domingo, 23 de novembro de 2008

A crise financeira e as economias emergentes



Meridiano 47
Heitor Figueiredo Sobral Torres
Nov 2008

A atual crise financeira, deflagrada nos EUA e rapidamente disseminada para os países europeus, aparenta uma diferença importante no seu local de concentração, se comparada com crises financeiras anteriores, dos anos 1990. Em vez de ter sido gestada em países subdesenvolvidos ou em países emergentes, mais propensos a desajustes em seus índices macroeconômicos e a turbulências periódicas, a atual crise teve origem clara em fenômenos comumente relacionados a economias desenvolvidas e avançadas.
A bolha no setor de moradias, com alta desproporcional nos preços de imóveis, foi característica de um intervalo de prosperidade nos EUA e na Europa ocidental. Os bancos de investimento peculiares a Wall Street e à City londrina entraram em colapso, mas não sem antes promover a abundância de crédito que impulsionava o crescimento das nações do Atlântico norte. Essas duas práticas não parecem ter sido problemáticas para os países desenvolvidos enquanto realizadas sob um contexto de estabilidade e sem desviar de uma zona de equilíbrio que mantém a harmonia de qualquer sistema econômico. O desrespeito a essa zona de equilíbrio determinou excessos, sobretudo em termos de falta de regulação, que possibilitaram a crise quando o período de pujança na economia mundial começou a se esvair.
Em tendência praticamente oposta se posicionaram os países emergentes. Desde o fim da década de 1990, quando a última crise financeira mundial afetou com especial intensidade a Ásia, as práticas das nações em desenvolvimento estiveram voltadas ao usufruto da conjuntura econômica favorável do início desse século com um grau de responsabilidade maior que o de períodos anteriores. Além de canalizar os lucros com o comércio mundial para setores de infra-estrutura, de investimento e de tecnologia, que possibilitariam níveis de crescimento destacados, a lógica defendida por muitos analistas e adotada por alguns governantes foi reservar parte dos ganhos para estabilizar balanças de pagamentos e reservas internacionais que poderiam se provar estratégicas em intempéries futuras.
A fórmula de estabilidade rendeu taxas de crescimento saudáveis aliadas a prudência no manejo macroeconômico. Países com potencial de desenvolvimento evidente, como Brasil, Rússia, Índia e China (os BRICs), lideravam o bloco dos emergentes. Mesmo países tradicionalmente relegados a avanços de escala menor, como os do leste europeu, da América Latina e do Oriente Médio, conseguiram progredir pela combinação de altos preços das commodities e do petróleo e intensificação do comércio global.
Dessa maneira, com esse retrospecto que inspirava confiança, é que foram projetados cenários em que a presente crise financeira seria fundamentalmente distinta das anteriores pelo seu impacto mais discreto nos países emergentes. O grau de otimismo logo após a falência do banco Lehman Brothers oscilou entre a posição em que os países em desenvolvimento serviriam como amortecedores da crise que se circunscreveria ao mundo desenvolvido e aquela em que o ciclo de crescimento dos emergentes poderia até ser atrapalhado, mas não interrompido. O reforço principal a essas projeções estava na percepção anteriormente descrita de que os fenômenos da bolha nas moradias e do colapso dos bancos de investimento seriam traços das nações do Atlântico norte. Exemplo ilustrativo dessa interpretação foi a reação inicial do presidente Lula minimizando os efeitos da crise no Brasil, ao afirmar que “quem está mais preocupado com a crise financeira é Bush”.
O recurso retórico de declarações desse tipo não deve ser minimizado, ainda mais em uma crise que envolve um setor sensível como é o mercado financeiro. Entretanto, o otimismo demonstrado não foi suficiente para conter a expansão das mazelas da crise para as economias do Sul. Também no âmbito dos discursos, a recorrência do temor de recessão nos pronunciamentos de líderes norte-americanos e europeus assinalou um novo período na gestação da crise. A internacionalização dos seus efeitos se deu primeiro nos mercados de ações, com perdas quase que generalizadas em todo o mundo. Além disso, a redução dos recursos financeiros abriu precedentes para o conseqüente transbordamento da crise para a economia real.
Esse fato chamou a atenção para dois fatores que impediriam a delimitação da crise exclusivamente ao mundo desenvolvido. Em primeiro lugar, parte importante da prosperidade das economias emergentes no início desse século esteve ligada ao estímulo que as economias desenvolvidas forneciam ao crescimento dos países em desenvolvimento, seja pela compra de commodities, mercadorias e serviços ou pela alta taxa de investimento externo direto por elas propiciada. Conseqüentemente, em segundo lugar, os vínculos de interdependência entre o “Norte” e o “Sul” foram fortalecidos em favor de ambos. Esses dois fatores, anteriormente centrais e celebrados, tornaram-se os grandes agentes de expansão da presente crise.
O risco de recessão, amplamente endossado por analistas quanto às economias desenvolvidas, solapou os cenários mais otimistas reservados aos emergentes. A escassez de recursos para investimento desaceleraria a produção, dificultando a manutenção do crescimento nos desenvolvidos e, no mínimo, atrapalhando o ciclo de crescimento das economias em desenvolvimento. A compreensão de que a crise se expandiria para outros setores, além do mercado financeiro, ou que ela provocaria efeitos consideráveis nesses outros setores incitou reações distintas no grupo das economias emergentes.
Alguns países com altos graus de reservas estrangeiras, com contas relativamente ordenadas e com mercados internos apreciáveis - caso da China, do Brasil e da Índia - conseguiram manter seus índices em níveis saudáveis. Como até mesmo nesse grupo de três países as repercussões foram diversas, apesar da avaliação geral positiva, supõe-se a necessidade de um exame mais detido das circunstâncias individuais.
