Eles não andam carimbados como animais em fila para o matadouro e também não há um selo colado na testa que diga se são brahmanes, kshatriyas, vaishyas, sudras ou, pior ainda, dalits e parias, os intocáveis. Para a cultura ocidental, esse é um dos aspectos da sociedade hindu que mais intriga. O sistema de castas.
Não há exatamente um dia consagrado como o primeiro da vigência dessa estúpida forma de classificação de seres humanos, mas alguns livros apontam que começou há 4,5 mil anos, com a invasão dos arianos – mistura de europeus com indianos e que por isso eram mais claros. E também mais robustos, selvagens e rudes. Imagina-se que eram pastores e teriam vindo das estepes do sul da Rússia. Em pouco tempo, dominaram boa parte do território que hoje forma a Índia, o Paquistão e Bangladesh. Na verdade, a antiga Índia, que foi dividida após a independência da Inglaterra por questões religiosas e interesses geopolíticos dos antigos colonizadores.
Em sânscrito, casta é varna, que significa cor. Ou seja, no princípio (e de algum jeito até hoje), as diferentes classificações sociais guardam relação com a cor da pele. Os arianos, mais claros, eram os superiores. Até aí, nada muito diferente do que vivemos no Brasil.
Na lógica do sistema de castas existem quatro grandes grupos. O primeiro, os brahmanes. Eles se encarregam da educação, tanto religiosa como de outros saberes. É a casta superior, que detém o conhecimento. Depois vêm os kshatriyas. São funcionários públicos, administradores e defensores do povo. A terceira casta é a do vaishyas, os que trabalham na indústria, no comércio e na prestação de serviços. Por fim, o sudras, que existem para servir às outras castas. São os faxineiros e servidores em geral.
Há ainda uma quinta classificação, que é “extracasta”, os dalits, para nós ocidentais, os intocáveis. Aqueles que os membros de outras castas evitam qualquer contato. Em outros tempos tinham de carregar algum objeto sonoro para fazer notar sua presença. Para que pessoas de castas superiores pudessem se esconder, já que até a sombra de um dalit ou mesmo de um sudra era algo contaminável.
Eles trabalham com todo tipo de dejeto, principalmente lixo. Vivem em cantos isolados, em meio ao que há de mais degradante do ponto de vista da miséria. Cerca de 62% de sua população é analfabeta, enquanto nas demais castas a cifra não ultrapassa os 48%. Metade das crianças dalits abandona a escola no nível primário e somente 0,6% dos professores indianos possuem esta origem. Mais de 45% dos dalits trabalham na agricultura, mas nem 15% destes possuem terra. Menos de 31% deles têm eletricidade em casa e mais de 50% vivem abaixo da linha de pobreza. Sem falar, por exemplo, que os casos de estupro entre as mulheres dalits são freqüentes que em apenas dois anos (de 1995 a 1997), aconteceram mais de 90 mil crimes contra membros dessa comunidade.
Por que aceitam essa condição sem grandes revoltas? Porque, na verdade, pagam o que fizeram na outra encarnação. Eles nasceram numa casta inferior por predestinação. Ou seja, esse é o kharma que têm de cumprir para atingirem algo melhor numa nova vida. A justificativa para a imobilidade social na Índia também se explica pelos textos sagrados. Manu, um famoso pensador hindu do século I, foi o primeiro a justificar essa situação:
“Para proteger esse universo, o ser resplandecente determinou deveres e ocupações diferentes para aqueles que nasceram de sua boca, braços, músculos e pés. Aos brahmanes destinou a vocação de ensinar e de ler o Veda (texto sagrado), oferecer sacrifícios para seu próprio benefício e dos outros. Aos kshatriyas ordenou proteger as pessoas, fazer doações, oferecer sacrifícios, estudar o Veda e se abster dos prazeres sexuais. Aos vaishya encomendou o cuidado do arrecadado, fazer doações, oferecer sacrifícios, estudar o Veda, fazer negócios, emprestar dinheiro e cultivar a terra. O senhor prescreveu somente uma ocupação aos sudras, a de servir mansamente às outras castas.”
A história de que a sociedade indiana é muito complexa e de que existem milhares de castas e subcastas é meia-verdade. De fato, o que vale é a existência dessas quatro grandes castas e dos fora-delas, os dalits. As outras são, na verdade, subcastas, criadas para que dentro da própria casta haja diferenciação. Ou então invencionices do tipo “castas dos limpadores de ouvidos” ou dos “trabalhadores de informática”.
Para se ter uma idéia, entre os brahmanes, os sacerdotes, aqueles que ministravam cultos em templos onde só podiam entrar os seus, eram de uma subcasta superior aos outros brahmanes que trabalhavam em contato com os sudras. E assim por diante, até chegar aos intocáveis, que trabalham com a podridão e cujos filhos estariam condenados a seguir o mesmo caminho.
Ghandi foi um dos homens que mais se indignou contra esse esquema. Hoje, ele ainda perdura, mas não é algo determinado pelo do Estado. Ao mesmo tempo é útil.
