilidade estatal a proteção do livre pensamento, da livre expressão e da livre concorrência entre os pensamentos, garantindo a não implantação de uma verdade única e absolutista.

Comte-Sponville assinala que “democracia não é fraqueza. Tolerância, não é passividade”, visto assim é necessário entender que a tolerância tem seus limites dentro de um governo democrático. Para Karl Popper existe um paradoxo da tolerância: "se formos de uma tolerância absoluta, mesmo com os intolerantes, e não defendermos a sociedade tolerante contra os seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados e com eles a tolerância.”.

Surge aí uma questão de filosofia política: a tolerância deve tornar-se intolerante, contra o intolerante para defender a tolerância? Essa questão é a mesma revelada pelo embate relativismo versus etnocentrismo. Devemos perceber que à medida que ignoramos, menosprezamos ou vetamos o intolerante, corre-se o risco de a democracia também se tornar intolerante. Mas à medida que a democracia é tolerante com a intolerância o próprio regime incentivaria a intolerância e suas práticas. Temos aí, no mínimo, um paradoxo. Qual deve ser a atuação do governo, e ainda mais, do Estado, frente a esta questão dentro de um regime de democracia? Para esta pergunta não há respostas inteiras que sejam válidas. Têm-se apenas meias respostas, uma média dos extremos.

Ou seja, há que se aplicar uma dose de bom senso, não se pode relativisar tudo, pois aí teria que se aceitarem violências e atentados aos direitos da pessoa humana. Para José Saramago “a tolerância para no limiar do crime. Não se pode ser tolerante com o criminoso.”. Saramago propõe uma resposta simples e provavelmente eficaz: tolerância e crime não se confundem. Não há que ser tolerante com práticas criminosas e violentas.

É preciso combater a pedofilia, os estupros, a guerra civil, o genocídio, a violência doméstica ou a violência externa, ao contrário negar-se-ia o sentido mais estreito da democracia: o da liberdade e da proteção aos direitos fundamentais em um governo de tipo democrático. Neste sentido ter-se-ia que aplicar a ética na política e nas ações, seria preciso que cada nação se decida quanto aos seus preceitos éticos e os transformem em realidade não somente tacitamente, mas também expressamente. Assim legitimar-se-ia a ação coercitiva e/ou punitiva do Estado sobre atos criminosos, aí se insere também os atos de violência, não só física, mas política, religiosa, social, moral e psicológica.

De fato, existem coisas intoleráveis, mesmo para o tolerante, e para um governo democrático. Seria imperdoável deixar acontecer por si mesmo os atos de violência e de atentados aos direitos humanos. Isso não seria tolerância, mas a expressão da violência e do crime. Tudo o que seja uma ameaça à própria democracia, a liberdade, a paz, ou a sobrevivência dos seus cidadãos deve ser entendido como fora dos limites da tolerância, e, portanto, crime passível de ser combatido, caso contrário negar-se-ia a própria democracia.

Uma democracia onde existisse uma tolerância universal seria condenável, pois esqueceria as vítimas, esqueceria seu fundamento que é assegurar a liberdade e a integridade, além da diversidade. A tolerância universal e irrestrita seria aceitar aquilo que se pode condenar, é deixar acontecer o que se poderia impedir ou combater. É preciso de tolerância em uma democracia, mas para isso não precisa existir criminalidade. Atrelar um conceito ao outro seria errôneo. A tolerância não precisa ser totalizada, assim como não se pode deixar totalizar a intolerância, pois não existe tolerância quando nada se tem a perder ou quando tudo se tem a ganhar. Como diria Buda: o caminho é o do meio.

Referências Bibliográficas:

COMTE-SPONVILLE, André. PEQUENO TRATADO DAS GRANDES VIRTUDES. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. DICIONÁRIO AURÉLIO BÁSICO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.

KELSEN, Hans. A DEMOCRACIA. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

POPPER, K. R. CONJUNTURAS E REFUTAÇÕES. Brasília: Editora da UnB. (apud: COMTE-SPONVILLE, A. op.cit.)

SARAMAGO, J. Entrevista. Folha de S.Paulo, 27/01/95.

TOURAINE, Alain. O QUE É DEMOCRACIA? Petrópolis: Vozes, 1996.

(1) Acadêmico do curso de graduação em Relações Internacionais pela Universidade Católica de Goiás.

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