Octavio Ianni
Texto completo publicado na Revista Tempo Social
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702004000100009&lng=pt&nrm=iso
Professor-emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
O migrante pode ser visto como aquele que foge e busca, é tangido e extravia-se, ambiciona e frustra-se, resigna-se e realiza-se. São muitos os que se perdem na viagem, ficam pelo caminho, regressam e retornam. Parecem tangidos por uma força desconhecida, simultaneamente histórica e telúrica.
O migrante pode ser um e muitos, famílias e grupos, coletividades e povos. São viandantes de uma vasta e errática diáspora que se espalha pelas nações e continentes, com suas vozes e línguas, cores e coloridos, atividades e padecimentos, frustrações e alegrias. Podem realizar-se na primeira ou na última geração; ou malograr em todas. Estão metidos em situações e acontecimentos, guerras e convulsões sociais, lutas políticas e revoluções, carências e esperanças. Podem ser vistos como uma multidão em movimento, ao acaso de situações e acontecimentos, como que tocados pelos ventos.
O século XX tem sido um século de migrações, pelos quatro cantos do mundo, em todas as direções. São desempregados, desabrigados, refugiados, perseguidos, desamparados. São indivíduos e familiares, grupos e coletividades. São muitos, milhares, milhões. Movem-se em todas as direções, atravessando territórios e fronteiras, nações e continentes, culturas e tradições. São migrantes, emigrantes, imigrantes, retirantes, errantes. Parecem tangidos por algo imponderável e invisível, escondido nas condições de vida e de trabalho, no meio de guerras e revoluções, nos desastres ecológicos e nas epidemias, mesclando carências e esperanças.
Um dos aspectos mais notáveis das migrações em curso no século XX expressa o modo pelo qual se desenvolve a nova divisão transnacional do trabalho e da produção. Em sua grande maioria, os migrantes são ou transformam-se em trabalhadores em busca de emprego. Exercem as mais diversas atividades, em geral as menos qualificadas social e economicamente, conforme este ou aquele contexto social; situam-se como los de abajo, os "humilhados e ofendidos", membros das "classes perigosas", ameaça aos que já estão empregados e mais ainda aos já desempregados.
Esse é realmente um aspecto importante de boa parte dos movimentos migratórios em curso no século XX: são trabalhadores desempregados ou empregados em condições extremamente adversas, buscando outras e melhores colocações. Partem sozinhos, com seus familiares ou em grupos. Seguem estradas e viagens inauguradas por outros, ou abrem novas estradas. Deslocam-se para as mais diversas direções, a procura de lugares próximos, distantes, longínquos. Sempre em busca de emprego, isto é, sempre empenhados em vender sua força de trabalho, para comer, beber, vestir-se, abrigar-se, proteger a saúde, estudar, conquistar direitos políticos, civis e sociais; como indivíduos e famílias, coletividades e povos.
A decisão de partir, na esperança de poder realizar um projeto próprio de existência, seja nos confins da própria nação ou região, seja além do oceano, implica evidentemente processos de mobilidade geográfica, cultural, econômica, social e profissional que, no encontro e no desencontro de populações, assumem uma importância fundamental; sobretudo em sociedades caracterizadas por complexas e irresistíveis dinâmicas de intercâmbio, internacionalização e globalização, tais como se podem considerar as sociedades contemporâneas (Lazzari, 2000, p. 17).
Note-se que grande parte da vida do migrante se desenvolve na cidade, muitas vezes em grandes centros urbanos. Muitos saem do campo e de pequenas localidades, desde longínquos países, e dirigem-se para as cidades que parecem prósperas, promissoras. Aí encontram dificuldades e perspectivas, emprego e desemprego, pauperismo e lumpenização, êxito e emancipação. Alguns conseguem ascender socialmente, realizam-se, chegam a sentir-se vitoriosos. Outros, muitos, a grande maioria, dissolve-se no meio da multidão solitária.
A cidade torna-se o lugar privilegiado da contradição e do embrutecimento, na pobreza e na miséria sem esperança; da estabilidade precária e da persistente imobilidade social, quando não de um ulterior descenso ao inferno da miséria (Idem, p. 33).
