segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Sem desperdício, Brasil pode ser líder da água*


Sem desperdício, Brasil pode ser líder da água*

José Alberto Gonçalves entrevista o geólogo Aldo Rebouças
Em entrevista exclusiva, o geólogo Aldo Rebouças, uma das maiores autoridades em recursos hídricos no País, diz que é mais importante saber usar os recursos hídricos do que ostentar a abundância de água. Ele denuncia a resistência de grandes proprietários e governos aos comitês de bacia.

Uma das maiores autoridades em recursos hídricos no Brasil, o cearense Aldo Rebouças, 65 anos, geólogo e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA), da Universidade de São Paulo, diz que é mais importante saber usar a água do que ostentar a abundância do líquido, em uma clara advertência ao Brasil, que detém a maior descarga de água doce do mundo - 183 mil metros cúbicos/segundo.

A guerra iminente dos Estados Unidos contra o Iraque o fez desistir de sua viagem a Quioto, no Japão, onde aconteceu o 3º Fórum Mundial da Água. "Por que eu vou correr o risco de ser pego por uma bomba pelo ar?", diz o bem-humorado Rebouças, um dos coordenadores da monumental obra de 704 páginas Águas Doces no Brasil, que teve sua segunda edição, revista e ampliada, lançada em 2002 pela Escrituras Editora.

Docente aposentado do Instituto de Geociências da USP, Rebouças concedeu esta entrevista exclusiva à Agência Carta Maior em sua residência, no bairro do Butantã, em São Paulo.

Carta Maior - A nova política de recursos hídricos, advinda da Lei Federal 9.433, de 1997, está respondendo com rapidez e eficácia ao problema do mau gerenciamento?
Aldo Rebouças - Não, por conta de nossa tradição de responder à escassez com aumento de oferta, sem gerenciar. O mundo está mostrando hoje que é mais importante saber usar a água do que ostentar abundância. Buscam-se obras extraordinárias para combater o problema da água. Um exemplo é o que acontece com os planos estaduais de recursos hídricos, que na realidade são mais um plano de obras. O Ceará, por exemplo, tem como plano estadual de recursos hídricos um projeto de integração de açudes que foram construídos de forma aleatória, sem qualquer critério hidrológico. Deveriam buscar uso para esses açudes mal concebidos e evitar esse processo de obras.

CM - A instalação dos comitês de bacia não tinha como objetivo trabalhar essa questão do gerenciamento?
AR - Exatamente. O comitê de bacia é uma excrescência na nossa estrutura jurídica, porque vai ser um comitê político, um parlamento das águas que vai tirar o poder do grande proprietário ou do governador, que decidiam o que se ia fazer em seus rios. Aí eles acabam não montando os comitês ou, quando montam, tiram o poder dessa instância. Nos Estados do Brasil acima do Rio de Janeiro, é proibido falar em comitê de bacia porque é uma perda de poder político dos coronéis.

CM - Os racionamentos de água não contribuem para que a sociedade e o Estado tomem consciência da importância de preservar os recursos hídricos?
AR - Eles enfocam o racionamento como uma falta de água para fornecer ao cliente, não como o mau uso. Falta informar a população. Fizemos um projeto chamado Pura (Programa de Uso Racional da Água), realizado na Grande São Paulo em convênio entre a Cia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo - Sabesp e a USP. Verificou-se que 70% a 80% da água da USP era perdida. Não havia nem medidor da entrada de água, que se perdia em vazamentos. Hoje, a taxa de perda total de água no Brasil varia entre 40% e 60%.

CM - O senhor é favorável à garantia de uma cota mínima de água à população?
AR - Deve haver a cota mínima, sem cobrança, considerando o direito que a pessoa teria à coleta e ao tratamento de esgoto. Essa cota diária deveria ser de 100 litros por habitante e não de 50 litros, como pleiteavam algumas ONGs no fórum de Quioto. Acima desse volume, a água seria cobrada quando tivesse um fim econômico.

