A polêmica em torno da transposição das águas do
maior e mais importante rio nordestino
O semi-árido nordestino também é conhecido como o Polígono da Seca. A área, com cerca de 750 mil quilômetros quadrados – 9% do território nacional –, se estende por oito Estados do Nordeste. Um espaço em que o clima tropical semi-árido potencializa a falta d´água para 10% da população brasileira que vive lá.
Há séculos esse déficit hídrico limita o desenvolvimento econômico da região, que foi também abandonada por sucessivos governos. Mas qual é a solução para uma área em que chove menos de 800 mm, apenas três meses por ano?
A idéia de levar água ao semiárido nordestino surgiu no reinado de D. Pedro II; porém, desde então, nenhuma ação oficial apresentou uma solução eficiente ou definitiva. Recentemente, o Governo Lula levantou a polêmica, propondo a transposição de parte das águas do rio São Francisco – o maior do Nordeste.
As obras de transposição – que foram suspensas graças a uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) concedida em favor do Ministério Público da Bahia – têm defensores e críticos ferozes. Consultamos dois importantes geógrafos, Jurandyr Ross e Sílvia Carvalho, que expressam opiniões divergentes sobre o projeto. Leia e tire suas próprias conclusões.
UM GASTO DESNECESSÁRIO
A preocupação com o abastecimento de água no Nordeste é antiga. Do ponto de vista institucional, a criação do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS), em 1909, foi o marco inicial na implantação da infra-estrutura hoje existente para o aproveitamento hídrico e na busca do conhecimento científico dos recursos naturais dessa porção do Brasil.
Com a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, a intervenção federal ampliou sua ação, e os programas de aproveitamento hídrico incorporaram as dimensões econômicas e sociais que se faziam necessárias, notadamente as referentes à irrigação.
Estudos realizados nas diversas bacias constataram que, em termos médios globais, a região poderia ser considerada como não crítica. Esse fato nos leva a concluir que a situação atual se deve à má distribuição dos recursos hídricos. Esse cenário, porém, pode ser alterado sem a obra da transportação das águas do rio São Francisco.
Os problemas da transposição
Em 2004, o governo do presidente Lula decidiu iniciar o projeto da transposição das águas do rio São Francisco. Trata-se de um projeto caro, avaliado inicialmente em US$ 1,5 bilhão, que produzirá grande intervenção no meio-ambiente, na economia e na população que vive nessas áreas.
Mesmo sem o projeto, a bacia do São Francisco já está muita degradada e apresenta sérios problemas de erosão em suas margens, com assoreamento de
sedimentos em seu leito fluvial. Além disso, a mata ciliar, que acompanhava o rio no passado, foi destruída, afetando a qualidade e a quantidade de água que deve fluir para o rio. A produção de carvão, que tem como matéria-prima a madeira retirada do cerrado e da caatinga, tambémacelera a morte do velho Chico.
A questão em torno do principal rio nordestino é tão delicada, que em outubro de 2004, numa reunião em Salvador, o projeto do governo foi rejeitado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) por 42 votos a 4. A decisão de veto partiu dos comitês compostos de representantes dos governos federal e estadual, prefeituras, empresas consumidoras de água, universidades e de associações profissionais e não governamentais.
Na verdade, o embate pela transposição não é apenas burocrático ou legal. O rio São Francisco apresenta vazão média de 1.860 m3/s. Para manter o rio dentro dos padrões normais na foz, o Comitê fixou o valor aproximado de 1.500 m3/s, que devem atingir o oceano. Feitas as contas, sobram 360 m3 para atender às necessidades: abastecimento residencial, dessedentação de rebanhos, irrigação e consumo industrial. O projeto da transposição pretende usar em torno de 127 m3/s de água para levá-la para as bacias dos rios Jaguaribe, Apodi, Piranhas e Paraíba. Esse bombeamento de água para outras bacias hidrográficas afetará o regime fluvial do São Francisco em outras áreas de captação.
Além do problema da disponibilidade da água do rio, existem as
dificuldades da racionalização dos usos da água nos Estados receptores e o consumo de energia elétrica para bombear a água. São 304 metros de desnível a serem vencidos no Eixo Leste (Paraíba) e 165 metros no Eixo Norte (Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará).
Somado ao que foi exposto, a população local denuncia que, ao contrário do que o Governo propõe, a transposição beneficiará grandes empresas agrícolas e criatórios de camarões, que consomem mais água do que a população a ser beneficiada.
