domingo, 18 de janeiro de 2009

KOSOVO - Independência incerta

Nosso repórter esteve em Kosovo, ex-província da Sérvia nos Bálcãs, e conta como é a vida nesse território autopromovido a país

Texto: Angelo Lucas


Para quem vive no assim chamado Novo Mundo, é difícil acreditar que acontecimentos tão remotos tenham adquirido tamanho significado. Mas o passado conta muito na vida dos cidadãos de Pristina, capital do Kosovo – um pequeno território nos Bálcãs, sudeste da Europa, recentemente autopromovido a país. Ali, há poucos quilômetros da cidade, uma torre celebra a batalha do Campo dos Melros (Kosovo Polje), ocorrida em junho de 1389, em que o exército cristão comandado pelo príncipe sérvio Lazar, caiu nas mãos de 140 mil turcos otomanos, dando início à ocupação e islamização do território e à pressão sobre os povos de outras religiões submetidos à ocupação. Perto, encontra-se o túmulo do sultão Murad, o vencedor da batalha de 1389, um edifício rodeado por um pequeno jardim que se tornou o lugar de devoção dos muçulmanos de Kosovo.

Entre os dois locais, equilibra-se a história, que se espera um dia seja amistosa e justa, de sérvios ortodoxos e albaneses muçulmanos de Kosovo. A julgar pelo clima atual, motivado pela declaração de independência, de 17 de fevereiro de 2008, esse milagre ainda pode ocorrer. O pequeno território (menor que Sergipe), respira um ambiente de festa e prosperidade. As ruas estão cheias de gente, as lojas dispõem dos mesmos produtos encontrados nos países mais ricos da Comunidade Européia, há espetáculos culturais todas as noites e os restaurantes, bares e discotecas estão sempre cheios.

A jovem nação mostra, por toda parte, sinais de rápido crescimento. Bairros nascem como cogumelos nas periferias das cidades, o comércio e a indústria se animam, carros de marca rodam nas estradas em mau estado. Nas universidades, jovens sonham com o modo de vida dos países ocidentais. “Depois da independência, nós começamos a pensar que isso poderia dar certo”, afirma a estudante de piano da Universidade de Pristina, Anisa, de 18 anos. “Temos um país e podemos nos governar sozinhos.”

Tempo de incerteza

É difícil saber se o otimismo dos jovens kosovares vai passar pelo teste da realidade nesse pedaço dos Bálcãs. O crescimento econômico de agora é alimentado pelos organismos internacionais, como a ONU, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e os investimentos da Comunidade Européia e dos Estados Unidos. A segurança é garantida pela base americana de Camp Bondsteel, a segunda maior do continente europeu, cujo aluguel também ajuda a sustentar a economia de Kosovo.

Montanhoso, com algumas zonas de floresta densa, o pequeno território é inóspito e, de um modo geral, pouco convidativo. Com uma área de pouco mais de 10 mil km2, abriga 2 milhões de cidadãos, sendo 90% albaneses e 10% sérvios. Além de constituírem maioria, os albaneses kosovares também consideram a região como “patrimônio histórico”. Ali nasceu a Liga de Prizren, nome de uma cidade no sul, onde manifestantes albaneses se rebelaram contra os turcos, que, no século 15, converteram a população ao islamismo. Hoje, os albaneses estão espalhados por muitos países na região dos Balcãs – além de Kosovo, Macedônia, Grécia, Montenegro, Sérvia e a própria Albânia.

Os dois povos, portanto, afirmam ter “direitos ancestrais” ao território. Não por acaso, foi justamente ali que, há quase 20 anos, o então presidente, Slobodan Milosevic, fez um discurso de reabilitação do nacionalismo sérvio que assinalou, na prática, a morte da federação das seis repúblicas que formavam a Iugoslávia até 2003. A desintegração do antigo país foi acompanhada da pior guerra ocorrida na Europa contemporânea, opondo separatistas croatas, bósnios, sérvios e kosovares e dando origem a massacres de todos os lados. Milosevic morreu em 2006, depois de ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional em Haia por crimes contra a humanidade em Kosovo e outros países dos Bálcãs. Embora os kosovares, a princípio, tivessem a intenção de se unir e formar uma Grande Albânia, o projeto não foi adiante porque o governo do país já existente vê a idéia de ampliação como um obstáculo à aproximação com o Ocidente.

Como parte da estratégia de paz para os Balcãs, em 1999, a resolução 1.244, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, reconheceu a Sérvia como sucessora da Iugoslávia, tendo Kosovo como parte do território. Na prática, ele adquiriu o status de protetorado internacional, administrado pela ONU e controlado pelos soldados da Otan por meio da Osce (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa). Com o passar dos anos, viu retornar centenas de milhares de refugiados albaneses, enquanto um número quase tão grande de sérvios abandonou o território temendo a vingança dos que tiveram de fugir de Milosevic.

