domingo, 23 de novembro de 2008

Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da Verdade,



21 Nov 2008

Em 9 de outubro de 2008, o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra foi considerado torturador pela Justiça do Estado de São Paulo. Há mais de 30 anos, o então major Ustra foi comandante do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo e torturou César Augusto Teles, Maria Amélia Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida, grávida de sete meses, irmã de Amélia, além de manter seqüestrados Edson e Janaína, então com 4 e 5 anos, filhos do casal Teles. A ação movida pela família Teles foi apenas declaratória, não acarretando em qualquer tipo de punição ao coronel reformado. No entanto, o peso desta decisão se mede pelo precedente criado - foi a primeira vez que um oficial foi condenado pela justiça brasileira por um crime cometido durante o período do regime militar. Esta decisão causou grande polêmica dentro do governo e da sociedade brasileira, e deve ser compreendida dentro da discussão da interpretação da Lei de Anistia e das obrigações internacionais do Estado.
Sancionada em agosto de 1979, a Lei de Anistia concedia anistia, ou seja, perdão e esquecimento dos atos puníveis “a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.
No contexto da abertura lenta, gradual e segura, promovida a partir do governo do general Geisel, o tema da anistia começou a ser discutido dentro do governo e das Forças Armadas. Até então, embora fosse defendida por muitas vozes da oposição, algumas dentro do MDB, a anistia não era admitida por membros do governo. A princípio, era considerada possível apenas uma espécie de anistia parcial, na qual cada caso, individualmente, poderia ter sua sentença revista. No entanto, nos anos de 1978-1979, o debate assume proporções públicas, sendo um dos principais temas de um movimento político articulado nacionalmente. Após a realização do I Congresso Nacional pela Anistia, o tema passou a contar com grande ressonância dentro da sociedade brasileira, de maneira com que o novo presidente, general Figueiredo e seu governo já não podiam ignorar a situação e já admitiam, antes mesmo da posse, a possibilidade de conceder anistia - restrita - a determinados casos, com exceção de terrorismo e crimes comuns, como assassinato e roubo a banco, por exemplo. A resposta dos Comitês Brasileiros de Anistia foi clara, exigindo a anistia ampla, geral e irrestrita, buscando popularizar, com sucesso, tal reivindicação, além de exigir a investigação dos agentes do estado envolvidos em crimes contra a humanidade.
Os acontecimentos de agosto de 1979, no entanto, não vão de encontro a todas estas demandas. Em nome da reconciliação, foi entendido que a lei de anistia era aplicável aos agentes do estado tanto quanto àqueles que foram perseguidos pelo regime, uma prática chamada de auto-anistia. As conseqüências desta interpretação são muito claras. Em primeiro lugar, o “esquecimento” de crimes cometidos pelos agentes do estado antes mesmo de qualquer julgamento ou apuração impedem ou pelo menos dificultam que as responsabilidades internacionais do estado sejam cumpridas - como será tratado adiante. Além disso, a falta de identificação destes agentes possibilitou que muitos continuassem exercendo funções públicas - como o próprio coronel Ustra, descoberto quando cumpria a função de adido militar no Uruguai. Ou, como apresentado por Sikkink e Walling, o processo de auto-anistia pode ter conseqüências graves - e até hoje pouco exploradas - para o nível de violência do estado brasileiro.
A questão que muitos colocam neste momento é: se a anistia foi recíproca, o que significa que os crimes dos agentes do estado devem ser esquecidos, porque o coronel Ustra foi declarado ‘torturador’? Até o momento, a lei de anistia foi interpretada de forma a considerar a tortura como crime político ou conexo com este, ou seja, anistiável. Mas, será a tortura um crime político, ou um crime contra a humanidade? A constituição de 1988, bem como a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis reconhecem a tortura como crime contra a humanidade, sendo assim imprescritível e não sujeito à graça ou anistia. O próprio texto na lei de anistia não concede anistia a crimes contra a humanidade, mas apenas a crimes políticos.
