sábado, 10 de janeiro de 2009

Território controlado: quando a soberania do Estado (ainda) permanece


Leia o artigo de Rodrigo dos Santos Mota onde ele discute e problematiza o Estado como agente principal das relações internacionais.08/12/08
Por Rodrigo dos Santos Mota*

Diante das reformas que os sistemas de governos sofreram desde a sua formação, é quase consenso que a exigência política de um controle de terra, do poder sobre o povo e sobre os bens é tida como a maior das capacidades que o Estado obteve como promotor das relações sociais. No entanto, as instituições de governo e seus respectivos líderes viram a realidade desse modelo de Estado ser alterada nos últimos anos. De figura centralizadora, o Estado passou a ser encarado como uma instância de poder menos autônoma, com menos controle exclusivo de seus recursos e propriedades, mesmo quando presentes em seu território. O grande responsável pela mudança, na forma como se lida com esse Estado, foi o surgimento de uma qualidade de governo internacional que alterou a dinâmica dos Estados e hoje configuram uma nova política de fronteiras. Isso tornou comum o fato de agências internacionais interferirem em todas as dimensões da política nacional dos Estados ao ditarem as regras de um jogo geopolítico baseado em novas demandas sociais e políticas.

Estratégias para o progresso não necessariamente têm sua origem nos planos políticos dos Estados. Elas surgem como novas ferramentas de um processo voraz de desenvolvimento que busca atender às exigências dos mercados internacionais. Nesse sentido, não queremos dizer aqui que o fato mencionado representa a morte anunciada do Estado, mas revela uma sensível mudança na forma como se lida com ele.

Diante de uma situação de invasão dos mercados nacionais por instituições financeiras supranacionais e outros modelos de gestão internacional, a antiga sociedade de Estados (onde cada um, excetuando-se os casos de guerras e disputas comerciais, reconhecia formalmente a soberania do outro, significando comum acordo a que cada um fizesse “a própria vontade” através do princípio da auto-determinação dos povos) foi transformada no que a escola de administração moderna chamaria de sociedade organizacional. Seguindo esse princípio, há uma espécie de revolução gerencial em curso, uma espécie de revolução pacífica acontecendo, “nos dois sistemas [capitalismo e socialismo], um ‘regime gerencial’ está emergindo, rompendo com a maneira tradicional de conceber a política” [1].

Essa citação parece anunciar uma nova ordem ou um novo modelo de gestão global baseado em vontades múltiplas, em acordos internacionais, em rodadas de negociação que predizem “agendas” a serem seguidas por Estados do Norte ao Sul do planeta. São inúmeras as discussões acerca do papel que o Estado possui nesse clima de governabilidade internacional [2]. Chegando a funcionar cada vez menos como entidade soberana (no que concerne ao valor que o termo soberania alcançou no passado), o Estado, nesse contexto, deixa de agir de acordo com os seus interesses próprios para satisfazer em outro nível, os interesses das agências internacionais. Desse modo ele se torna um mero agente cooperador de/para um governo internacional. Nesse sistema multipolar de governo, o Estado parece perder o seu controle e política internos e as suas capacidades administrativas.

A presença de um tipo de Estado hobbesiano, como sendo aquele que trazia o homem ao seu estado civil e sendo responsável por certos serviços coletivos é, nas discussões aqui apresentadas, mais um fantasma ideológico de um tempo onde o poder e a encarnação desse poder estavam intimamente ligados a um mesmo agente: o Estado. A perda dessa referência “soberana” é a prova de que os tempos mudaram e as interferências proporcionadas pelos entusiastas da globalização alteraram a relação dele com os outros Estados e principalmente, a relação consigo mesmo. Os mercados dominam e são legitimados pela livre-concorrência, vistos como algo que se localizam fora do controle nacional. Os Estados também chegam a controlar menos ainda os resultados econômicos dessas ações. Da mesma forma, “o sistema global é governado pela lógica de competição do mercado, e a política pública será, quando muito, secundária, uma vez que nenhuma agência governamental (nacional ou não) pode se equiparar à escala das forças de mercados mundiais” [3].

Aceitar a definição acima como algo presente é pensar que o Estado parece ter perdido sua capacidade de controlar os processos econômicos e sociais dentro do seu próprio território. Há um grande espaço entre o que se chama Estado de direito, guardião da democracia institucional e aquele que realmente operacionaliza os processos sociais [4]. Para aqueles que pensam que os argumentos acima têm pouca força, basta pensarmos que é cada vez menos aceitável, num mundo globalizado, a capacidade do Estado, única e isoladamente, manter a singularidade nacional e a homogeneidade cultural. A sociedade do consumo trouxe para dentro de si empresas com alcance mundial que tentam a toda prova derrubar um nacionalismo que impeça o pleno desdobrar da racionalidade do mercado [5].

