sábado, 7 de fevereiro de 2009

Corrupção: o avesso da cidadania


Autor: Léo Rosa de Andrade
A corrupção tem se revelado como um fenômeno mundial, mas, no Brasil, seus patamares são desproporcionais, bem mais dimensionados, inclusive, do que vem sendo descoberto e trazido a público. A sua ocorrência tampouco é esporádica ou localizada, mas um mecanismo de enriquecimento que se faz presente em toda a história econômica, política e social da nação. É uma estrutura estabelecida que perpassa todos os níveis das re¬lações de poder no país. Os tantos escândalos são só uma espécie festiva de execração dos “descobertos”.
Entre os “lesados”, há expressivo senso comum em torno da inferência de que a sociedade brasileira está tomada por corruptos. Uma outra con¬clusão tem obtido, do mesmo modo, uniformidade: “corruptos são os outros”. Mas o que “os outros” têm feito para serem con¬siderados corruptos? Qual é a tecedura da sociedade em que medram, com tamanha impudência, seus condenáveis procedi¬mentos? Por que seus cidadãos não se articulam contra ações, ou, mais, contra os próprios, permanecendo sem um engendramento conseqüente, objetivando alguma reação con¬creta que seja algo mais do que dizeres descompromissados?
Por fim, interrogação capital – quem são “os outros”? Não obstante ser difícil identificar personagens e comprometimentos, pode-se afirmar que a corrupção é hábito bastante difuso, res¬tando poucos sem alguma dimensão de responsabilidade no execrado quadro vigente.
Há diversas categorias que são desenvolvidas para as práticas corruptas. Do jeitinho dado, que seria uma forma “inocente”, às dimensões mais graves (o título XI do Código Penal elenca os crimes contra a administração pública), os resultados vantajosos de tais “costumes”, todavia, não têm restado muito “democrati¬zados”. Há uma resignada ciência de que o desenrolar dos acon¬tecimentos só deu “jeito” para os “outros”. Os não incluídos, pen¬sando em obter seu quinhão, dispõem-se a fazer qualquer negó¬cio – ética de ladino –, ainda que, também, escuso. Outra parte, por inoportunidade, ou por opção, posando de honesta, não participa “disto”, mas, também, “não tem nada a ver com isto”. Por justificativas funda¬das nas mais diversas “explicações” das circunstâncias, todas denunciando exclusão das práticas de cidadania, acaba acanha¬do o número dos que não simplificam a questão, ou criam licen¬ças morais para a inércia.
De qualquer forma, a história recente da República, excessivamente escrita nas má-notícias de jornais, causando espécie, tem sido uma denún¬cia envergonhada, contudo desmascaradora desse estado de coi¬sas. De fato, o problema, posto na “boca do povo”, vem interpe¬lando a cada um, mesmo os minimamente preocupados com a coisa pública, tal é o grau de proximidade em que todos se en¬contram de seus desdobramentos, neles levando vantagens ou deles sofrendo conseqüências.
Esta presença difusa de formas corruptas na essência da arti¬culação da sociedade brasileira é uma concorrida e muito admi¬nistrada fonte de poder e modo de geração de fortunas pessoais e de grupos econômicos e políticos, que, está claro, tem sua his¬tória.
Ainda que estejam longe os quinhentos anos que dis¬tanciam no tempo o episódio do Descobrimento, a forma como se constituía o Estado e se exercia o governo português, que de¬terminaria o modo de colonizar o Brasil, centralizado, corrupto e despótico, gerou procedimentos que respingam influência sobre os dias contemporâneos.
O aparato administrativo luso pôs-se estabelecido no Brasil antes de qualquer articulação de sociedade civil. E todo o cuida¬do na organização da Colônia buscava, tão somente, atender aos interesses fiscais da Coroa, que necessitava de recursos, para sustentar seu fausto, em face do que uma razoável burocracia fazia expressão de corpo de Estado. A vida privada, por sua vez, era decorrência do processo de colonização adotado. Era autori¬tária, com o latifundiário gerando e mantendo subordinação, seja nas casas de fazenda, seja nas cidades, que eram meros pontos de intercâmbio de interesses dos senhores de terra.
