O sistema econômico e o sistema climático globais interagem e não podem ser separados
por Sérgio Abranches
Há mais conexões entre a crise financeira global e a mudança climática do que aparece nos jornais, além do fato de ambas serem fenômenos sistêmicos e complexos. Não dá para eliminar todas as incertezas, nem antecipar todos os efeitos colaterais de nenhuma das duas. O sistema econômico e o sistema climático globais interagem continuamente, não podem ser separados.
Dou um exemplo pouco comentado na imprensa. As empresas seguradoras viram suas perdas com eventos naturais extremos, só nos Estados Unidos, subirem de menos de US$ 30 bilhões, na década de 1980, para US$ 100 bilhões, no decênio 1995-2005. De repente, são atingidas pelas crises imobiliária e financeira. Elas já haviam incorporado, em parte, critérios de avaliação do risco climático e de eventos naturais extremos. Mas, diante dos prejuízos, já consideravam seus modelos de risco superados. Sairão da crise com muitas seqüelas e uma nova concepção de risco, muito mais criteriosa e completa, na qual o risco climático, o risco de eventos naturais extremos, e o “risco carbono” terão peso muito maior que agora. O setor de seguros vai liderar a revisão dos modelos de risco, que passarão a incorporar não apenas critérios mais adequados de mensuração dos riscos financeiros, mas também o risco climático e ambiental. Essa revisão dos modelos de risco tornará os setores voltados para a mitigação dos gases de efeito estufa e, principalmente, as tecnologias, atividades e empresas de baixo carbono muito mais atraentes aos investidores. Também serão as que pagarão os menores prêmios de seguro.
Essas conexões sistêmicas vincularão, cada vez mais, as avaliações de investimento e a valorização de ações e empresas à mudança climática. Perderão valor aquelas atividades de alto carbono e as que estejam sujeitas aos efeitos da mudança climática, principalmente aquelas submetidas à alta probabilidade de danos por eventos climáticos extremos, chuva ácida, desertificação, elevação do nível das águas. As empresas e os setores de alto carbono terão sua rentabilidade futura ameaçada por regulações ambientais e climáticas mais duras, pela fuga de consumidores para produtos de baixo carbono e pelo risco de tributação mais pesada.
A crise financeira pode produzir dois efeitos de curto prazo nas emissões de carbono, um positivo e outro negativo. Deve haver queda nos investimentos em tecnologias verdes e energias renováveis. O mercado de carbono está caindo também. Mas a desaceleração econômica, provavelmente recessão global, reduzirá as emissões de carbono e os investimentos em atividades de alto carbono. É bem provável que os investimentos “verdes” sejam os menos prejudicados pela crise.
Em médio e longo prazo, porém, a reestruturação dos mercados financeiros, o novo marco regulatório que será desenhado para evitar crises desse tipo e os ganhos em coordenação global de políticas abrirão novos caminhos para um acordo global sobre mudança climática. A nova visão de risco sistêmico certamente terminará por incorporar o risco climático. A estrutura regulatória para o século 21, de que tanto falam Barak Obama, nos Estados Unidos, Gordon Brown e Nicolas Sarkozy, na Europa, terá de incorporar não apenas regulação econômica, comercial e financeira, mas também climática e ambiental.
É pouco provável que essa crise não altere profundamente as instituições da economia política global. E o mesmo processo que a criou, agravou a crise climática. A expansão exuberante das economias, que acabou nessa débâcle sistêmica das finanças, fez as emissões crescerem, a 3,5% ao ano, segundo o PNUMA. O pior cenário do IPCC previa 2,7% a.a. O sistema climático está dando sinais tão evidentes de crise quanto o sistema econômico. É provável que, na reconfiguração da economia global, no após-crise, se incorporem medidas para reduzir o ímpeto da crise climática. Apesar da oposição minoritária – que tende a ser derrotada – a União Européia manteve sua política de redução de emissões de carbono até 2050. Nos Estados Unidos também deve haver mudança na política climática.
O que está em discussão embrionária e se tornará o centro do diálogo entre os governos em algum momento no ano que chega é uma nova ordem econômica e financeira, com mecanismos mais eficazes de ação pública coordenada e governança global. É esse o arcabouço institucional que permitirá fechar um acordo climático capaz de mitigar as emissões de carbono, aumentar os esforços de adaptação à mudança climática e investir em tecnologias verdes e energias de baixo carbono. A concertação para enfrentar a crise sistêmica financeira criará momento e aprendizado para que avancemos na concertação pelo clima.
A crise, com toda a dor e o trauma que ainda produzirá, pode ser o verdadeiro ponto de ruptura a partir do onde a economia global será ajustada a uma gestão de menor risco especulativo e, progressivamente, a um padrão de baixo carbono.
Sérgio Abranches é mestre em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB); M.A. e Ph.D. em ciência política pela Cornell University. Diretor e colunista de O Eco (www.oeco.com.br); comentarista de ecopolítica da rádio CBN
texto de Scientific American Brasil
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