Em artigo para o Cenário Internacional, Alexandre Tito dos Santos Xavier analisa o papel constitutivo do Conselho de Segurança no século XXI, bem como a sua necessidade de ser reformado.
08/12/08
Por Alexandre Tito dos Santos Xavier*
INTRODUÇÃO
Nos dias de hoje existem grandes discussões e estudos acerca do conceito de soberania do Estado, principalmente devido aos conflitos modernos, à globalização e às ingerências de Estados em outros se valendo de alegações múltiplas como: intervenções humanitárias, combate ao terrorismo etc.
O Conselho de Segurança da ONU surgiu em 1945 e dele fazem parte os vencedores da II Guerra Mundial (Rússia, Estados Unidos, Inglaterra e França), além da China, como membros permanentes, com poder de veto nas votações e mais dez membros rotativos a cada dois anos. De acordo com a análise de Pereira:
Ao instituir o Conselho de Segurança, ao limitar a sua composição, ao impor o direito de veto como prerrogativa dos membros permanentes, os idealizadores da ONU deixavam claro que o Conselho de Segurança seria norteado pela obrigatoriedade de suas decisões, pela crueza do realismo político, pela verticalização do poder, e, no melhor espírito do legado maquiavélico, realizar a segurança coletiva, se necessário, com recurso à força (PEREIRA, 2008, p.9).
Com a mudança do Sistema Internacional(1) e o aparecimento das novas ameaças, dentre elas o recrudescimento do terrorismo internacional, exemplificado pela Al Qaeda, fez com que outros atores ganhassem destaque no cenário internacional. Com isso, é importante estudar se a atual constituição do Conselho de Segurança é suficiente para representar os interesses multiculturais (latinos, islâmicos, europeus etc) dos diversos Estados, ou se ele representa somente os interesses de alguns deles, principalmente no tocante ao uso da força. Buscaremos, também, verificar a eficácia desta organização na resolução de conflitos armados e na neutralização de fatores que possam evitar um risco à segurança e à paz internacionais.
Sendo assim, o propósito do artigo é verificar porque se faz premente a revisão do Conselho de Segurança da ONU no século XXI. Para tanto, serão abordados a evolução do conceito de soberania nos dias atuais, a atuação do Conselho de Segurança nos conflitos internacionais no século XXI, a influência das novas ameaças na atuação do Conselho de Segurança e sua contribuição para a manutenção da paz e da segurança internacionais preservando a soberania dos Estados.
Como o Brasil aspira a sua entrada no Conselho de Segurança, tal entendimento é importante para verificar se o nosso país encontra-se preparado para representar os países latino-americanos.
É preciso salientar que o trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas pelo contrário, suscitar a reflexão e fomentar um debate acerca de tema tão atual.
CONCEITO DE SOBERANIA NO SÉCULO XXI
De acordo com Bobbio (1980) o conceito de soberania do Estado que passa a incidir na teoria das formas de governo, é a que Jean Bodin (1530-1596), que passou para a história do pensamento político como o teórico da soberania define, em sua obra Os Seis Livros da República, em 1576, como: “Soberania é o poder absoluto e perpétuo que é próprio do Estado”. Pelo que se depreende dele, Bodin advoga que somente o Estado possui o monopólio do poder, ou seja, não admite a divisão do poder soberano e não aceita a existência de qualquer outro poder semelhante dentro do Estado.
Após o Tratado de Vestfália, observa-se que o conceito de soberania do Estado enunciado por Bodin é reafirmado, pois há uma asseveração do seu poder, resultando com que as guerras posteriores ao tratado não tenham a religião como motivo principal, mas sim as questões referentes a esse ator. Os mesmos, por serem soberanos, ficam em igualdade entre si, ou seja, somente eles possuem legitimidade para exercer o poder dentro do seu território e se relacionarem com outros.
Esse conceito de soberania (igualdade jurídica entre os Estados, e ele com o monopólio do poder dentro do seu território) continuou sendo empregado, conforme pode ser visto na Carta da ONU (ONU, 1945, p. 2):
Artigo 2
A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios:
1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros. [....]
4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas. (2) [...]
7. Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII (grifos nossos).