A sujeição, desse modo, compunha, já de então, o cotidiano, por decorrência de subalternação ao espetaculador burocrata do governo português, ou ao ganancioso senhor de terras priva¬do. Eram, ambos, déspotas que poderiam ser dissidentes em face de conflitos por hegemonia ou fiscais, nunca por pretenderem esta¬do de coisas diverso do existente.

Tal condição de dependência dos senhores que governavam, ou dos senhores que eram proprietários acentua-se a partir do século XVIII, sem sofrer qualquer oposição que marcasse presen¬ça e, muito menos, condição. Se houvesse contra¬posição aos potentados rurais, seria dos comerciantes, que arma¬zenavam alguns recursos materiais. E sucederam conflitos, mas tão só porque os senhores do comércio queriam ser admitidos nas Câmaras, espécie de pequenas cortes. Não estão anotadas, se ocorreram, relutâncias da socieda¬de.
Está claro que tais condições sociais de viver não permitiam qualquer construção de instrumentos organizativos que se des¬dobrassem em resultados democráticos. Sobre todo o território estava posta a soberania de Portugal, que cedia partes a prepostos seus. Ou seja, todo o espaço em que se poderia organizar politi¬camente a nação era privado, no sentido de pertencer a pro¬prietários que estavam cientes e ciosos de seus interesses, e esses interesses recomendavam a manutenção, no erigir do Estado bra¬sileiro, das formas de exclusão. Era um lugar, o Brasil, em que absolutamente nada era possível sem as devidas licenças, e isto fincou e criou condições de reprodução de formas de dependên¬cia com conseqüências extremamente marcantes e duradouras.
Com o passar dos anos de colônia, monarquia, ou repúbli¬ca, a história foi-se realizando com os donos do poder estabele¬cendo as regras do jogo político sempre buscando a permanên¬cia deste estado de coisas. Regras interesseiras, condições violentas. Isto nos legou uma administração pública centralizada. A ela, desde sempre, o acesso foi via um intermediário vinculado a algum “funcionário”, ou “político” bem colocado nos meandros do poder. As cunhas de interesses dos donos particulares do público.
Mais recentemente, com o agigantamento da burocracia esta¬tal, e, principalmente, com a articulação dos quadros a ela per¬tencentes, a estruturação do corporativismo, deu-se o que é amplamente denunciado como a “criação de dificuldades, para vender facilidades” – os carimbos e os escaninhos. Tratam-se de exigências de duvidosa neces¬sidade, complicadoras das formalidades, o que gera dependên¬cia de quem “entenda dos papéis”, saiba onde apresentá-los e faça com que eles “andem”. Um bem sucedido negócio nos balcões dos governos.
O sucesso desse solapamento reiterado da relação direta do cidadão – que resta, aliás, no desdobrar-se do enredo, desti¬tuído de tal qualidade com os organismos administrativos do Estado – determinou o surgimento de condições sociais propiciadoras da necessidade de intermediação (ou da intermediação como necessidade). Dadas tais condições, e por se viver uma situação de corrupção “de escala”, o negócio de “roubar” careceu de organização: articulou-se, como forma or¬dinária de fazer “comércio”, a eficiência das empresas com o saber/poder funcional da burocracia, tendo-se que as últimas garantem que tudo será muito complicado e as primeiras, algumas poucas, altamente “competentes”, sempre, aliás, do mundo dos poderosos, tratam de conseguir resultados mediante pro¬pinas.
Pode-se chegar à precipitada inferência de que estes modos capitalistas operaram a definitiva substituição dos tradicionais políticos e “caciques”, os quais sempre se fizeram indispensáveis na linha de frente dos saques ao erário da nação. Na verdade, todavia, ocorreu uma atualização dos modelos clientelísticos tra¬dicionais, dividindo-se funções, em face do que os empresários ganham fortunas, os funcionários ganham propinas e os políticos ganham “colaboração” para as eleições. Os que remune¬ram tais serviços, fazem-no com uma parcela menor do tanto que levantam, dos saques ao erário público. A grandeza e a complexidade atingidas não dizem senão que boa parcela da sociedade compactua com o que ocorre. Favores miúdos e grandes falcatruas estão neste círculo vicioso; até espe¬ranças de entrar na ciranda alimentam-no. Está vigorando uma espécie de ética de resultados. Interessam tão só as vantagens, por quaisquer preços.