Neste sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos têm um histórico de reverter leis de auto-anistia que protegem perpetradores de crimes contra a humanidade. A compreensão é de que leis de auto-anistia, como são chamadas as concessões de anistia feita pelo estado autoritário a seus próprios agentes, buscam excluir os estados de sua responsabilidade por graves violações dos direitos humanos e, portanto, são inadmissíveis por impedirem o acesso das vítimas e seus familiares à verdade e à justiça, bem como violam a convenção Interamericana de Direitos Humanos. Os pareceres da Corte já reverteram as leis de auto-anistia no Chile e no Peru, com o entendimento de que tais leis não têm podido gerar efeitos no passado, no presente, e tampouco poderá gerá-los no futuro.
As responsabilidades internacionais do estado são o conjunto de obrigações que nascem para o estado a partir da violação de uma norma internacional. Desta forma, o descumprimento de uma norma internacional, seja ela do direito costumeiro internacional ou codificada em um tratado, exige que o estado cumpra certas obrigações, com o objetivo de compensar as vítimas e impedir que a norma seja descumprida no futuro. No caso específico da tortura, entende-se que o país descumpriu sua obrigação primária de não torturar seus cidadãos. Assim, com a violação desta norma do direito costumeiro internacional, surgem as obrigações secundárias, que formam o conteúdo da responsabilidade internacional do estado. São basicamente quatro obrigações secundárias: i) o estado deve descontinuar a violação da norma, ii) deve comprometer-se em não repetir tal violação, iii) deve reparar as vítimas, utilizando o meio adequado entre a retomada da situação anterior à violação, indenização e satisfação (reconhecimento do crime e direito à verdade), e por último iv) deve instaurar um processo contra o indivíduo que cometeu o crime internacional.
Com isto em mente, fica claro que o entendimento da Lei de Anistia como aplicável aos agentes do estado está em franco desacordo com as regras internacionais. Desta forma, não só o estado brasileiro não protegeu seus cidadãos durante o regime, como recusa a dar-lhes, anos depois, o direito à verdade e à justiça, por meio da punição de seus agentes que cometeram crimes internacionais.
O cumprimento dos dois primeiros pontos, a descontinuação da tortura e a garantia de não mais fazê-lo são questionáveis. É verdade que o aparelho repressivo existente na época foi desmantelado. Mas é possível dizer que o estado brasileiro já não tortura seus cidadãos? Infelizmente, não apenas os agentes do estado não abandonaram esta prática como ela tem crescido nos últimos anos. Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling atribuem esta estatística à falta de persecução penal dos agentes repressores da ditadura. Em um estudo que comparou o nível de observância das regras de direitos humanos por agentes do estado nos países da América Latina que passaram pela transição de regimes autoritários a regimes democráticos, todos aqueles que contaram com mais de oito anos de julgamentos de seus criminosos tiveram uma melhora na questão. Por outro lado, no Brasil, um dos únicos países que simplesmente não julgaram os agentes do aparato repressor do estado, ao lado da Guiana, o índice de desrespeito de direitos humanos por parte dos agentes do estado aumentou, uma prova, segundo as autoras, de que apenas democracia não é suficiente para garantir o respeito aos direitos humanos em um país, mas também é preciso justiça.
Quanto à terceira obrigação, o direito à reparação, o Brasil avançou apenas parcialmente. Embora sejam muitas as reparações financeiras concedidas até o momento, pouco se tem avançado no reconhecimento dos crimes cometido e direito à verdade. Com o ‘esquecimento’ dos crimes, em razão da interpretação da Lei de Anistia, os julgamentos simplesmente não ocorreram - até o mês passado. Muito embora a ação movida contra o coronel Ustra não seja penal, pela primeira vez um agente do estado autoritário foi reconhecido como torturador, ou seja, criminoso internacional pela justiça brasileira, o que pode abrir caminho para que outros sejam reconhecidos ou mesmo para uma ação penal no futuro, uma vez que foi reconhecido que Ustra não cometeu um crime político, mas um crime contra a humanidade. Caso esta seja uma tendência que se reforce, nos aproximaremos do cumprimento desta responsabilidade internacional do estado, garantindo o reconhecimento dos crimes cometidos e oferecendo às vítimas o direito à verdade. Além disso, conseguiríamos realizar a quarta responsabilidade internacional do estado, a persecução penal dos indivíduos que, em nome do estado, cometeram tortura, a obrigação secundária em que menos avançamos.