A versão dos dois lados

A violência retornou em 2004, quando um novo levante albanês foi responsável pela morte e êxodo de cidadãos das “minorias” restantes – não apenas sérvios, mas também ciganos e turcos. Diante do impasse, o representante da ONU acabou aceitando a idéia da independência à revelia dos sérvios e da resolução anterior, desde que sob supervisão internacional. Mas os sérvios kosovares não se conformaram e realizam manifestações sempre às 12h44 – lembrando a resolução da ONU. “O Kosovo nunca há de ser dos albaneses”, diz a senhora de 58 anos, em uma dessas manifestações. “Já sofremos 500 anos sob um invasor.”

A animosidade dos dois lados é mais evidente em Mitrovica, a segunda maior cidade de Kosovo, onde sérvios e albaneses estão separados pelas pontes sobre o rio Ibar. Na metade norte, bandeiras e slogans nacionalistas sérvios estão presentes por toda parte. Ao sul, a bandeira albanesa predomina na maior parte das casas, ao lado da americana. Os albaneses adoram os americanos, que consideram responsáveis pela libertação do jugo dos sérvios, desde que, em 1999, com apoio da União Européia, foi iniciado o bombardeio aéreo da Sérvia pela Otan.

Evidentemente, o mesmo afeto pelos americanos não existe na minoria sérvia que tem o apoio da Rússia e da China. Os russos, em particular, se opõem ao reconhecimento da independência do país e aos movimentos separatistas, tendo o atual primeiro-ministro, Vladimir Putin, declarado que o “reconhecimento da independência do Kosovo reacenderia os conflitos”. De fato, Mitrovica é patrulhada pelos militares do contingente da força internacional, cujo número foi reforçado desde o dia 17 de março, quando um confronto entre kosovares albaneses e sérvios resultou na tomada, à força, do tribunal de Justiça da cidade e na morte de um policial das Nações Unidas, além de dezenas de feridos.

“Isso aqui são os Bálcãs”, observa o jovem albanês Agon, locutor da rádio nacional kosovar. “Qualquer pequena faísca pode resultar em um incêndio de grandes proporções.” Agon, de 26 anos, pertence a uma geração que gostaria que o passado não fosse tão importante para o seu país. Ele e sua família conseguiram fugir das guerras fraticidas que opuseram os guerrilheiros albaneses e as forças sérvias em 1998. Os sinais da violência daqueles dias são visíveis por toda parte: edifícios em ruínas, cemitérios improvisados, pessoas inválidas. Sobretudo, as feridas permanecem na memória da população. “Serei um homem velho quando conseguirmos viver juntos”, diz o desconsolado Agon.

A reconstrução também passa por inúmeros desafios. As duas únicas centrais elétricas são alimentadas por carvão e deixam um rastro de fumaça negra no ar. Produzem, sobretudo, poluição, porque a eletricidade em Kosovo não é uma certeza – todos os dias há cortes. Os celulares também funcionam mal e o abastecimento de água é irregular. Nessa terra em que as máfias do Leste Europeu trabalham de forma eficiente no vácuo do poder, a economia paralela funciona bem. Próximo do quartel-general da Otan, conhecido por Film City, quarteirões de lojas vendem falsificações de tudo o que se pode imaginar – de roupas a perfumes, passando por filmes e aparelhos eletrônicos.

Nessa fase de reorganização e conquista de identidade um pouco anárquica, Kosovo ainda está aprendendo as regras de viver em sociedade. Esse aprendizado faz parte da independência ainda incerta e difícil de ser alcançada na prática.

Era um país; agora são sete

A maneira como a Iugoslávia foi constituída, no rastro do fim do Império Austro-Húngaro, na primeira metade do século 20, já preconizava que o país teria problemas mais cedo ou mais tarde. A região era uma colcha de retalhos de populações e culturas reunindo sete povos (sérvios, croatas, eslovenos, montenegrinos, macedônios, bósnios e albaneses), que falavam quatro línguas (servo, croata, esloveno, macedônio e albanês) e professavam três religiões (islâmica, cristã-ortodoxa e católica). Essa federação resistiu até o início da década de 1990, quando começou a se desintegrar. Uma a uma, as repúblicas pertencentes à antiga Iugoslávia foram se separando, à medida que os movimentos nacionalistas se fortaleciam. O processo não foi pacífico e deu origem a uma sangrenta guerra civil em que grupos de etnias diferentes massacraram populações rivais para se apoderar de partes de seu território. Até que, em 2006, sobrou a Sérvia, tendo sob sua jurisdição a província de Kosovo.A ONU tornou-se responsável pela administração e segurança desse território, garantida pelas forças da Otan sob a liderança dos Estados Unidos. Isso até fevereiro de 2008, quando o Parlamento de Kosovo votou pela independência, com o aval dos americanos e de importantes países europeus.

Ficha técnica

Nome: Kosovo
Área: 10 mil km2
População: 2 milhões (90% albaneses, 9% sérvios, 1% outros grupos)
Religião: Muçulmana (maioria) e cristã-ortodoxa
Maiores cidades: Prístina (capital), Mitrovica, Prizren
Moeda: Euro
Idiomas: Albanês e sérvio (oficiais), inglês

Fotos de Kosovo








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