A situação brasileira é relativamente confortável em meio às economias emergentes devido à estabilidade das contas governamentais - propiciada pela redução da dívida do governo e pelo alto nível de reservas estrangeiras - e do sistema bancário - acentuada com a fusão Itaú-Unibanco e com planos de novas uniões. Não obstante, a economia local está longe da imunidade quanto à crise: o setor financeiro está mais engessado, embora nesse sentido o temor de inflação bloqueie ações mais substantivas pelo Banco Central; e o controle cambial é continuamente exercido pelas autoridades monetárias brasileiras, que também negociam um auxílio do governo norte-americano para provimento de dólares.
O panorama para a economia da Índia guarda semelhanças com o caso brasileiro. O país também está comparativamente bem se contrastado ao grupo dos emergentes. A preocupação reside nos índices de crescimento - já revisados em um ponto percentual e meio para este ano -, no mercado para exportação - cujo peso maior está nos EUA - e na desvalorização da rupia em relação ao dólar.
O país claramente mais sólido em sua reação à crise tem sido a China. O crescimento da economia também foi ajustado, restrito a um dígito no terceiro trimestre deste ano, mas os demais índices permanecem invejáveis. Os quase dois trilhões de dólares em reservas podem contribuir até mesmo para colocar o país em uma posição de maior proeminência no mercado financeiro mundial, pelo auxílio a vizinhos importantes e em dificuldade ou tomando para si um papel mais ativo no FMI e em outros organismos multilaterais.
Por outro lado, países com vulnerabilidades previamente observadas e, com a crise, prontamente afloradas - caso de alguns latino-americanos, dos europeus do leste e das nações da Ásia central -, já sofrem as conseqüências da crise e apresentam perspectivas mais sombrias.
A economia argentina deu claros sinais de instabilidade quando o governo local, em meio à redução global do nível de crédito disponível, adotou uma medida extremada. Para aumentar a solvência estatal (e manter os balanços fiscais em ordem, mesmo que artificialmente), o sistema privado de pensões do país foi nacionalizado, com evidentes prejuízos para o lado privado da economia. Esse ato, combinado à inflação alta e à queda nos preços das commodities no mundo, indica um percurso turbulento para a economia da Argentina.
Mesmo assim, o caso mais dramático de “contaminação” pela crise foi o da Islândia, cuja pequena economia dependia fortemente dos depósitos financeiros nos três principais bancos locais. Os valores neles acumulados chegaram a ser mais de dez vezes maiores que o PIB da ilha. A eclosão da crise mundial tornou transparente a incapacidade desses bancos em honrar seus correntistas, obrigando o governo a nacionalizá-los. No entanto, a capacidade estatal para estabilizar o mercado de ações, o controle cambial e a continuidade da produção tem sido continuamente desafiada, fazendo com que o auxílio estrangeiro - da Rússia e do FMI - fosse o primeiro passo para evitar o achatamento brusco do sistema islandês.
Lições similares, embora em escala de gravidade menor, podem ser verificadas no leste europeu. Economias como a Hungria, a Ucrânia e os países bálticos têm enfrentado inflações altas, desajustes cambiais e dificuldades nos mercados de ações. Os motivos estão invariavelmente ligados à alta taxa de dependência externa, ao descontrole nas contas governamentais e à incapacidade de sanar internamente esses problemas, dada a escassez de recursos. Essas são, grosso modo, as razões pelas quais as economias emergentes não desfrutam de uma situação mais confortável no cenário mundial - seja pela desconfiança que esses fatores projetam ou pela fragilidade intrínseca que causam.
Assim, do ponto de vista das economias emergentes, incluindo as mais estáveis e as instáveis, o momento atual da crise é o dos reajustes. Os planos de bail-out, os acordos com o FMI, as medidas internas e os encontros de cúpula estão entre os meios mais difundidos. Grandes injeções de recursos já foram realizadas em países como a Hungria, a Ucrânia e a Islândia, com a expectativa de que essas localidades tenham seu sistema normalizado. Nos planos internos, os diversos Bancos Centrais têm estado em certo concerto ao adotar medidas mais drásticas, como grandes reduções nas taxas de juros e nas taxas de depósito compulsório dos bancos.
O FMI tem tido uma função importante durante essa fase da crise. A escalada nos níveis de regulação nos mercados financeiros tem sido uma orientação discutida em várias instâncias multilaterais, como o G-20 e o Encontro Ásia-Europa (ASEM, em inglês). Nesse ínterim, a atuação do Fundo pode ser considerada uma ponte para a futura “nova ordem financeira mundial”, ao disponibilizar empréstimos para países em dificuldade, supervisionar índices macroeconômicos e promover o diálogo para soluções conjuntas - e esses são atributos que interessam de modo direto os países emergentes.
Fundamentalmente, naquilo que concerne às economias emergentes, a crise desencadeada no mercado financeiro norte-americano não pode ser vista como a primeira em que elas demonstraram estabilidade maior que as dos desenvolvidos, pois a ocorrência de casos graves como o da Islândia, da Argentina e dos países do leste europeu desautoriza avaliações nesse sentido. No entanto, a maior flexibilidade do FMI ao promover acordos, as respostas rápidas pelas cúpulas e a demonstração de casos de estabilidade como os BRICs ao menos denotam um grau de importância inédito das economias emergentes para o conjunto da economia mundial. Ainda não houve amortecimento da crise pelos emergentes, mas a possível eclosão de uma nova ordem financeira mundial reservará a esses países um papel mais proeminente em tempos de prosperidade e de crise.

Heitor Figueiredo Sobral Torres é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais - LARI (heitorfstorres@yahoo.com.br).

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