segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A governabilidade da água nas Américas - uma tarefa inacabada*



Humberto Peña e Miguel Solanes
I - Introdução

1 - Antecedentes

No Marco para a Ação apresentado no II Fórum Mundial da Água (Haia, 2000), com o objetivo de proporcionar segurança hídrica para o desenvolvimento da humanidade no início do Século XXI, estabeleceu-se que a crise da água é, freqüentemente, uma crise de governabilidade, o que levou a se identificar a necessidade de se colocar a governabilidade eficaz da água como uma das principais prioridade de ação (GWP, 2000).

A Declaração Ministerial, realizada na mesma ocasião, reforçou este ponto de vista e solicitou que se governasse sabiamente a água para se assegurar uma governabilidade eficiente, de maneira que a participação do público e os interesses de todas os atores do processo fossem incluídos no manejo dos recursos hídricos.

Na Assembléia do Milênio das Nações Unidas (2000), os Chefes de Estado insistiram na conservação e administração da água, com o fim de proteger nosso ambiente natural comum e, especialmente, para deter a exploração não sustentável dos recursos hídricos, desenvolvendo estratégias para o manejo da água nos níveis regional, nacional e local, que promovam tanto o acesso equitativo como o abastecimento adequado.

Finalmente, na Conferência sobre Água Doce, em Bonn (2001), os ministros recomendaram agir em relação à governabilidade da água. Sua proposta foi a seguinte: Cada país deve possuir internamente disposições aplicáveis para a governabilidade dos assuntos relativos à água, em todos os níveis e, onde for necessário, acelerar as reformas do setor hídrico.

O III Fórum Mundial da Água, programado para março de 2003, no Japão, e sua Conferência Ministerial revisarão não apenas os avanços na implementação dos acordos derivados das reuniões internacionais anteriores, mas também centrarão uma parte importante da discussão em torno da capacidade de governabilidade efetiva dos recursos hídricos, na perspectiva de se obter um compromisso maior para se alcançar resultados concretos da parte dos governos e da comunidade.

A partir disso estabeleceu-se que uma das temáticas centrais do próximo III Fórum Mundial da Água será o diálogo sobre a Governabilidade Efetiva da Água, cuja organização foi encomendada à Associação Mundial da Água (GWP Global Water Partnership). Entre as atividades preparatórias para esse grande diálogo de governabilidade está sendo considerada a realização, em distintos níveis, de seminários e foruns eletrônicos em vários países e regiões do mundo. Este evento convocado pelo Governo do México, com o nome de Fórum da Água para as Américas no Século XXI constitui um valioso passo nesse caminho.

2 - Marco conceitual

O conceito de governabilidade aplicado à água refere-se à capacidade social de mobilizar energias de forma coerente para o desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos. Nesta definição incluem-se a capacidade de elaborar políticas públicas que sejam socialmente aceitas, orientadas para o desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos e de se fazer efetiva sua implementação através dos diferentes atores envolvidos.

O nível de governabilidade de uma sociedade em relação à gestão da água vê-se determinada, entre outras, pelas seguintes considerações:

- O grau de acordo social (implícito ou explícito) a respeito da natureza da relação água sociedade;

- A existência de consensos sobre as bases das políticas públicas que expressam tal relação;

- A disponibilidade de sistemas de gestão que possibilitem efetivamente, em um marco de sustentabilidade, a implementação das políticas.

Em síntese, a governabilidade pressupõe: capacidade de gerar as políticas adequadas e a capacidade de colocá-las em prática. Essas capacidades passam pela construção de consensos, a construção de sistemas de gestão coerentes (regimes: que pressupõem instituições, leis, cultura, conhecimentos, práticas) e a administração adequada do sistema (o que pressupõe participação e aceitação social e o desenvolvimento de competências).

Como se pode extrair do exposto, um elemento central da governabilidade é a possibilidade de se construir (implantar e desenvolver) arranjos institucionais harmônicos com a natureza, competências, restrições e expectativas do sistema ou âmbito sob consideração.

Atualmente, a importância do termo governabilidade na Região está em boa medida associada às restrições e possibilidades das sociedades de incorporar as profundas mudanças institucionais que têm caracterizado a última década. Em muitos casos, estas mudanças têm implicado na construção de uma nova institucionalidade, entendida como o desenho e reconhecimento de novas regras do jogo, a construção de organizações e o desenvolvimento de novos comportamentos, formais e informais, dos agentes públicos e privados. Obviamente, como qualquer processo de construção social, o mesmo surge dentro de um forte processo de mudanças e de destruição da ordem social anterior.