A transposição vai alterar a agricultura de vazante das planícies marginais, uma vez que vai mudar a dinâmica da foz do rio São Francisco. A perenização dos rios receptores das águas transpostas também afetará os pequenos agricultores de vazante, que fazem seus cultivos anuais quando o leito dos rios intermitentes perde parte ou a totalidade de sua água.
O principal representante das comunidades ribeirinhas, Frei Luiz Cappio, realizou, em 2005, uma greve de fome para chamar a atenção do País sobre a importância do rio e da sua revitalização. No site que mantém na internet (www.umavidapelavida.com.br), ele completa: “voltarei ao jejum e à oração, com mais determinação ainda se o acordo firmado em confiança com o Governo não for cumprido.”
O frei conhece bem o rio. Entre 1992 e 1993, ele e mais três pessoas percorreram todo o São Francisco. Na ocasião, declarou: “para o povo ter vida, é necessário que o rio esteja bem vivo e sadio”.
Hoje o Projeto da Transposição perdeu força, e as comunidades interessadas no assunto propõem estratégias para a consecução de novas políticas, por meio de uma gestão hídrica, tecnicamente e politicamente eficiente que leve em consideração aspectos como a proteção dos ecossistemas e do hidroambiente, o manejo adequado do solo, o controle da poluição, a recuperação das áreas degradadas, a minimização do processo de desertificação, o controle da erosão e do assoreamento e a proteção das nascentes.
Sílvia de Faria Pereira e Carvalho é geógrafa e professora do Centro Pedagógico da UFMG.
TRANSPOSIÇÃO JÁ
Muito se tem falado e escrito sobre o projeto do Governo Federal de transpor as águas do rio São Francisco para bacias hidrográficas menores que drenam terras dos Estados do Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba.
Quem conhece e, sobretudo, convive no interior do Nordeste brasileiro com as agruras da falta de água tem uma percepção diferente dos críticos do projeto.
Pode-se afirmar, com certa margem de segurança, que a deficiência hídrica do sertão nordestino é algo absolutamente contornável com a aplicação de tecnologias de captação, armazenamento e distribuição de água. Os solos rasos e pedregosos, embora sejam os dominantes, não são exclusivos. Existem extensas áreas descontínuas que apresentam solos argilosos ou argilo-arenosos naturalmente férteis e que podem
ser mais bem aproveitados para a produção agropecuária.
Há, por outro lado, grandes dificuldades na implantação de projetos agropecuários tecnologicamente sofisticados. Os problemas envolvem tradição cultural, estrutura fundiária, deficiência na formação educacional básica e também técnica.
Assim, os trabalhadores rurais, em função de sua baixa escolaridade e despreparo técnico, dificilmente se transformam em produtores de sistemas tecnologicamente modernos.
Com a transposição de parte das águas do São Francisco, essa região tem oportunidade de melhorar as condições socioeconômicas a partir do desenvolvimento do programa de biodiesel feito com mamona – planta tropical altamente produtiva e de ciclo curto. Vastas áreas poderão ser transformadas em pontos de produção de dendê e babaçu, também para geração de biodiesel. Essas atividades ocupariam extensas áreas de terras subaproveitadas e pouco produtivas, gerariam grande número de empregos e renda, além de possibilitar o desenvolvimento da agroindústria.
Com a disponibilidade de água pode-se ainda investir no aperfeiçoamento da pecuária regional, com a criação de bovinos de variedades geneticamente melhoradas, e áreas de cultivo de plantas forrageiras para alimentação dos animais. Em suma, é possível criar-se inúmeras “ilhas verdes” de grande desenvolvimento no semi-árido. Mas para tudo isso é preciso água.
Quanta água é necessária?
É evidente que o bombeamento médio de 26 m3/s , que equivale a 1% da vazão média do rio São Francisco, ou 114 m3/s, que equivale a 2,5% da vazão, nos picos de bombeamento para recarregar ou encher os açudes do sistema hidrográfico integrado, não vai resolver todo o déficit hídrico do semi-árido e nem mesmo de todas as bacias beneficiárias. Também não vai resolver todos os problemas sociais e econômicos do nordestino sertanejo, do mesmo modo que qualquer outra atividade agropecuária e ou industrial não resolve todos os problemas dos brasileiros.
