Atrocidades da guerra na Faixa de Gaza atrapalham
o entendimento de Israel como uma ilha de democracia
cercada de ditaduras no Oriente Médio
Jaime Klintowitz
Uriel Sinai/ Getty Images
o entendimento de Israel como uma ilha de democracia
cercada de ditaduras no Oriente Médio
Jaime Klintowitz
Uriel Sinai/ Getty Images
MORTE EM COMBATE
No cemitério militar de Beersheba, soldados israelenses choram a perda de
colega em Gaza
Se a contagem do tempo começar pelo ano em que o primeiro grupo armado foi organizado pelos judeus para proteger suas povoações de salteadores árabes, em 1909, judeus e árabes engalfinham-se pela posse da Palestina há pelo menos 100 anos. Nesse século de atrocidades mútuas, cada lado tem sua parcela de culpa no fato de se passar tanto tempo procurando um caminho para a paz quando a paz deveria ser o caminho. Por que a paz não encontra quem a patrocine naquela região? As causas da guerra no Oriente Médio são de natureza diversa – étnica, religiosa, geopolítica e ideológica. Elas se interpenetram de tal modo que a solução de uma acaba agravando a outra. O resultado é que todas as chances de paz foram abortadas por um lado ou outro – mais recentemente sempre pelos palestinos e pelos países árabes que lhes dão apoio. Há duas semanas, Israel está de novo oficialmente em guerra com um de seus vizinhos. Já esteve em 1948, ano de sua criação como estado independente, em 1956, 1967, 1973, 1982 e 2006. Israel venceu todas essas guerras, mas as vitórias militares acabaram produzindo novas complicações e adiando ainda mais a solução definitiva para o conflito.
As duas semanas de ofensiva militar israelense na Faixa de Gaza, com todos os seus horrores, podem facilmente ser vistas como mais uma erupção de violência dessa rixa crônica. Afinal, esta é a quarta vez que tropas israelenses invadem a Faixa de Gaza, uma nesga de solo arenoso, superpovoada e muito pobre, desde 1948. Da penúltima vez, a ocupação se prolongou por 38 anos, só terminando em 2005. O conflito será mais bem compreendido, no entanto, se for examinado pelo que tem de diferente dos anteriores. "Essa não é mais uma guerra árabe-israelense. Nem sequer se pode falar em conflito israelo-palestino, já que metade da Palestina não está com o Hamas", disse a VEJA o paquistanês Kamran Bokhari, diretor de pesquisas sobre o Oriente Médio da Stratfor, uma consultoria de geopolítica com sede nos Estados Unidos. "Muitos palestinos na Cisjordânia entendem que o Hamas é parte do problema." O Hamas é uma organização radical islâmica, dominada pelo fanatismo e que usa métodos terroristas. Seus líderes são proponentes do jihadismo, o movimento cujo objetivo mais geral é a guerra santa em nome do Islã e cujo objetivo mais específico é a destruição do Estado de Israel. O Hamas domina corações e mentes em Gaza. Tem, portanto, legitimidade política. Essa é a tragédia. O Hamas não pode ser derrotado militarmente.
A diversidade na Palestina é maior do que aparenta ser. Vivem ali várias confissões religiosas – cristãos, drusos e, naturalmente, judeus –, mas o Hamas sustenta que o território deve ser um pedaço exclusivamente muçulmano de um futuro império islâmico. Isso sinaliza a ascensão de um novo complicador no conflito centenário. Apesar de contrapor judeus a muçulmanos, a disputa até agora tinha sido basicamente laica, de cunho nacionalista, sobre quem era ou não um povo e qual deles tinha ou não direito a um estado próprio. O Hamas é um fiel escudeiro do Irã, que lhe fornece armas (aí a origem dos mísseis lançados da Faixa de Gaza contra cidades israelenses), treinamento militar e dinheiro. Ainda que em microdimensões e por meio de intermediários, o ataque ao Hamas pode ser visto como uma espécie de "guerra por procuração" – na definição do historiador israelense Benny Morris, da Universidade Ben-Gurion, em Beersheba – entre Israel e os aiatolás de Teerã.