Da mesma forma, verifica-se que tal conceito já não é tão absoluto como era na referida época (Século XVII), pois atualmente os Estados não são tão soberanos quando a segurança e a paz internacionais estiverem ameaçadas, pois é prevista a aplicação de medidas coercitivas, conforme podemos ver na própria Carta da ONU (ONU, 1945, p. 5):
Artigo 42
No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no Artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas, poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas.
Despontou, também, uma grande preocupação mundial com os direitos dos indivíduos, pois como a Declaração dos Direitos Humanos (ONU, 1948) nos informa:
Artigo XXX.
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos (grifos nossos).
Tal preocupação, aliada a uma forte opinião pública mundial e a globalização dos dias de hoje, faz com que as violações aos direitos humanos sejam duramente condenadas pela comunidade internacional.
Sendo assim, observamos atualmente algumas intervenções em Estados soberanos. Tais ações encontram respaldo na Carta da ONU e na Declaração dos Direitos Humanos. Conforme Byers (2007, p. 124) nos mostra:
A Resolução 688 não autorizava expressamente o emprego da força contra o Iraque. Os países intervenientes sustentaram sem grande convicção que o fato de o Conselho de Segurança ter estabelecido a existência de uma ameaça à paz e à segurança internacionais constituía implicitamente autorização para as suas ações. Um desses países – o Reino Unido – valeu-se da oportunidade para propor uma doutrina de intervenção unilateral, com a seguinte declaração do Ministro de Relações Exteriores e da Comunidade Britânica:
Consideramos que a intervenção internacional sem convite do país envolvido se justifica em casos de extrema necessidade humanitária. Por isto decidimos mobilizar tropas britânicas na Operação Zona de Segurança, montada pela coalizão para atender à crise de refugiados envolvendo curdos iraquianos.
Além das intervenções humanitárias, existe a guerra ao terrorismo internacional (liderada pelos EUA), que por não possuir fronteiras definidas, dá justificativa a um Estado intervir em outro visando combater tal ameaça. Com isso, podemos ver que, atualmente, vem sendo empregada a força contra a integridade territorial e a independência política do Estado, ferindo assim, o conceito de soberania de Bodin.
Conforme descrito anteriormente, verificamos que tal conceito encontra-se em transformação, existindo uma relativização do referido conceito.
O CONSELHO DE SEGURANÇA NOS CONFLITOS INTERNACIONAIS(3) DO INÍCIO DO SÉCULO XXI
Ainda durante o século XX, o Conselho de Segurança permaneceu praticamente inativo por ocasião da Guerra Fria até a década de noventa. Quando da invasão do Iraque ao Kuwait em 1990, adotou a resolução 660, determinando a retirada imediata das tropas invasoras. Após os prazos esgotados, a coalizão liderada pelos EUA iniciava a Operação Tempestade do Deserto, que representou um estrondoso sucesso, não só do ponto de vista militar como para a autoridade do Conselho. O presidente norte-americano George H. W. Bush falava de uma “nova ordem mundial”, refletida neste multilateralismo mundial (BYERS, 2007, p.32).
Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 trouxeram aos EUA uma mudança radical nas considerações geoestratégicas e políticas que vigoravam no país. Algumas intervenções militares de Estados em outros são justificadas pelo direito a legítima defesa preventiva. O uso do direito de legítima defesa individual ou coletiva é assegurado nos termos do artigo 51 da Carta da ONU(4), tendo sido reiterado nas Resoluções 1368 de 12/09/2001 e 1373 de 28/09/2001 do Conselho de Segurança (PEREIRA, 2008, p.13). Porém, o argumento utilizado pelos norte-americanos de defesa preventiva não encontrava embasamento legal anterior. Conforme cita Grotius apud Pereira (2008, p.18), “a guerra só seria legalmente permitida se iniciada em conseqüência de um perigo presente certo, não num pressuposto perigo”.
No conflito envolvendo os EUA e o Afeganistão(5), onde o primeiro, alegando o direito inerente de legítima defesa, fez o uso da força contra o segundo, pois alegava que este dava acolhida e apoio ao grupo terrorista Al Qaeda. Neste conflito não houve uma solicitação de autorização para o emprego da força militar. Sendo assim, vemos que a autoridade e a legalidade do Conselho não foram levadas em consideração por parte dos EUA. Somente numa segunda etapa jurídica é que os EUA fizeram de tudo para assegurar-se de amplo apoio antes da ação militar (BYERS, 2007).