Ainda nesse entendimento, há exemplos em que o Estado perde o controle administrativo sobre a forma como lida com os outros Estados, como acontece no contexto da guerra. Na época da Guerra Fria, os Estados participantes do conflito (em especial, a liderança dos EUA e a da URSS), no intuito de vencer a disputa, quase deram início ao maior confronto bélico de toda a História. Na urgência de resolver o impasse, muitos foram os comentários de organizações internacionais sobre como se daria o desfecho daquela história. Nesse sentido, o tema central da discussão aqui apresentada pode ser mais uma vez destacado: nos momentos de conflito, os Estados na intenção de tornar a paz possível, permitem a interferência das agências reguladoras do sistema internacional, tentando criar uma ordem civil mundial [6]. Quem determina o status desse jogo não é mais o Estado “A” que apresenta divergências ao Estado “B”, mas um esquema político policêntrico em que a figura do uno não é tão significativa quando está sozinha. No sistema complexo das instâncias internacionais, os Estados se apresentam em um nível no qual outras forças também competentes se encontram.

A partir das novas demandas sociais e do processo de controle financeiro internacional, os Estados chegam a ter menos capacidade de controlar os resultados econômicos ou até mesmo alterá-los. A presença de agências financeiras internacionais como a OMC, dos fundos de cooperação para o desenvolvimento, dos blocos econômicos como o Nafta e a União Européia, faz com que o Estado aceite limitações constitucionais acima e abaixo deles.

Observemos num dos relatórios do Banco Mundial que o “State, in its wider sense, refers to a set of institutions that possess the means of legitimate coercion, exercised over a defined territory and its population, referred to as society” [7]. Entretanto, parece que essa figura de Estado que mantém uma coerção legítima sobre seu povo é minimizada por agências internacionais tais como o Banco Mundial. Essas agências são capazes de desenvolver (e impor) modelos de gestão nacional para os países em troca de suas influentes ajuda econômica.

No entanto (e aqui o nosso tema central aparece mais claramente), todo esse “poder político e de influência das organizações numa escala internacional” parece desmoronar em um ponto importante na sua relação com os Estados: ainda que estes tenham um menor controle do plano das idéias que pairam sob os projetos para o desenvolvimento, eles permanecem firmes no que diz respeito ao controle das suas fronteiras e o movimento daqueles que as cruzam, sendo o único agente capaz de proteger os territórios nesse sentido. Apesar da desregulamentação dos processos econômicos, do aumento da pobreza em escala mundial e do enfraquecimento geral da sua autoridade, os Estados continuam a afirmar os seus próprios interesses quando decidem quem passa por seus limites.

O movimento geral das migrações não é um fenômeno recente e os Estados desenvolveram estratégias para regular também o tráfego internacional de pessoas. Mesmo diante de uma globalização que se faz promessa num mundo sem fronteiras, as exigências nacionais para a entrada de imigrantes são concentradas na verificação de passaportes e vistos de permanência previamente concedidos. São cautelas tomadas pelas polícias, autorizadas pelos planos e estratégias do Estado no intuito de também não perder a singularidade nacional.

A questão do controle das fronteiras é uma pauta que (ainda) interessa aos líderes nacionais, mesmo que as culturas ‘nacionais’ sejam invadidas pelas novas tecnologias de comunicação que facilmente invadem o Estado, permitindo que os processos de produção aconteçam em níveis fora dele. Os imigrantes internacionais são obrigados a respeitar a decisão e restrições na entrada dos territórios dos Estados mais desenvolvidos, uma vez que não são somente autoridades que oferecem serviços no qual cada migrante escolhe aquele Estado que lhe ofereça melhores serviços.

São inúmeros os exemplos de Estados que fecham e abrem as portas para as populações de outras localidades do mundo seja por vias formais (como no caso da França, que elegeu o presidente Nicolas Sarkozy em 2007, valendo-se, dentre outras coisas, do seu plano político a favor de um controle dos imigrantes na França através de leis restritivas) ou por vias não formais (com os casos de xenofobia que acontecem no mundo diariamente teríamos uma idéia geral de quantos nacionais ojerizam aqueles que chegam ao seu país na tentativa de construírem um futuro melhor, para si próprios e conseqüentemente para a nação onde se estabeleceram). Essa é também uma idéia que se baseia numa concepção de que o Estado deve controlar as migrações dentro de suas fronteiras, seja para impedir o despovoamento, seja para impedir a entrada de elementos perigosos ou desestabilizadores da paz interior da ordem interna desse Estado [8].