O sistema de castas deve ser derrotado pela lógica do capitalismo, que precisa alimentar o sonho de que todos podem galgar o paraíso ainda em vida. E isso de algum jeito já está começando. Quando um deles deixa seu pequeno vilarejo (existem 575 mil na Índia, onde vivem 75% da população) e ruma para a cidade grande, não é mais reconhecido como de uma ou outra casta. Torna-se mais um. O que pode até significar um momento de libertação. Mas o que não garante que se torne o caminho para uma vida melhor. Até porque, o neoliberalismo só tem piorado a vida daqueles que vivem no porão da sociedade indiana (leia entrevista abaixo).
rovai@revistaforum.com.br
Não há exatamente um dia consagrado como o primeiro da vigência dessa estúpida forma de classificação de seres humanos, mas alguns livros apontam que começou há 4,5 mil anos, com a invasão dos arianos – mistura de europeus com indianos e que por isso eram mais claros. E também mais robustos, selvagens e rudes. Imagina-se que eram pastores e teriam vindo das estepes do sul da Rússia. Em pouco tempo, dominaram boa parte do território que hoje forma a Índia, o Paquistão e Bangladesh. Na verdade, a antiga Índia, que foi dividida após a independência da Inglaterra por questões religiosas e interesses geopolíticos dos antigos colonizadores.
Em sânscrito, casta é varna, que significa cor. Ou seja, no princípio (e de algum jeito até hoje), as diferentes classificações sociais guardam relação com a cor da pele. Os arianos, mais claros, eram os superiores. Até aí, nada muito diferente do que vivemos no Brasil.
Na lógica do sistema de castas existem quatro grandes grupos. O primeiro, os brahmanes. Eles se encarregam da educação, tanto religiosa como de outros saberes. É a casta superior, que detém o conhecimento. Depois vêm os kshatriyas. São funcionários públicos, administradores e defensores do povo. A terceira casta é a do vaishyas, os que trabalham na indústria, no comércio e na prestação de serviços. Por fim, o sudras, que existem para servir às outras castas. São os faxineiros e servidores em geral.
Há ainda uma quinta classificação, que é “extracasta”, os dalits, para nós ocidentais, os intocáveis. Aqueles que os membros de outras castas evitam qualquer contato. Em outros tempos tinham de carregar algum objeto sonoro para fazer notar sua presença. Para que pessoas de castas superiores pudessem se esconder, já que até a sombra de um dalit ou mesmo de um sudra era algo contaminável.
Eles trabalham com todo tipo de dejeto, principalmente lixo. Vivem em cantos isolados, em meio ao que há de mais degradante do ponto de vista da miséria. Cerca de 62% de sua população é analfabeta, enquanto nas demais castas a cifra não ultrapassa os 48%. Metade das crianças dalits abandona a escola no nível primário e somente 0,6% dos professores indianos possuem esta origem. Mais de 45% dos dalits trabalham na agricultura, mas nem 15% destes possuem terra. Menos de 31% deles têm eletricidade em casa e mais de 50% vivem abaixo da linha de pobreza. Sem falar, por exemplo, que os casos de estupro entre as mulheres dalits são freqüentes que em apenas dois anos (de 1995 a 1997), aconteceram mais de 90 mil crimes contra membros dessa comunidade.
Por que aceitam essa condição sem grandes revoltas? Porque, na verdade, pagam o que fizeram na outra encarnação. Eles nasceram numa casta inferior por predestinação. Ou seja, esse é o kharma que têm de cumprir para atingirem algo melhor numa nova vida. A justificativa para a imobilidade social na Índia também se explica pelos textos sagrados. Manu, um famoso pensador hindu do século I, foi o primeiro a justificar essa situação:
“Para proteger esse universo, o ser resplandecente determinou deveres e ocupações diferentes para aqueles que nasceram de sua boca, braços, músculos e pés. Aos brahmanes destinou a vocação de ensinar e de ler o Veda (texto sagrado), oferecer sacrifícios para seu próprio benefício e dos outros. Aos kshatriyas ordenou proteger as pessoas, fazer doações, oferecer sacrifícios, estudar o Veda e se abster dos prazeres sexuais. Aos vaishya encomendou o cuidado do arrecadado, fazer doações, oferecer sacrifícios, estudar o Veda, fazer negócios, emprestar dinheiro e cultivar a terra. O senhor prescreveu somente uma ocupação aos sudras, a de servir mansamente às outras castas.”
A história de que a sociedade indiana é muito complexa e de que existem milhares de castas e subcastas é meia-verdade. De fato, o que vale é a existência dessas quatro grandes castas e dos fora-delas, os dalits. As outras são, na verdade, subcastas, criadas para que dentro da própria casta haja diferenciação. Ou então invencionices do tipo “castas dos limpadores de ouvidos” ou dos “trabalhadores de informática”.
Para se ter uma idéia, entre os brahmanes, os sacerdotes, aqueles que ministravam cultos em templos onde só podiam entrar os seus, eram de uma subcasta superior aos outros brahmanes que trabalhavam em contato com os sudras. E assim por diante, até chegar aos intocáveis, que trabalham com a podridão e cujos filhos estariam condenados a seguir o mesmo caminho.
Ghandi foi um dos homens que mais se indignou contra esse esquema. Hoje, ele ainda perdura, mas não é algo determinado pelo do Estado. Ao mesmo tempo é útil.
O sistema de castas deve ser derrotado pela lógica do capitalismo, que precisa alimentar o sonho de que todos podem galgar o paraíso ainda em vida. E isso de algum jeito já está começando. Quando um deles deixa seu pequeno vilarejo (existem 575 mil na Índia, onde vivem 75% da população) e ruma para a cidade grande, não é mais reconhecido como de uma ou outra casta. Torna-se mais um. O que pode até significar um momento de libertação. Mas o que não garante que se torne o caminho para uma vida melhor. Até porque, o neoliberalismo só tem piorado a vida daqueles que vivem no porão da sociedade indiana (leia entrevista abaixo).
rovai@revistaforum.com.br
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