Em 2003, os EUA para tentar justificar a intervenção militar no Iraque, basearam-se no contido na Resolução 678(6) (Grã-Bretanha e Austrália também), adotada pelo Conselho de Segurança. Porém, a mesma é contestada com bons argumentos conforme podemos verificar em Byers (2007) e na legítima defesa em caráter preventivo(7) que é definida como a necessidade de legítima defesa, urgente, incontornável, sem oferecer opção de meios nem tempo para deliberação. Tal definição vai de encontro com o artigo 51 da Carta da ONU. Nesse conflito o Conselho de Segurança emitiu a Resolução 1441, contudo não estava clara a autorização do uso da força, havendo uma ambigüidade de interpretação não compartilhada por todos os membros do Conselho e também por boa parte da comunidade internacional quanto à intervenção militar no Estado iraquiano. Com isso, podemos inferir que tal guerra tem a sua legalidade contestada, já que não houve consenso no Conselho de Segurança da ONU, o que demonstrou sua fragilidade perante a decisão de levar adiante a ação militar por parte da potência hegemônica militar atual (EUA).
Verificamos que apesar de não ter embasamento legal(8), conforme menciona Pereira (2008, p.23), “até o presente momento o Conselho de Segurança não aprovou nenhuma resolução geral e definitiva condenando a legítima defesa preventiva. Apenas tem se manifestado em casos pontuais”, alguns Estados utilizam tal argumento para justificarem suas ações de emprego da força.
Concluímos também que, atualmente, o referido conselho possui uma grande fragilidade política perante as decisões tomadas pela potência militar hegemônica do início do século XXI (EUA), bem como a possível presença de um Estado que fosse representante das nações muçulmanas poderia auxiliar na resolução dos conflitos apresentados, antes que houvesse o emprego da força mostrando, dessa forma, a importância de maior representatividade nos membros permanentes do Conselho de Segurança.
AS NOVAS AMEAÇAS E A ATUAÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA
Com o fim da Guerra Fria, que foi materializado pela dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991, as ameaças à segurança e à paz internacionais ficaram difusas, pois naquela época elas eram bem definidas, o que facilitavam a preparação e o planejamento militar de então. Tal mudança na ordem mundial, aliada ao fenômeno da globalização, segundo alguns estudiosos geopolíticos, possibilitou sua alteração de bipolar para unipolar ou, de acordo com outros teóricos, passou para multipolar, fazendo com que surgissem novas ameaças a estabilidade mundial, que podem ser elencadas como: terrorismo internacional, organizações criminosas, proliferação de armas de destruição em massa dentre outras. Essa nova configuração, no entanto, não eliminou o risco de um possível conflito entre Estados. Após os episódios de 11 de setembro de 2001, o mundo ficou marcado pelas ações terroristas ocorridas nos EUA. Fato que priorizou na agenda mundial o interesse pela temática em questão.
O caráter do Conselho de Segurança de evoluir, sempre baseado na forma da Carta da ONU, adequando-se às novas situações que o mundo dos conflitos internacionais e, por vezes nacionais, se lhe impõem, dá-lhe a verdadeira conotação de organismo auto-adaptável às novas e diferentes condições dos conflitos. O modo como esta adaptação ocorre é explicado em Byers (2007, p. 75):
Assim, embora o direito esteja codificado num tratado que foi quase universalmente ratificado, seus delineamentos evoluíram gradualmente - ou pelo menos tornaram-se mais facilmente distinguíveis – em conseqüência de práticas de Estado e expressões de opinio juris que intervieram desde 1945.
O preâmbulo da Carta da ONU afirma que sua destinação é “garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum” (BYERS, 2007, p.28). A Carta também estabelece que o Conselho de Segurança tem ampla autoridade para determinar “a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão”, decidir que medidas devem ser tomadas para “manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais” (BYERS, 2007, pg.28), e ainda confere ao Conselho “amplos poderes para determinar o alcance de sua própria competência jurídica.” (BYERS, 2007, pg.40).
Apesar de todos os poderes que lhe são conferidos, um grande limitador para a decisiva atuação do Conselho para preservar e restabelecer a paz repousa no seu caráter de organismo intrinsecamente político (BYERS, 2007, p.37).