CM - Como o senhor vê o problema da água no semi-árido nordestino?
AR - O nosso semi-árido não tem nada de semi-árido. O que tem é falta de vergonha. Chuva não falta no Nordeste. O que falta é uso adequado da água. O problema do Nordeste é que lá evapora muito. Por isso, a região precisa ser eficiente, instalando cisternas, construindo barragens subterrâneas, todos os métodos que o mundo usa hoje para a conservação dos recursos hídricos.

CM - É mais barato construir cisternas do que açudes?
AR - Muito mais barato. Uma cisterna de 15 metros cúbicos custa cerca de R$ 300,00 e pode ser utilizada por uma família de quatro a cinco pessoas durante todo o ano. Pode consumir água em casa e ainda instalar uma pequena irrigação para agricultura e dar de beber a animais.

CM - O senhor fez críticas ao Fome Zero, argumentando que seria mais adequado começar o trabalho pelo Sede Zero.
AR - Sem água não se vive dois dias. Sem alimento, você pode viver um mês. E o homem com dor de barriga não trabalha. Sem saneamento básico, não tem condição de trabalhar. Ele precisa ter saúde para desenvolver a ação e buscar o alimento.

CM - Havia uma proposta de o Fome Zero vincular a concessão do cartão-alimentação a trabalhos como a construção de cisternas. A idéia não é boa?
AR - É boa, mas tem sido tratada de improviso. Uma barragem subterrânea pode ser feita em um ou dois dias, com quatro a cinco pessoas trabalhando em mutirão. E é barato. Em Pernambuco, fizeram um teste em que o custo varia de R$ 400,00 a R$ 1 mil com capacidade para irrigar de quatro a cinco hectares. O Fome Zero, sem fazer essas coisas, se torna uma esmola.

CM - A briga pela transposição das águas do Rio São Francisco é uma questão da Bahia ou reflete interesses de grupos econômicos?
AR - É uma briga de empreiteiras. Há uma idéia de transpor águas do Rio Tocantins para o São Francisco para acalmar os baianos. É uma estupidez. E tinha a idéia de jogar água do São Francisco para o Jaguaribe, no Ceará. Aí a Bahia não quer. É uma opção errônea porque a água que você leva do Tocantins vai evaporar. Poderia se transportar o excedente de energia elétrica produzida no Tocantins. No caso do Jaguaribe, vão levar 70 metros cúbicos por segundo que não valem nada, nem pagam a conta das perdas por evaporação no trajeto. Hoje, somente na barragem de Sobradinho, no São Francisco, evaporam 500 metros cúbicos por segundo, mais que toda a vazão do Rio Colorado (400 metros cúbicos), que é a base da economia da Califórnia e do Centro-Oeste dos Estados Unidos. Há 30 bilhões de metros cúbicos de água estocados em açudes nordestinos sem uso. Embora mal planejados, os açudes poderiam ser utilizados localmente, em vez de se construir extensos canais.

CM - Há uma estimativa da Agência Nacional de Águas - ANA de que há cerca de 30 mil poços artesianos perfurados no Estado de São Paulo. Destes, apenas 10 mil são conhecidos oficialmente. Isso depaupera os recursos?
AR - Pela minha estimativa, há 50 mil poços artesianos no Estado de São Paulo. Deste total, estima-se que haja sete mil operando na Grande São Paulo. Das indústrias da região metropolitana, 95% usam poço. Hotéis de luxo, hospitais e grandes condomínios classe A também utilizam poços, como forma de fugir dos racionamentos e aumentos de custos. A Sabesp está começando a inventariar esses poços para colocar medidor de vazão, porque as pessoas não pagam as contas de água. Pouco mais de mil poços já têm medidores. Mas ainda é muito pouco.