Os iranianos podem muito bem ter incentivado o Hamas a rejeitar a renovação do cessar-fogo – e a iniciar o insano foguetório que atraiu a devastadora reação militar – para desviar a atenção dos israelenses, que pareciam estar se preparando para um ataque preventivo às instalações nucleares do Irã. Há estimativas de que os iranianos estejam a dois ou três anos de obter sua primeira bomba nuclear. Israel sabe que os jihadistas não são totalmente racionais. Ou, pelo menos, não da forma como se vê em governos responsáveis, cuja preocupação primordial são a segurança e a prosperidade de seu povo. A ameaça de aniquilação mútua garantiu o equilíbrio entre o Kremlin e a Casa Branca durante a Guerra Fria. Devido à fixação mental no autossacrifício e no martírio, sanções e represálias não funcionam tão bem com os aiatolás iranianos ou com os xeques do Hamas. Se Teerã tiver a bomba nuclear, é provável que decida usá-la, seja por motivos ideológicos, seja por medo de que Israel, que tem um formidável estoque de armas nucleares, possa atacar primeiro. Meses de bloqueio israelense e sanções estabelecidas pelos Estados Unidos, União Europeia e Egito não conseguiram fazer com que o Hamas moderasse sua demagogia religiosa e seu discurso racista – razões, por sinal, da imposição de sanções.
Depois de uma trégua tensa que durou seis meses, o movimento islâmico se pôs a disparar foguetes sobre as cidades israelenses para demonstrar que a jihad está viva e em boa forma. Por certo não tinha ilusões de que a represália era inevitável e seria, como de hábito, devastadora. Fiel ao culto do martírio, o Hamas agiu diligentemente para atrair a formidável máquina de guerra israelense para as vielas apinhadas das cidades e favelas de Gaza, onde acreditava que seria mais fácil combatê-la. As mortes e a destruição causadas pela ofensiva israelense são dolorosas de observar. Na última sexta-feira, as estimativas eram de 750 palestinos mortos, entre os quais uma quantidade enorme de crianças. Só no ataque a uma escola da ONU repleta de refugiados foram mortas quarenta pessoas. Famílias inteiras acabaram dizimadas por bombardeios aéreos. Uma proposta de cessar-fogo apresentada pelo Conselho de Segurança da ONU foi rejeitada por ambas as partes na sexta-feira passada.
Baz Ratner/Reuters
O LONGO BRAÇO DO HAMAS
Mãe e filhos se protegem em kibutz de foguetes palestinos
lançados de Gaza
O conflito em Gaza aprofundou o cisma regional entre a facção da "resistência" – que inclui o Irã, a Síria e suas milícias aliadas, o Hezbollah no Líbano e o Hamas na Palestina – e os chamados moderados, favoráveis à paz negociada com Israel. Esse grupo é formado pela maioria dos países, encabeçados por Egito, Jordânia, Arábia Saudita e pela Autoridade Palestina na Cisjordânia. Alguns deles, como o Egito, com o qual Gaza faz fronteira, criticaram abertamente o Hamas por provocar o conflito. O governo egípcio não tolera a conexão entre o Hamas e a Irmandade Muçulmana, o principal movimento de oposição no país. A Arábia Saudita apoia quase abertamente qualquer coisa que os israelenses façam para conter a influência dos xiitas do Irã no Oriente Médio. O primeiro pelotão, o da rejeição, tem a esperança de que o Hamas sobreviva ao ataque em condições de demonstrar que Israel não é capaz de esmagar todos os seus inimigos. O segundo grupo torce descaradamente pela derrota do extremismo islâmico em Gaza. O mesmo debate está aceso entre os palestinos, a ponto de o presidente Mahmoud Abbas ter a ousadia de responsabilizar o Hamas pelo início da guerra.