É importante aproveitar o momento atual de debate dentro da sociedade brasileira sobre a questão. A situação parece propícia à mudança, com a sentença contra o coronel Ustra, e a pressão sofrida pelo Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no sentido de responsabilizar criminalmente os torturadores do regime autoritário. É verdade que muitos setores na sociedade brasileira se posicionam contra a reinterpretação da lei de Anistia, em conjunto com o Ministério da Defesa e outras alas do governo, sob a justificativa de que não se constrói o futuro do país olhando para o passado e alimentando revanchismos. O que estes setores não vêem é que a demanda pela persecução penal dos criminosos vai muito além do revanchismo, sendo justificada primordialmente pelo direito à verdade e cumprimento das responsabilidades internacionais do estado.
A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) ajuizou uma ação no STF com a intenção de esclarecer as diferentes interpretações sobre a anistia ou não dos crimes cometidos pelos agentes do estado no período autoritário. Os dois principais pólos desta questão são o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, defendendo que a anistia significou esquecimento e perdão dos agentes do estado, e os Ministros da Justiça, Tarso Genro e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. Com o objetivo de isolar o presidente Lula e outros membros do governo deste debate, foi encomendado à Advocacia Geral da união (AGU) um parecer ‘neutro’, que tentasse contemplar ambos os lados. Tal parecer foi visto pelos partidários de uma nova interpretação da lei de anistia como a defesa dos agentes do estado que cometeram crimes contra a humanidade durante o regime militar. A polarização dentro do governo continua, com a declaração do Ministro Paulo Vannuchi de que deixaria o governo, caso a ação do STF fosse contrária a possibilidade de julgamento dos torturadores do regime militar.
Definitivamente, o resultado da ação movida no STF é muito significativa para o Brasil. Pode tanto significar a adesão do Brasil à movimentos internacionais de valorização da pessoa humana e garantir um ao país um lugar entre aquelas democracias que respeitam os direitos humanos de seus cidadãos. Ou, ao contrário, pode equiparar o Brasil aos países mais marginalizados da comunidade internacional, incapazes de proteger seus cidadãos. De qualquer forma, a reiterpretação da lei é esperada, se não agora com um parecer favorável do STF, posteriormente, com um parecer da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exigindo a suspensão da auto-anistia, um ato considerado ilegal no direito internacional, este considerado muito provável, caso os fóruns internos falhem em reverter a auto-anistia.
Desta forma, será possível reconciliar a sociedade brasileira, oferecendo reconhecimento às vítimas, reafirmando o compromisso do estado com o cumprimento das normas internacionais e comunicando aos agentes do estado do presente que a prática de tortura é inadmissível. Por outro lado, o Brasil poderá assumir com mais legitimidade o lugar que tem buscado na comunidade internacional, distanciando-se da imagem negativa que ostenta no campo da proteção dos direitos humanos de seus cidadãos.
De qualquer maneira, é possível ter a certeza de que o debate, embora polarizador, ocorrerá dentro da normalidade democrática já consolidada no país. Tendo em vista o histórico da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à qual o Brasil é subordinado, a questão da revisão da auto-anistia é apenas uma questão de tempo. É preciso ter em mente, no entanto, que as oportunidades de julgar os criminosos são cada vez mais limitadas, tendo em vista a idade atual dos antigos torturadores. Desta forma, para que o Brasil possa cumprir as responsabilidades que lhe cabem frente ao direito internacional e seus cidadãos, é necessário que o país esteja disposto a encarar o seu passado, reconciliar sua sociedade, para então construir seu futuro.

Adalgisa Bozi Soares é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais - LARI (adalbsoares@gmail.com.).

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