Mas como a questão dos movimentos migratórios das populações é tão importante em termos de postura política que se assume com elas, o jogo ainda pode mudar. Nos últimos dias, até mesmo as agências internacionais que ajudaram a construir o sistema de governo internacional já entenderam que é chegada a hora de também participarem da discussão das fronteiras. Blocos econômicos como a União Européia, referência mundial por vários de seus aspectos constitutivos, criaram agências especializadas em controle de fronteiras com fins à regulação da entrada e saída de pessoas em limites nacionais e internacionais [9].

Diante disso, ainda que Kant tenha afirmado em seu Terceiro Artigo Definitivo para a Paz Perpétua que a “hospitalidade significa [no tratado] o direito de um estrangeiro, por conta de sua chegada à terra de um outro, de não ser tratado hostilmente por este” [10], os Estados, ao controlarem os fluxos populacionais que adentram seus territórios, estão dizendo que a sua relação com o que está do seu lado de fora é a prova última da afirmação de sua soberania. Sobre esse ponto, entender que o Estado permanece num papel regulador dos limites fronteiriços é apostar num sonho de soberania nacional ainda possível nessas épocas de inúmeros “palpites” externos.

Atualmente, no concerto geral das nações, os planos diretores para o desenvolvimento e o progresso dos Estados partem de agências constituídas especialmente para esse fim. A decisão política sobre quem entra e quem sai dos territórios ainda continua com eles. A crítica a esse ponto é que, o Estado, ao fortalecer essa liderança sobre as fronteiras para o confronto internacional, pode não colocar nesse cálculo os direitos e as liberdades individuais de cada cidadão e a legitimação do clima de cooperação internacional. Como resposta a isso, a discussão sobre um limite político a favor da soberania nesses termos tem-se tornado flexível, pois até mesmo o último foco da resistência nacional está sendo alterado ao serem conduzidas políticas nacionais sobre como serão eliminadas as barreiras físicas e institucionais que impedem a cooperação entre as nações e seus cidadãos. Tomemos como exemplo as decisões de blocos econômicos como o Mercosul, NAFTA, e a União Européia sobre a retirada de direitos alfandegários nos espaços circunscritos aos blocos, facilitando assim as transações comerciais entre os membros.

Contudo, como foi visto, é importante que nos aproximemos mais das estruturas montadas pelos Estados para o controle dos seus territórios e da forma como as transações fronteiriças podem ser analisadas e estudadas antes que façam parte completamente do conjunto de ações internacionais e não seja mais percebida a intensidade com que o Estado-nação ainda lida com isso.

*Rodrigo dos Santos Mota é licenciado em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia e graduando em Línguas Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

NOTAS
[1] Mattelart, 2002, p. 345.
[2] Cf. Hirst & Thompson (1998), “governabilidade – ou seja, o controle de uma atividade, por alguns meios, de modo que um conjunto de resultados desejados seja obtido – no entanto, não é simplesmente incumbência do Estado. Ou melhor, é uma função que pode ser desempenhada por uma ampla variedade de instituições e práticas públicas e privadas, estatais e não estatais, nacionais e internacionais” (p. 284).
[3] Hirst & Thompson, 1998, p. 286.
[4] Cf. Rosanvallon, 1997.
[5] Cf. Mattelart, 2002.
[6] Cf. Hirst & Thompson, 1998.
[7] World Bank, 1997, p. 20.
[8] Cavarzere, 1995, p. 44.
[9] Sobre a FRONTEX, agência da União Européia com vistas ao controle migratório, ver em http://europa.eu/agencies/community_agencies/frontex/index_pt.htm
[10] Kant, 2008, p. 37.

REFERÊNCIAS
CAVARZERE, Thelma Thais. Direito internacional da pessoa humana: a circulação internacional de pessoas. Rio de Janeiro: Renovar, 1995.
HIRST, Paul; THOMPSON, Grahame. Globalização em questão: a economia internacional e as possibilidades de governabilidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. (Coleção zero à esquerda)
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Trad. de Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008.
MATTELART, Armand. História da utopia planetária: da cidade profética à sociedade global. Porto Alegre: Sulina, 2002.
ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. Goiânia: Editoria da UFG; Brasília: Editora da UnB, 1997.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
WORLD BANK. World Development Report, 1997: the state in a changing world. Washington, D.C.: World Bank, 1997.

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