Quando Israel se retirou unilateralmente da Faixa de Gaza, em 2005, deu aos palestinos a oportunidade de demonstrar sua capacidade de gerir o próprio estado. Três anos e meio depois, está claro que os palestinos falharam em seu objetivo. "Eles preferiram investir na construção de túneis e no contrabando de armas a financiar um bom governo para a população palestina", diz o historiador Benny Morris. As condições de vida na Faixa de Gaza continuaram miseráveis. Metade dos trabalhadores está sem emprego e sete em cada dez dependem de doações internacionais para se alimentar. A ajuda minguou depois da vitória do Hamas nas eleições de 2006. Os Estados Unidos e a União Europeia, que têm o grupo em sua lista de organizações terroristas, cortaram linhas de financiamento à região. As chances de criar um estado palestino se tornaram mais remotas depois do golpe militar que expulsou o Fatah de Gaza. Desde 2006, cerca de 750 palestinos morreram em lutas fratricidas – número semelhante ao das mortes causadas pelos ataques israelenses.
Fotos Hatem Moussa/AP, Suhaib Salem/Reuters e Guy Assayag/AP
SOFRIMENTO
Milhares de palestinos rezam pelas vítimas do ataque israelense que atingiu uma escola da ONU (no alto, à dir.). À esquerda, pai reconhece o corpo do filho na Cidade de Gaza. À direita, robô israelense checa o corpo de um palestino morto ao tentar explodir um posto de gasolina em assentamento judeu na Cisjordânia
Curiosamente, essa realidade multifacetada tornou-se preto-e-branco na reação da imprensa, dos diplomatas e da maioria dos governantes. Israel é basicamente considerado um estado truculento, que – esta é a opinião expressa pelo governo do presidente Lula – reagiu de forma desproporcional aos foguetes do Hamas. O argumento baseia-se bastante na discrepância de baixas (catorze israelenses mortos até a sexta-feira passada). Essa é uma conta difícil de ser feita por quem considera que cada vida é preciosa. Na verdade, o estado judeu não está respondendo aos projéteis lançados nas últimas duas ou três semanas, mas a anos de ataques indiscriminados contra os 750 000 israelenses que vivem próximos à fronteira com a Faixa de Gaza. A ofensiva contra o Hamas está sendo realizada com força poderosa e agressividade tática, estratégia militar cujo objetivo é reduzir as próprias perdas e esmagar o inimigo. Não é assim que se ganham as guerras? "Trata-se de um estado soberano defendendo sua integridade e seus habitantes", disse a VEJA Paul Scham, que ensina história israelense na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.
É paradoxal, mas não inesperado, que Israel, a única democracia do Oriente Médio, esteja perdendo gradualmente a simpatia da opinião pública no exterior. A malhação, antes confinada à extrema esquerda, tornou-se parte integrante do populismo antiocidental. Muitos partidos de esquerda agora consideram o antissionismo como um pré-requisito para seus afiliados e não se acanham em denunciar a "conspiração judaica", na melhor tradição antissemita. "Por que a esquerda europeia, e globalmente toda a esquerda, está obcecada em lutar contra as democracias mais sólidas do planeta, Estados Unidos e Israel, e não contra as piores ditaduras?", questionou em uma palestra a jornalista catalã Pilar Rahola, que já foi deputada de esquerda na Espanha. O conflito entre árabes e judeus na Palestina é um nó difícil de desatar. Oportunidades de paz foram perdidas por ambos os lados e nada indica que se esteja mais perto de uma solução – ainda que todo mundo concorde que, quando dois povos disputam o mesmo pedaço de terra, a melhor solução é dividi-la em dois países. O que é fora de dúvida é que Israel não pode (e não vai) perder a guerra contra as forças da intolerância religiosa no Oriente Médio, representada agora pelos terroristas do Hamas. Israel é uma sentinela avançada da democracia e da civilização judaico-cristã cercada por nações e grupos políticos armados que formal e claramente lutam pela destruição do estado judeu e pela morte de todos os seus habitantes não-árabes. Também é fora de dúvida que não haverá paz enquanto os vizinhos hostis não aceitarem que a existência de Israel é legítima, que o país tem o direito de se defender e que o terrorismo destrói o que pretende construir.
Com reportagem de Thomaz Favaro e Duda Teixeira
Revista Veja - Janeiro de 2009
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