Simultaneamente, nesse emaranhado de situações e acontecimentos, de par em par com as migrações e as errâncias, desenvolve-se um novo ciclo de racialização do mundo, envolvendo as formas de sociabilidade, as condições de vida e de trabalho, os jogos das forças sociais; tudo isso concretizado na fábrica e no escritório, sindicato e partido, escola e igreja. Essa é uma implicação sempre presente e ativa nos processos migratórios: criam-se e explicitam-se tensões étnicas, lingüísticas e religiosas. A xenofobia, o etnicismo, o racismo e o fundamentalismo emergem ou ressurgem em situações sociais nas quais o migrante aparece como "diferente", "estrangeiro", "exótico", "outro". Simultaneamente à acomodação, à integração e à participação em curso nos locais de trabalho e de convívio social, emergem e ressurgem tensões e conflitos. Uma parte do "neo-nazismo" de que se fala em diversas nações pode ser visto como "produto" da racialização em curso no fim do século XX e início do XXI. Permeando a luta pelo emprego, o crescimento do desemprego conjuntural e estrutural, a busca de residência, escola, saúde e outras condições básicas de vida, emergem e ressurgem idiossincrasias raciais de todos os tipos; são xenofobias, etnicismos, racismos e fundamentalismos que se exacerbam, nascem ou renascem em várias das sociedades do "primeiro, ex-segundo e terceiro mundos". Em pouco tempo as nações que haviam lutado contra o nazifascismo descobrem e redescobrem que também contêm intolerâncias e fundamentalismos desse mesmo cunho.
Cabe reconhecer, no entanto, que a multidão de migrantes que se espalha pelo mundo envolve um vasto processo de transculturação. São muitas as culturas que se encontram, acomodam, sofrem tensões, negam e recriam. Recriam-se geralmente em outros e novos termos. São intercâmbios de valores e instituições, formas de sociabilidade e ideais, línguas e religiões; além de mestiçagens ou hibridações. Assim se multiplicam as formas e as práticas culturais, as histórias e as tradições, as alteridades e as diversidades. Assim se multiplicam as pluralidades socioculturais, compreendendo as práticas e as criações de indivíduos e coletividades. Encontram-se, cruzam-se, reafirmam-se e transformam-se as muitas "identidades", de tal maneira que o ocidentalismo e o orientalismo, assim como o indigenismo e o africanismo, mudam de figura, redefinindo-se em outros termos, em diferentes significações.
Na complexa teia das suas relações sociais, os transmigrantes organizam e criam múltiplas e fluidas identidades, buscadas simultaneamente em sua sociedade de origem e nas adotivas. Enquanto alguns migrantes identificam-se mais com uma sociedade do que com outra, a maioria parece desenvolver várias identidades, relacionando-se simultaneamente com mais de uma nação. Ao manter muitas e diferentes identidades raciais, nacionais e étnicas, os transmigrantes tornam-se aptos a expressar as suas resistências às situações econômicas e políticas globais que os envolvem, bem como para se ajustarem às condições de vida marcadas pela vulnerabilidade e a insegurança. Estes migrantes expressam essa resistência em pequenos gestos, em práticas cotidianas, que habitualmente não desafiam ou nem mesmo reconhecem as premissas básicas dos sistemas que os envolvem e ditam as condições da sua existência. Como os transmigrantes vivem simultaneamente em diversas sociedades, suas ações e crenças contribuem para a contínua e múltipla diferenciação. A crioulização [...] não é somente o produto de uma acentuada distribuição mundial de sistemas [de referência], mas também o produto dessa dinâmica envolvida na migração e na diferenciação [...]. Na economia globalizada desenvolvida ao longo das últimas décadas, há uma convicção de que nenhum lugar é verdadeiramente seguro, embora o indivíduo tenha acesso a muitos lugares. Uma forma de os migrantes manterem suas opções abertas é transladarem-se continuamente, de uma posição econômica e social conquistada em um ambiente político para outra posição política, social e econômica em outro ambiente (Schiller et al., 1992, pp. 11-12).