CM - Isso contraria a legislação de recursos hídricos?
AR - É um crime ambiental cometido pela sociedade de alta renda. 78% dos municípios de São Paulo são abastecidos por poços, o que seria positivo se fossem inseridos no sistema de gerenciamento de recursos hídricos. Sem gerenciamento, os poços provocam redução nos níveis de água das barragens, dos pantanais e das lagoas naturais, e geram problemas geotécnicos de afundamento, como ocorreu em Cajamar, na Grande São Paulo.

CM - O senhor fala que o Brasil aproveita pouco suas águas subterrâneas. Então, por que o senhor critica a expansão dos poços artesianos?
AR - O país aproveita pouco suas águas subterrâneas e de forma muito desordenada. Ninguém sabe o quanto aproveita. Do jeito que os poços estão sendo abertos, é melhor que não fosse feito. É preciso distinguir um poço de um buraco de onde se extrai água, da mesma forma que distinguimos uma incisão cirúrgica de uma facada. Um poço tem que ser uma incisão cirúrgica feita com ordem, tecnologia, e não uma facada.

CM - Também há exploração descontrolada de água mineral em algumas regiões do país. Como o senhor avalia o sistema de controle dessa atividade?
AR - Tem uma regulação muito rígida, porém ninguém cumpre. Estão ocorrendo retiradas violentas de água mineral por grandes empresas interessadas no negócio. E existe muita água "torneiral", que vem sendo vendida como mineral. O Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM deveria fiscalizar a atividade, mas eles têm uma visão muito econômica e fechada.

CM - O senhor acha que a ANA também deveria gerenciar a exploração de água mineral?
AR - Eles não podem assumir a água mineral, porque não têm competência para isso. Porém, precisam integrar essa gestão no seu sistema. Está muito compartimentado. Você não pode gerenciar uma bacia hidrográfica achando que está somente lidando com recursos hídricos. Tem que gerenciar os terrenos, a mata ciliar e a ocupação do solo.

CM - O senhor acredita que o Brasil pode ser um líder mundial no campo da água?
AR - O país tem muita água, produz muito alimento e vai ser um líder mundial se souber administrar o problema. Caso contrário, vai perder a oportunidade. Antes, os países eram classificados em função do petróleo, dos recursos minerais, naturais, mão-de-obra barata. Agora é em função da água. Não é ter muita água, é saber usar.

CM - Muitas Organizações Não Governamentais têm feito ataques severos à privatização dos serviços de água e esgoto. Em seu livro, o senhor diz que a privatização pode ser uma solução.
AR - Pode ser uma solução desde que haja uma parceria. Não adianta o governo pensar que privatizando resolve o problema. Tem havido muitos insucessos na privatização. Precisamos aprender com a experiência dos outros. Mas o Estado não tem dinheiro suficiente, nem eficiência para fazer um serviço decente.Em Limeira, no interior paulista, 60% da população não pagava as contas de água. Três anos depois da privatização, 90% da população está pagando. Quando se pergunta ao cidadão porque está pagando e combatendo os vazamentos, ele responde que agora tem água e a companhia o trata como gente.

CM - Qual sua opinião sobre a proposta de transferir a titularidade dos serviços de saneamento dos municípios para os Estados nas regiões metropolitanas. A idéia é vista por ONGs como abertura para a privatização dos serviços.
AR - Acho que é a única solução para regiões metropolitanas. Você não pode pensar em uma região como a Grande São Paulo, com 39 cidades, cada uma com uma lei. A empresa é obrigada a fazer a privatização assinando 39 contratos, cuja tarifa é definida politicamente pelos vereadores. Nos mananciais, em São Paulo, eles captam 63 metros cúbicos e injetam na rede. Dá 320 litros por habitante/dia, mas a rede só comporta 250 litros. Como é que se consegue explicar que a Sabesp esteja tratando mais do que a população precisa? Segundo os dados do Pura, 70% da água que chega às residências perde-se no uso, na bacia sanitária, na irrigação do jardim, lavando calçada e carro e em longos banhos.
José Alberto Gonçalves é jornalista.


* Matéria publicada na agência de notícias Carta Maior, em 25 de março de 2003.

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