Por Juliana Di Thomazo
Ainda não amanheceu e milhares de homens e mulheres se aglomeram nos ghats, as famosas escadarias que cercam o rio Ganges, ou Ganga, como preferem os indianos. Ali, nessa parte onde corta a mais antiga cidade da Índia, Varanasi, quase tudo tem um toque sagrado. Os milhares de homens e mulheres parecem se preparar para um banho, mas um olhar mais apurado evidencia não se tratar de algo comum. A intensidade e repetição dos movimentos, além dos apetrechos utilizados, denotam a diferença. Trata-se de um ritual de purificação. Está escrito nos textos sagrados. Aqueles que o praticam livram-se das impurezas, que não devem ser confundidas com pecado, pois elas podem acometê-los a qualquer momento e independem dos seus atos e vontades.
A alguns metros dos ghats, na mesma margem, uma fumaça branca chama a atenção. Durante todo o dia são cremadas centenas de pessoas que depois têm suas cinzas atiradas como presente ao Ganga. Segundo a crença antiga, essa é uma forma de se libertar do samsara, uma necessidade da alma que deve voltar para liquidar o saldo em um ciclo de existências sucessivas. O mais antigo e importante documento da literatura indiana, um dos quatro livros dos Vedas – Rig Veda – é repleto de formas de rituais e ritos. Entre eles, é possível encontrar o do funeral. A cremação é o mais habitual dos funerais. Ela é precedida por um cortejo fúnebre de parentes homens que transportam o defunto envolvido por um pano e cercado de flores. A cor do pano corresponde ao sexo. Em homens, usa-se o branco, nas mulheres, vermelho. Antes da incineração, os presentes dançam e cantam para libertar o espírito de todos os demônios.
Ganesha pertence à família dos deuses mais populares do Hinduísmo. Ele é o primogênito de Shiva e Parvati. Shiva é a terceira pessoa da trindade hindu.
Para aqueles que não conquistaram a libertação, a morte é apenas um desaparecimento momentâneo. Já os que conseguem se libertar têm o caminho dos deuses. A fogueira é acesa. Para os santos ou pessoas de castas superiores a madeira usada é mais cara, o sândalo. Também para esses, fica reservado o melhor e mais alto espaço do crematório artesanal à beira do Ganga. O crematório elétrico, que fica bem ao lado, dá conta dos cadáveres menos abastados, cuja família não pode pagar os 110 dólares mínimos pelo ritual artesanal.
Choque ocidental A poucos passos dali um cão remexe um pedaço de carne.
– O que ele está comendo?
– O pedaço de um corpo que o Ganga devolveu, responde um guia local.
Sem muita cerimônia ele acrescenta: “é o ciclo natural da vida”. Após a cremação, alguns membros do corpo que não se tornaram cinzas são atirados ao Ganga. Atiradas ao rio também são as crianças e vítimas de doenças contagiosas, como a lepra. Isso porque se crê que eles não cumpriram o ciclo da vida, por seus corpos terem sido invadidos por espíritos malignos que não devem ser desafiados.
Esses corpos são amarrados numa pedra e jogados no rio. Evidentemente se desprendem, sobem e se tornam alimento de urubus, cães e outros bichos. O curioso é que, com tudo isso, o Ganga, incluindo os corpos queimando em fogueiras que mais parecem as montadas nas festas de São João, não exala odor forte. E isso acaba servindo de justificativa para os guias locais defenderem que o rio é limpo e que não há problema algum em se banhar nele ou mesmo beber de sua água.
Como em qualquer outra religião ocidental, o inexplicável se responde através da fé. Mas o que parece mais diferenciar o hinduísmo das religiões ocidentais é o fato de estar presente em quase todos os aspectos da vida cotidiana e extrapolar completamente os espaços sagrados. Do vestuário e alimentação à forma de organização social e política, não há o que não tenha seu toque.
Basta entrar em uma residência hindu. Elas são como um templo. O ritual se inicia na porta, onde devem ser deixados os sapatos, que por tocarem as ruas são considerados impuros. Principalmente se forem de couro, já que foram produzido a partir de um animal morto. Dali pra dentro, as manifestações continuam. Nas paredes e cantos da casa há diversas formas de homenagem aos deuses preferidos dos moradores. Elas se dão através de altares, calendários com imagens e até de adesivos. Incenso, lamparina com azeite e flores são alguns dos objetos colocados ao lado das imagens.
A vaca sagrada A religiosidade também se manifesta na cozinha. O povo hindu é majoritariamente vegetariano. Acredita-se que os animais são seres sagrados e, portanto, não podem ser mortos. Entre eles e os homens existe apenas uma diferença no grau de evolução. Dentre os animais, a vaca é o destaque. Sua sacralização é algo que muito intriga os ocidentais.
Há três mil anos, elas eram tratadas como qualquer outro animal. Serviam para dar leite e também carne, e eram até sacrificadas e depois oferecidas aos deuses. Mas os sábios daquele tempo chegaram à conclusão de que o animal, importantíssimo para a sobrevivência, caminhava para a extinção e então a sacralizaram como mãe e deusa. Hoje ela desfila tranqüilamente pelas ruas de grandes metrópoles, como Mumbai.
Tudo o que vem da vaca também é sacralizado. O leite é usado em muitos alimentos e o esterco serve para purificar as casas. Durante muito tempo matar uma vaca era considerado crime mais grave do que matar alguém nascido em uma casta inferior, como um sudra ou dalit.
Com toda a opressão que existe contra os indivíduos de classes mais desfavorecidas, a Índia é um país pacífico. Até porque, entre os caminhos propostos pelo hinduísmo, o da não-violência é o que mais se destaca. E isso resiste mesmo em meio a enorme miséria do país. É verdade que a distribuição de renda na Índia é melhor do que no Brasil, o que pode ser uma explicação. Mas o desprendimento material, pregado pelos livros sagrados hindus, é o principal motivo.
Entre outras coisas, os textos sagrados dizem que nenhum ser é submetido a provações maiores que sua força e que a condição em que cada homem foi colocado na terra se refere ao seu dever ou dharma que, por mais duro que seja, deve ser cumprido. Essa é a noção que fundamenta o hinduísmo ou o Sanatana Dharma como preferem seus seguidores. O dharma universal é a ordem cósmica, o suporte dos seres e de todas as coisas. Mas ele é ao mesmo tempo um “dever individual”. Aquele que se afasta do seu dharma renascerá em uma condição pior. O que se faz em vida, seus atos e pensamentos, produzem o kharma de cada ser. O corpo nasce e morre inúmeras vezes até que seja “liquidado o seu saldo”, o kharma.
Mas, de qualquer forma, é preciso considerar, como lembra Fernando Altemeyer Júnior, professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, que conformismo diante da injustiça não é exclusividade da Índia: “No Brasil, parte da população miserável se acha culpada por sua miséria”.
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