Após o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 os EUA empreenderam uma hábil estratégia jurídica que culminou com o Conselho de Segurança adotando as resoluções de 12 e 28 de setembro de 2001 nas quais afirmam “o direito de legítima defesa no direito consuetudinário internacional, no contexto dos atentados terroristas de Nova York e de Washington” (BYERS, 2007, p.88). Deste modo, ficou incluído no direito de legítima defesa as “reações militares contra países que deliberadamente dão acolhida ou apoio a grupos terroristas, desde que esses grupos já tenham atacado no país que reage” (BYERS, 2007, p. 88).
Em 20 de setembro de 2002 foi divulgada a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA (Doutrina Bush), onde adotava uma doutrina de legítima defesa preventiva unilateral (BYERS, 2007, p.102). Apesar das alegações sobre a ameaça do terrorismo e das armas de destruição em massa (ADM), os Estados Unidos não conseguiram suscitar um generalizado apoio e aquiescência para justificar o estabelecimento de um novo direito consuetudinário internacional (BYERS, 2007, p.102). Em dezembro de 2004, num parecer do Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança do secretário-geral da ONU, a Doutrina Bush era condenada de forma contundente (BYERS, 2007, p.105).
Em outra situação, em março e abril de 2004, sob a alegação de legítima defesa, o Estado de Israel empreendeu ataques com mísseis para eliminar dois lideres do Hamas, responsáveis por atentados terroristas em Israel. Estas ações, chamadas de “assassinatos seletivos”, suscitaram declarações opostas. A Grã-Bretanha condenou os assassinatos, considerando-os ilegais. A União Européia classificou os ataques como “assassinatos extrajudiciais” que violavam princípios fundamentais do direito internacional referentes aos direitos humanos e às questões humanitárias. De opinião contrária, os Estados Unidos classificaram os ataques como legítimos no direito de Israel se defender (BYERS, 2007, p.89).
Não obstante, as situações citadas constituem novas ameaças à paz e são baseadas, principalmente, na exceção ao uso da força prevista no artigo 51 da Carta da ONU, ou seja, na justificativa de legítima defesa. E conforme visto no item 3 do trabalho, o Conselho de Segurança não aprovou nenhuma resolução geral e definitiva condenando a legítima defesa preventiva.
Podemos observar que perante as novas ameaças à paz e à segurança internacionais que ocupam a prioridade da agenda mundial no século XXI, baseadas principalmente na exceção ao uso da força prevista no artigo 51 da Carta da ONU, o Conselho de Segurança vê-se na responsabilidade de emitir resoluções que reflitam o Direito Internacional e os princípios de aceitação internacional, diante de situações que podem esconder interesses políticos de Estados em particular.
O CONSELHO DE SEGURANÇA E A MANUTENÇÃO DA PAZ E DA SEGURANÇA INTERNACIONAIS PRESERVANDO A SOBERANIA DOS ESTADOS
O Conselho de Segurança da ONU, como o principal responsável pela manutenção da paz e da segurança internacional, atua de acordo com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas através das suas atribuições específicas, quais sejam: a Solução Pacífica de Controvérsias, Ações Relativas à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão, Acordos Regionais e o Sistema Internacional de Tutela.
Notadamente há, hoje em dia, a possibilidade do Conselho de Segurança da ONU intervir de modo mais abrangente ao considerar a necessidade de cumprir seu papel no cenário internacional. A despeito dessa nova abrangência e das considerações sobre a soberania do Estado, como descrita anteriormente no item 2 desde a conceituação de Jean Bodin até os dias atuais, observamos uma nova amplitude do alcance do Conselho de Segurança conforme descreve Byers :
[...] o capítulo VII da Carta da ONU confere ao Conselho de Segurança o poder de autorizar o emprego da força em reação a ameaças e violações da paz internacional. Mas a definição deste papel – e portanto o alcance da ação do Conselho de Segurança – foi ampliada nos últimos anos (BYERS, 2007, p.39).
Tal emprego da força, em reação às violações mencionadas, por vezes contrapõe-se a soberania de determinado Estado. Entretanto, até ser necessária tal ação, há um longo período de debates através de negociações diplomáticas e a imposição de sanções econômicas, dentre as medidas iniciais possíveis de serem utilizadas. Há, também, uma grande questão associada à ameaça e a violação da paz internacional que está relacionada com as atrocidades cometidas contra os direitos humanos, de acordo com Byers:
[...] o recurso ao capítulo VII para a criação de “zonas de segurança” e de um tribunal penal internacional integrava-se a um movimento mais amplo por parte do Conselho, no sentido de incorporar as crises humanitárias internas em países específicos ao conceito de “ameaças à paz e à segurança internacionais” (BYERS, 2007, p.39).