O projeto de transposição de águas do São Francisco prevê atender a agricultura familiar tradicional (4%), o abastecimento urbano (21%) e os projetos de agricultura irrigada (75%). De acordo com o projeto, 86 cidades da bacia do São Francisco receberão água tratada e saneamento básico. Haverá 400 pontos situados em pequenas comunidades que terão o fornecimento gratuito de água por chafarizes. O programa de construção de um milhão de cisternas na zona rural, perfuração de poços artesianos profundos em pequenas vilas e cidades, e construção de pequenos reservatórios em propriedades rurais continuarão a ser executados.
Para garantir o uso mais eficiente das terras e das águas, uma faixa de 2,5 km de cada lado dos canais e rios perenizados será considerada de utilidade pública, permitindo a desapropriação pelo governo para fins de assentamentos rurais em sistema de agricultura irrigada. A área beneficiada chega a 350 mil hectares, dos quais 50 mil cultiváveis por meio do sistema irrigado.
Nesse contexto, o projeto vai beneficiar aproximadamente 12 milhões de pessoas, que terão água para beber, e ainda água para desenvolvimento da agricultura e pecuária ao longo do seixos perenizados. Essa quantidade de pessoas é mais do que 50% do total da população que atualmente vive no polígono do semi-árido.
Vazão e economia
Uma das questões mais discutidas entre os acadêmicos é em relação ao volume de água a ser retirado dos dois pontos de captação, em Cabrobó (PE), a jusante de Sobradinho e na barragem de Itaparica.
A vazão média do rio São Francisco, da hidrelétrica de Sobradinho até sua foz, é de 2.600 m3/s. Essa regularização deve-se ao sistema em cascata dos lagos de barragens das Centrais Hidroelétricas do São Francisco (CHESF). As barragens de Três Marias, Sobradinho, Paulo Afonso, Itaparica e Xingó possibilitaram o aproveitamento energético das águas do São Francisco, que abastece todo o Nordeste brasileiro. Também regularizaram a vazão, ao permitir a retenção temporária de grande volume de água. Antes, essa água corria livremente para o oceano nos meses chuvossos, deixando a região desabastecida nos meses de estiagem.
Certamente, essa escadaria de barragens acarretou grandes benefícios ao desenvolvimento regional, mas também afetou a dinâmica fluvial. As grandes cheias alternadas com as vazantes do período seco praticamente foram eliminadas. Com isso, o aporte de sedimentos na foz e os avanços e recuos das águas fluviais frente às águas oceânicas também foram modificados.
A alteração dessa dinâmica hídrica afetou as atividades de pesca e coleta de animais dos mangues, bem como a reprodução da fauna marinha. Prejuízo para os pequenos agricultores das margens do rio, que antes se beneficiavam com a prática da agricultura de vazante feita logo após o término das cheias.
Entretanto, esses impactos inevitáveis foram compensados com os benefícios que a energia elétrica trouxe à região, e, no balanço, certamente o custo-benefício vale.
Outra questão é o destino do agricultor de vazante dos rios que serão perenizados. Este também será afetado, já que este trabalhador não poderá mais cultivar as terras nos leitos secos dos rios – pois ficarão permanentemente inundadas. A solução para o problema já está prevista no projeto do Governo: os agricultores serão prioridade nos programas de reassentamento, nos quais receberão terras e auxílio financeiro e técnico para desenvolverem suas atividades. Esta medida deve ser implantada juntamente com a fase de construção dos canais.
Custos
Critica-se também o alto custo de realização do projeto – orçado inicialmente em US$ 1,5 bilhão. Mas as secas periódicas e os investimentos emergenciais delas decorrentes acabam por consumir, anualmente, grandes volumes de recursos financeiros com péssimos retornos social e econômico.
Não se pode esquecer que uma parcela significativa da população do semi-árido vive de aposentadorias rurais, de parte das rendas dos familiares que trabalham nos grandes centros urbanos, e dos programas sociais dos governos federal e estadual. Será a política de assistencialismo e filantropia que se quer eternizar para os pobres do sertão seco, que vivem á mercê de lideranças locais e regionais nos moldes do antigo coronelismo?
A disponibilidade de água, hoje limitada a uma lagoa, represa ou cacimba, disponível simultaneamente aos animais e para parcela da população humana, não pode continuar. Perenizar leitos fluviais intermitentes é um bom começo.
Mas essa iniciativa deve vir acompanhada de investimentos na
área de infra-estrutura, tecnologias modernas de produção bem como melhoramento dos recursos humanos por meio da educação formal e de cursos técnicos de curta duração aos produtores rurais e seus familiares. A transposição poderia ser o primeiro grande passo para quebrar esse velho ciclo vicioso.
Jurandyr Ross é professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo
Revista Discutindo Geografia
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