Sem dúvida, há diversos tamanhos de corrupção, e elas se materializam pelos mais variados modos, determinando respon¬sabilidades mais ou menos graves. Mas, da relação resulta, sem¬pre, um atrelamento recíproco de partes, gerando compromis¬sos que se desdobram e se transformam em maneira aceita e praticada de demandar e obter vantagens, passando a assumir poder quem consegue instalar-se, ou instalar prepostos em fun¬ções-chaves, nos encrusos da burocracia. O Estado brasileiro é privatizado, ele pertence a certas elites. Algo nisso infunde extrema preocupação. Esses personagens que habitam as circunjacências do poder de praxe se vêem legi¬timados, a si e ao seu deplorável fazer, em eleições nas quais vo¬tantes, em sua maioria não cidadãos na acepção cívica do ter¬mo, sufragam os que nomeiam, ou negociam nomeações, e en¬tão se reiniciam as proteções abusivas, o que sustenta as possibi¬lidades de reprodução de um estado de coisas pelo qual nin¬guém assume responsabilidade, do qual todos negam participar.
Tanta traficância, especialmente a abrangência do que é trafi¬cado, permite deduzir que práticas de corrupção, apesar de tão largamente difundidas, não são um traço cultural, tão somente, mas um modo específico de relação política, já que são exatamente por elas que circulam as relações concretas de interesse e se expressa o poder.
Esta compreensão, está claro, não acata como solução os dis¬cursos salvadores. As promessas que vendem epílogos fáceis, es¬pantosamente sempre convencendo, abrigam a permanência do problema. Ao invés deste convite à alienação da responsabilida¬de cívica, deve-se pautar pela reconstrução de atitudes que ne¬guem o sistema, que não o reconheçam como modo de fazer transitar interesses. Quem sabe haja condições de se aprender com as circunstâncias. O incômodo será o ter que arcar com o custo do exer¬cício da cidadania. A alternativa, confortável, é a explícita corrupção que inter¬pela as consciências.
As campanhas eleitorais, lugar ocasional de busca de legitimação para o exercício da autoridade pública, têm-se su¬portado em alguns temas que os momentos oportunizam e em outros que são recorrentes. Dentre os de apelo permanente encontra-se o discurso contra a corrupção. Elocubram-se artifi¬ciosas fórmulas de combate, ou simplesmente faz-se bravata. As alquimias não acabaram com a corrupção. Os cárceres não têm abrigado corruptos. Ademais, os que poderiam julgar e condenar não têm, como todo o mundo do poder, credibilidade; antes frequentam, em bom número, com desenvoltura, as páginas policiais. Aliás, o que brotaria do Judiciário se a imprensa lhe plantasse os olhos, perscrutando-o tanto como o faz com o Executivo e o Legislativo?
Talvez um ou outro exemplo contrarie as afirmações, mas nada que ponha em risco as estruturas mais sólidas de tal vício. É que a corrupção, no Brasil, é um sistema, um elaborado sistema de relações de poder. Ele é difuso, parcelas enormes da sociedade têm interesses transitando por seus meandros; move fortunas, sendo fonte de enriquecimento de alguns poucos, mas modo de “arranjar” alguma coisa na vida para muitos. Coisas menores, que satisfa¬zem necessidades prementes, as quais, para os que se devem con¬tentar com elas, são, contudo, realmente, solução.
Por estas razões, não se porá fim a um processo tão estruturado verticalmente e tão difundido horizontalmente com meras expres¬sões verbais de vontade. Ao contrário disso, algum caminho que conduza para possível solução passa, necessariamente, pela idéia de República e de Cidadania. República no sentido mais profundo de organização do Estado como lugar da coisa pública, campo político-institucional no qual haja a certeza de equiparação das unidades constituintes do todo, o Cidadão. Cidadania como qua¬lidade do indivíduo politicamente responsável que tem, primei¬ro, condições pessoais adquiridas no preocupar-se com seu mun¬do concreto, vivendo o cotidiano, mas ciente da história do seu tempo, porque exercita-se no pensar sobre ele, no querer sabê¬-la, e, segundo, vontade objetiva de participar da organização po¬lítica do espaço social no qual vive, tendo alcançado que não há saída individual, que a honestidade pessoal como postura asséptica é inútil, vulgar moralismo pequeno burguês.
Revista Política Democrática

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