Portanto, na nova ordem mundial, os conceitos envolvendo a esfera humanitária e de direitos humanos – fome, surtos, guerras civis e genocídios dentre outros, passaram a justificar as ações do Conselho de Segurança para promover e manter a paz, mesmo envolvendo questões como a soberania do Estado. Porém, há casos em que o próprio Estado torna-se a origem e o maior interessado em uma intervenção, diferentemente de outros, como exemplificado por Byers:
Em vários casos, especialmente no Haiti em 1994 e no Timor Leste em 1999, o Capítulo VII foi mais decisivo no sentido de conferir legitimidade do que legalidade, pois essas intervenções ocorreram a pedido dos próprios países que a ela se submetiam. Em outros casos, como os da Somália, de Ruanda e mais recentemente de Dafur, no Sudão, não houve suficiente vontade política de intervir prontamente ou perseverar quando as dificuldades se agravaram (BYERS, 2007, p.40).
Nesse contexto de mundo globalizado, o desenvolvimento das relações transnacionais através de atores não estatais e as ações do Conselho de Segurança, ao intervir nos Estados, podem afetar de alguma forma sua soberania, a despeito das transformações e da evolução de sua conceituação até os dias de hoje, conforme Pereira:
A globalização veio acentuar a evidência de que o Estado, como ator internacional, perdera parte da antiga importância que lhe fora historicamente conferida a partir da Paz de Vestfália e que, hoje, se vê ameaçado em seu poder e limitado em sua ação – interna e externa – pelas forças econômicas e pelas condições resultantes da redução de seu papel pelo consenso neoliberal e pelas doutrinas minimalistas, que subordinam os Estados nacionais, principalmente as nações periféricas, a organismos multilaterais interventores – hoje amplamente controlados pelos Estados Unidos -, dotados de poder regulatório, como o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial, etc. Cabe-nos, contudo, reconhecer que, a despeito do alastramento das organizações inter-governamentais e dos acordos promotores da supra-nacionalidade, o Estado, apesar de tudo, não perdeu sua real importância, mas a exclusividade da ação internacional (PEREIRA, 2004, P.632).
Dessa forma, o equilíbrio de forças no cenário internacional atual difere do equilíbrio de forças existente antes do estabelecimento da nova ordem mundial. Nesse novo formato de relacionamento entre os atores estatais e não estatais, os dotados de maior poder possuem peso de maior influência na concretização de suas vontades. Portanto, o Conselho de Segurança, em sua esfera de atuação – incluindo as atividades humanitárias e de direitos humanos -, representa a vontade dos Estados de maior poder do sistema internacional. Sendo assim, há, nesse contexto, dentro do universo da atuação do Conselho de Segurança, que se reavaliar o peso e a distribuição do poder de decisão, buscando-se cada vez mais o equilíbrio e a imparcialidade na atuação do mesmo através do emprego da força em reação as ameaças e violações da paz e da segurança internacional.
CONCLUSÃO
Concluímos que o conceito de soberania do Estado moderno surgido em 1576 (Bodin), e consolidado em 1648 (Tratado de Vestfália), está em transformação nos dias atuais, existindo uma relativização do referido conceito.
Verificamos que a legítima defesa preventiva não tem embasamento legal e que alguns Estados utilizam tal argumento para justificarem suas ações de emprego da força, principalmente para combater algumas das novas ameaças fora de seus territórios, onde se destaca o terrorismo.
Concluímos também que, atualmente, o Conselho de Segurança possui uma grande fragilidade política perante as decisões tomadas pela potência militar hegemônica do início do século XXI (EUA). A possível presença de um Estado representante das nações muçulmanas poderia auxiliar a resolução dos conflitos do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003), antes que houvesse o emprego da força, mostrando, dessa forma, a importância de maior representatividade nos membros permanentes do Conselho de Segurança.