No contexto das migrações transnacionais, tanto se desenvolvem as intolerâncias como as acomodações, o neo-nazismo ou o nazifascismo como a transculturação, as identidades e as alteridades, os fundamentalismos e os cosmopolitismos. Esse também o contexto em que se desenvolve o debate sobre o multiculturalismo. Em pouco tempo, nas últimas décadas do século XX, são muitos os que se engajam em controvérsias, práticas e elaborações teóricas sobre o multiculturalismo. É como se o étnico, o racial e o gênero, sem esquecer gerações, logo se revelassem categorias fundamentais da organização e da dinâmica da sociedade, em âmbito nacional e mundial. São categorias com as quais se passa a descrever e a explicar grande parte da realidade social. O debate sobre multiculturalismo, envolvendo etnicismo e sexismo, logo se torna não só relevante, mas predominante. Em larga medida, o que está em causa é a liberação, a conquista de identidades individuais e coletivas, a afirmação de alteridades e diversidades. No limite, está em causa o indivíduo, a individuação, o individualismo, tomados como condição e afirmação de cidadania. Pouco ou nada se diz da história e da dinâmica da sociedade, do jogo das forças sociais, das hierarquias e contradições de classes, da "fábrica" de intolerâncias e autoritarismos.
Todo migrante define-se pela viagem, como refugiado, retirante, indocumentado, legal, clandestino, esperado, expulso, radicado, errante. Ainda que esteja localizado, enraizado ou integrado, ainda guarda em si algo do viajante, de quem está em trânsito, literal ou metaforicamente. Mesmo aquele que nunca saiu do seu lugar, que está enraizado por gerações, mesmo esse, no contraponto com o migrante recente ou antigo, sente-se desafiado pela viagem do outro. Esse é um estado de espírito que perpassa a percepção e a atividade, o modo de ser e a subjetividade de uns e de outros. Aquele que vai e aquele que fica, o que chegou e o que estava, todos sentem-se em viagem, real ou imaginária, literal ou metafórica, presente ou pretérita; vagando no futuro (cf. Ianni, 1972).
É nesse clima que o migrante desenvolve várias e muitas possibilidades de agir, pensar e sentir, ser e devir. Desenvolve perspectivas plurais, múltiplas, polifônicas. Pensa-se em movimento, sente-se em diferentes situações, padece distintas injunções, defronta-se com diversas e prementes carências. Simultaneamente, percebe o singular e o plural, a vivência e a perspectiva, o ser e o devir.
Nesse sentido é que o migrante tende a desenvolver uma percepção de "si" e do "outro", do "nós" e dos "outros", que pode ser uma percepção diversificada, plural, múltipla. A condição de migrante é, simultaneamente, a de quem está aqui e lá, em duas ou mais situações, perspectivas, modos de ser. Pode desenvolver certa eqüidistância, visualizar criticamente a sociedade adotiva e a originária, colocar-se em condição de "marginal". É desafiado a pensar-se e a sentir-se no contraponto do "eu" e do "outro", "nós" e "eles", nativo e estrangeiro, como em um jogo complexo de espelhos reflexos. Daí a possibilidade de uma autoconsciência sui generis, na qual se combinam o singular e o plural, a identidade e a alteridade, a integração e o antagonismo, a acomodação e a transformação (cf. Stonequist, 1948).
São diversos os grupos étnicos que se definem pela condição essencial de migrante. Povoam muitos lugares no mapa do mundo. Como o "árabe" em países da Europa, da África, da Ásia e das Américas; ou o "oriental", seja ele japonês, coreano, chinês, hindu ou outro, em países da Europa, da África e das Américas; ou o "negro", originário da vasta e longa diáspora provocada pela escravatura moderna, vivendo por gerações sucessivas em países das Américas. A despeito da abolição do regime de trabalho escravo, da sucessão de gerações, das mestiçagens de todos os tipos, de algumas conquistas sociais, os negros das Américas continuam a definir-se como indivíduos e coletividades em viagem, tangidos desde longe, em busca de raízes. Daí a autoconsciência plural, capaz de apreender a perspectiva múltipla, emaranhada.
Esta é a lição dessa história: na sociedade mundial, assim como na sociedade nacional, o migrante continua a ser tangido por situações e acontecimentos, como que fustigado pelos ventos. Pode ser apenas um, solitário, retirante, perseguido, ambicioso, viandante; mas podem ser muitos, milhares, milhões, afetados por desastres ecológicos e epidemias, guerras e revoluções, xenofobias e etnicismos, racismos e fundamentalismos, em busca de trabalho, refúgio, raízes, paz. Continuam a percorrer territórios e fronteiras, continentes, ilhas e arquipélagos, levando pelos caminhos as marcas dos próprios passos, desenhando no mapa do mundo os sinais de suas errâncias.
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