Por que nos sujeitamos a um meio de transporte que causa, só no Brasil, a morte de 46 mil pessoas por ano? A troco de quê ajudamos a sustentar o mercado da indústria automobilística e petrolífera que fomenta tantas guerras? Por que julgamos tão necessário um veículo que é a maior causa da poluição atmosférica e do aquecimento global? Quantos ainda terão que se sacrificar para que alguns desfrutem o conforto de seu carro em congestionamentos?
Essas são algumas questões levantadas pelo livro Apocalipse motorizado - a tirania do automóvel em um planeta poluído. A obra é uma coletânea de textos que questionam a imposição social desse veículo, discutem problemas gerados pela sua superabundância, a expropriação do espaço público urbano e a exclusão social que ele acarreta.
O livro é organizado por Ned Ludd, que no ensaio de abertura conta a história do veículo no Brasil e chama a atenção para o culto ao carro que se pratica no cotidiano. "Questionar o automóvel implica, imediata e necessariamente, questionar a própria organização social e as necessidades e funções que lhes são próprias", defende.
A leitura continua com os textos do ambientalista radical Ivan Illich e do sociólogo André Gorz, que apontam os problemas da poluição e destruição do meio ambiente pela obtenção de energia para a produção e 'consumo' do carro. Gorz denuncia um paradoxo ligado à cultura do automóvel: "Ele é imprescindível para escapar do inferno urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo tornou-se necessário".
Outra reflexão levantada por Gorz -- e pelos textos seguintes, dos grupos Aufheben (alemão) e Mr. Social Control (tcheco) -- discute a estruturação do espaço urbano. "A verdade é que ninguém tem opção", lamenta Gorz. "Não se é livre para ter ou não um carro uma vez que o universo dos subúrbios é projetado em função dele."
Os grupos europeus também destacam a identidade estabelecida pelo carro e a exclusão social por ele provocada. "Quanto mais dinheiro é gasto por motoristas, mais lugares tornam-se fora do alcance das pessoas que não possuem carros, veja-se o êxodo de lojas das ruas principais para os anéis viários", afirma o texto tcheco. A falsa sensação de liberdade associada ao veículo e alimentada pela publicidade é outro tema evocado. "Ironicamente, a máquina que é vendida por sua capacidade de dar liberdade de movimentos e por sua capacidade de cobrir distâncias cria tanta distância quanto atravessa", acusam os alemães.
Os artigos de Apocalipse motorizado são ilustrados com charges do cartunista americano Andy Singer
O livro segue com propostas criativas e bem-humoradas de ações práticas para se opor à ditadura do automóvel -- como transformar as placas de 'Pare' em 'Pare de dirigir'. "Construa uma armação do tamanho de um carro para sua bicicleta e ande com ela pela cidade", sugerem ainda os autores.
Os artigos de Apocalipse motorizado têm linguagem simples e didática. Embora muitas vezes defenda pontos de vista irredutíveis e não apresente contrapontos ou soluções concretas para os problemas expostos, o livro funciona como um instigante guia de reflexão sobre a organização do atual sistema de transportes.
Apocalipse motorizado - a tirania do
automóvel em um planeta poluído
Ned Ludd (org.)
São Paulo, 2004, Conrad Editora
Renata Moehlecke
Revista Ciência Hoje
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