Observamos que, perante as novas ameaças à paz e à segurança internacional, que ocupam a prioridade da agenda mundial no século XXI, baseadas principalmente na exceção ao uso da força prevista no artigo 51 da Carta da ONU, o Conselho de Segurança se vê na responsabilidade de emitir resoluções que reflitam o Direito Internacional e os princípios de aceitação internacional, diante de situações que podem esconder interesses políticos de Estados em particular.
Vimos que o equilíbrio de forças no cenário internacional atual difere do equilíbrio de forças existente antes do estabelecimento da nova ordem mundial. Nesse novo formato de relacionamento entre os atores estatais e não estatais, os dotados de maior poder possuem maior influência na concretização de suas vontades. Portanto, o Conselho de Segurança, em sua esfera de atuação, representa a vontade dos Estados de maior poder do sistema internacional. Sendo assim, há, nesse contexto, dentro do universo da atuação do Conselho de Segurança, que se reavaliar o peso e a distribuição do poder de decisão, buscando-se cada vez mais o equilíbrio e a imparcialidade na atuação do mesmo através do emprego da força em reação as ameaças e violações da paz e da segurança internacional.
Concluímos com o final desse trabalho, que existe uma necessidade premente de aumentar a representatividade dos Estados como membros permanentes do Conselho de Segurança, visando aumentar sua imparcialidade na autorização de uso da força para manter a paz e à segurança internacionais, sem violar a soberania dos Estados.
* Oficial da Marinha do Brasil. Mestre em Ciências Navais pela Escola de Guerra Naval e Pós-Graduado com MBA em Gestão Empresarial pela COPPEAD/UFRJ.
REFERÊNCIAS
ARON, Raymond. Paz e guerra entre as Nações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1979.
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.
BYERS, Michael. A lei da guerra. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2007.
ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Carta da ONU, 26 jun. 1945. São Francisco, Estados Unidos da América. Disponível em:
______. Declaração dos Direitos Humanos. 1948. [S.l]. Disponível em:
PEREIRA, Antônio Celso Alves. O recurso à força pelos estados e a legítima defesa no direito internacional contemporâneo. In: CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 3-24.
______. Soberania e Pós-Modernidade. In: LEONARDO NEMER CALDEIRA BRANT. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.619-662.
NOTAS
(1) Raymond Aron define Sistema Internacional como sendo um conjunto composto por unidades políticas que mantêm relações regulares entre si e que são passíveis de se envolver numa guerra geral. Comenta também que tal estrutura é sempre oligopolística, ou seja, os atores principais determinam, em cada época, como deve ser o sistema, muito mais do que são determinados por ele. (1979, p. 121).
(2) Tais propósitos encontram-se descritos no artigo 1 da Carta da ONU. Pereira (2008) comenta que a partir dessa disposição (alínea 4 do artigo 2), fica interditado aos Estados o recurso do emprego da força para solucionar contendas internacionais, a não ser nas seguintes situações: exercício da legítima defesa individual ou coletiva, nas ações de manutenção da paz, no direito dos povos de argüir ou defender o princípio de autodeterminação e nas intervenções por razões humanitárias ou de humanidade. (grifo nosso)
(3) Consideraremos os conflitos internacionais como enfrentamentos entre Estados através de suas forças armadas fazendo o uso da força visando atingir os seus objetivos políticos.
(4) Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. (ONU, 1945) (grifo nosso)
(5) Ocorrido em 2001.
(6) Foi adotada pelo Conselho de Segurança após a invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990, autorizando os países membros da ONU a usar todos os meios necessários para estabelecer a paz e a segurança na região. Na guerra de 2003 a argumentação empregada é que a mesma foi suspensa, porém não cancelada pelo cessar-fogo imposto pela Resolução 687 de 1991 (BYERS, 2007) (grifo nosso)
(7) Em 1981 o Estado de Israel adotou a mesma alegação quando realizou um ataque aéreo ao Iraque ante a possibilidade de uma futura ameaça. Tal ato foi rejeitado retumbantemente pela comunidade internacional e a ação foi condenada unanimemente pelo Conselho de Segurança da ONU. (BYERS, 2007)
(8) Pereira (2008) nos mostra que não há no Direito Internacional contemporâneo, nenhum dispositivo que consagre a legítima defesa preventiva.
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Um comentário:
Gostei bastante do artigo. Um bom texto para entender assuntos importantes que caem no vestibular e também que afetam nosso dia a dia.
Além de tudo, ele escreve muito bem.
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