domingo, 23 de novembro de 2008

O fast food e a mundialização do gosto - parte 2



O comer formatado
Expressão criada por nós para enfatizar o estilo da comida pronta e padronizada das redes de fast food.

Antes da implementação do sistema de alimentação/fast food, o momento da refeição e todo o seu ritual tinha outro significado. A partir de sua disseminação, o fast food impõe seu ritmo ao tempo e ao espaço dedicados à alimentação, que passam a entrar em sintonia com as novas exigências da sociedade. A padronização torna-se condição para a crescente aceleração do movimento dentro das cidades. Nossa paisagem é modificada, pois os produtos mundializados, com seus símbolos e “marcas” ocupam o espaço nacional, tornando-o mundial. A “mercadoria” é, ao nosso ver, o fator globalizante. Abordando o fast food, acreditamos estar entrando, de certa forma, no cotidiano dos citadinos (principalmente dos metropolitanos). E, ao refletirmos sobre o cotidiano, estamos ao mesmo tempo tratando a sociedade de consumo atual, definindo suas transformações, perspectivas e sobretudo penetrando-a. O presente estudo tem como um de seus objetivos refletir sobre essa sociedade de consumo, que é onde se formulam os problemas concretos da produção e reprodução, em seu sentido mais amplo. Percorrendo esse caminho, percebemos que o assunto é complexo e que seu entendimento depende de um longo processo reflexivo, que estamos iniciando, a partir desse primeiro trabalho. Nesse sentido é que a escolha do caso fast food foi proposital, para que pudéssemos mostrar as mudanças mais significativas no consumo alimentar em nosso país, pois, afinal, há um novo cotidiano que passa a ser exigido pelo tempo produtivista na sociedade atual: torna-se necessário controlar atos, gestos, desejos. O horário dedicado às refeições é escasso e o fast food entra nessa conjuntura de um “novo tempo” no urbano. A existência desse espaço indica que o fast food é produto e condição, e dá sustentação a esse “novo” cotidiano. O setor de alimentação/fast food passa a caracterizar a modernidade, pois o ato de comer ganha, a partir dele, funcionalidade e mobilidade, não se identificando mais com o território, pois se adapta às circunstâncias que a mundialidade impõe. Não é mais possível identificar a origem das empresas pelos produtos que ela oferece. É a mundialização das mercadorias. O que tem a ver a Pizza Hut com a Itália? As empresas nacionais de fast food também não se importam mais com os antigos costumes alimentares nacionais, não há mais oposição nacional - internacional no setor dos alimentos, eles se misturam, formando um todo mundial. Quando as primeiras redes americanas começaram a vender seus lanches do tipo hamburguer no Brasil, uma espécie de “americanismo” surgiu no país. Isto vai de encontro ao pensamento de LEFÈBVRE (1991, p.32), quando diz que na França: “Um certo americanismo se introduzia, não tanto pela ideologia, como pelo cotidiano.” Essas empresas, que num primeiro momento foram as americanas e, posteriormente passaram a ser originárias de diversos países, elaboraram um “ritual” formatado e aos consumidores cabia apenas segui-lo: a expansão do McDonald’s é um exemplo claro dessa formatação. Embora isso se mantenha até hoje, muitas coisas mudaram e esse processo se intensificou: comer em fast food é um “novo hábito” do brasileiro, principalmente os que residem nas grandes cidades. O fast food aparece também em outras cidades (mesmo quando não é necessário), como signo da participação no mundo global, moderno, onde a velocidade está presente. O fast food, nas metrópoles, faz parte do “cotidiano”, nas cidades menores ele representa a “festa”. De um modo ou de outro, ele exerce seu fascínio, pois enquanto uns vêem nessa “forma de comer” uma necessidade, outros, encontram nela prazer, realização, lazer. LEFÈBVRE (1991) coloca em evidência a degenerescência simultânea do “Estilo” e da “Festa” na sociedade, onde o cotidiano se estabeleceu. Segundo esse Autor, o Estilo se degrada em cultura cotidiana (de massa) e é arrastado para a fragmentação e decomposição. A Festa não desaparece totalmente, são agradáveis miniaturas do que já foram. A expansão do fast food no Brasil foi uma conquista gradual e totalmente importada. Entretanto, essa “americanização” (gosto global), não se deu somente no Brasil, espalhou-se pelo mundo. Atualmente, com o avanço do processo de globalização, exigindo mobilidade e descentralização, a centralidade ganha um novo sentido. Entretanto, no que concerne ao fast food, os EUA continuam a ser o “centro”, pois é a partir de lá que se irradiou esse fenômeno, capaz de normatizar os hábitos de consumo alimentar no mundo. Essa nossa colocação pode ser muito bem ilustrada com a citação de BAUDRILLARD (1986, p.26), que, ao referir-se aos Estados Unidos, nos diz: “A América não é nem um sonho nem uma realidade; é uma hiper-realidade. É uma hiper-realidade porque é uma utopia que desde o começo foi vivida como realizada”. Num outro trecho, o mesmo Autor reflete: “Por que iria eu descentralizar-me na França, no étnico e no local que nada mais são do que as migalhas e os vestígios da centralidade?” e segue: “Quero excentrar-me, tornar-me excêntrico, mas num lugar que seja o centro do mundo. E nesse sentido, o último fast-food, o mais banal suburb, o mais insípido dos imensos calhambeques americanos ou a mais insignificante das majorettes de história em quadrinhos está mais no centro do mundo do que não importa que manifestação cultural da velha Europa. É o único país que oferece essa possibilidade de brutal ingenuidade; peçam às coisas, aos rostos, aos céus e aos desertos que sejam apenas aquilo que são, just as it is.” (BAUDRILLARD, 1986, pp.25,26) Fica claro que todas as mudanças ocorridas no âmbito da produção e consumo acabaram reprogramando o cotidiano de algumas pessoas, em alguns lugares, e muitos outros fatores acabaram auxiliando, para que ele se desse desta forma. A distância-tempo necessária para se ir e vir da casa ao trabalho tem aumentado, principalmente nas grandes metrópoles, o que leva algumas pessoas a se adaptarem ao que o ambiente próximo lhes oferece. Neste sentido, as lanchonetes de serviço rápido vêm sanar tais dificuldades, oferecendo lanches e refeições rápidas, serviço eficiente e menor preço. Entretanto, no que concerne à qualidade do “produto comida”, é no mínimo questionável, pois trata-se de uma alimentação incompleta, totalmente industrializada, à base de conservantes, com muita energia, calorias e pouca vitamina. Se pesarmos estas, entre outras variáveis, veremos que não é uma alimentação saudável, para que seja utilizada diariamente. Esse foi um assunto amplamente tratado na obra de GREFE et al (1988). Porém, a qualidade nem sempre é levada em consideração pelas pessoas que, normalmente, não oferecem resistência ao comer formatado. Esse novo estilo de comer passa a ser uma opção imposta pelo próprio modo devida, pela sua adequação e comodidade. Isto se torna evidente, se observarmos o cotidiano dos metropolitanos: eles realmente aderiram a esse novo estilo de comer. Nas cidades médias e pequenas, particularmente do estado de São Paulo, como observamos, isso não se dá com a mesma intensidade, pois normalmente as pessoas não necessitam de muito tempo para se locomoverem entre um ponto e outro da cidade. Neste caso, a opção pelo comer formatado é “mais livre”; no dia-a-dia essas lanchonetes são frequentadas, principalmente por pessoas mais jovens e nos finais de semana funcionam como lazer para as famílias. As crianças e adolescentes se realizam nesses ambientes, elas fazem parte de uma geração onde os alimentos industrializados estão sistematicamente presentes, já que as propagandas, através da TV, foram criando novos hábitos de consumo. Nesse sentido, freqüentar um fast food significa freqüentar um lugar que, sem ser central, tem uma conotação de centro. Através do fast food o “americano” pode estar virtualmente em qualquer lugar. Os EUA, através desse comer formatado, impuseram e impõem toda a sua ideologia, seus valores e condutas. O fast food é um produto que traz com ele um modo de vida normatizado e, desse modo, mexe com o imaginário das pessoas, fazendo-as se sentir no centro do mundo. BAUDRILLARD, em seu livro América, trabalha muito bem com essa hiper-realidade que os produtos americanos são capazes de criar. Acreditamos que o fast food é mais um desses “produtos”.

Artigo publicado no Vol. V / 1997 da Revista Cadernos de Debate, uma publicação do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da UNICAMP, páginas 21-45.
Silvia Aparecida Guarnieri Ortigoza

enviado por alvarenganj@yahoo.com.br

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