Na realidade, são as desarmonias existentes entre o arranjo institucional pré-existente e o novo o que pode estar na origem dos problemas de governabilidade ou crise de governabilidade que está caracterizando a situação em muitos países latino-americanos. Tal crise está mais aguda e maior em função da profundidade e amplitude das mudanças em curso; das competências e capacidades pré-existentes e sua utilidade para enfrentar as metas da transformação; e, em particular, da coerência do novo arranjo institucional, vis a vis à natureza e estrutura sociais e às possibilidades e restrições presentes para assumir, de maneira assertiva, as regras do jogo propostas.1

A globalização e o contexto de cada país, a inadequação de regimes legais e organizações, a presença de regimes legais especiais e as pressões de grupos de interesse são todas questões feitas à governabilidade.

3. Importância do tema na América Latina

A governabilidade torna-se objeto de reflexão quando se manifestam suas limitações.2 A consciência regional crescente sobre temas como o uso não sustentável das águas, sua contaminação, seu monopólio e a falta de acesso dos serviços a ela vinculados por parte de importantes setores da população, demonstram a relevância do tema.

A importância do tema na América Latina reflete-se claramente na série de experiências, postulados e processos de reforma das legislações de água e das administrações de água, que têm se apresentando na maioria dos países da Região, assim como os programas e propostas existentes para reformar os serviços associados, em especial os sistemas de provisão de serviços de água potável e saneamento. Estas propostas e programas têm tido, em alguns casos, base e forte determinação local de conteúdo, enquanto que em outros casos, têm sido principalmente propugnados por agentes externos.

Entre os casos de reformas consolidadas, cabe mencionar o Brasil, no que se refere à criação de uma legislação e um sistema nacional de administração de águas; Chile, com suas reformas de regime de águas e de prestação de serviços de água potável e saneamento; Argentina, com a privatização do setor hidroelétrico e de água potável e saneamento em uma série de cidades; Colômbia e Bolívia, com a privatização de uma série de serviços de água potável e saneamento; México, com uma reforma relativamente recente da legislação de águas e com privatizações de alguns serviços ou segmentos de serviços e alguns outros casos. Os países com processo de discussão de nova legislação de águas ou mudanças na legislação vigente incluem entre outros a Bolívia, Paraguay, Peru, Equador, El Salvador, Honduras, Venezuela, Guatemala, Costa Rica e Chile.

O conteúdo substantivo dos processos está claramente determinado por diferentes visões, desde as que enfatizam um reducionismo de critérios, que não necessariamente respondem à natureza do objeto tratado (por ex. enfatizar o tema de apropriação privada, minimizando os elementos de bem público que envolve a água) aos que assumem situações de competência perfeita que não existem na prática (como o caso de algumas regulações de serviços públicos). Em alguns casos estas visões limitadas ou muito otimistas dos problemas têm resultado em monopólios de recursos de águas e sistemas regulatórios deficientes.

Os temas resumidos acima certificam a importância da noção de governabilidade, e o acerto de haver trazido sua discussão a este Fórum. Fundamentalmente, se se entende a governabilidade como a capacidade de dar respostas a problemas concretos da região, há razões para enfatizar seu tratamento, posto que não se estão superados os desafios apresentados pelo manejo da água e a provisão dos serviços acessíveis à população.3
Humberto Peña é presidente do Comitê Consultivo Técnico para América do Sul da Global Water Partnership (SAMTAC).

Miguel Solanes é assessor regional senior da CEPAL e membro do Comitê Consultivo Técnico para América do Sul da Associação Mundial da Água.


* Este texto é um extrato do documento apresentado no Fórum da Água para as Américas no Século XXI, México, 8 a 11 de outubro de 2002.


NOTAS
1. Corrales, Maria Elena. Gobernabilidad de los Servicios de Agua Potable y Saneamiento en América Latina, abril 2002, SAMTAC-GWP. Caracas, Venezuela, pp. 4, 6, 7.
2. Olson, M. Auge y Decadencia de las Naciones. Barcelona, Ariel, 1986.
3. Corrales, Maria Elena. Gobernabilidad de los Servicios de Agua Potable y Saneamiento en América Latina, abril 2002, SAMTAC-GWP. Caracas, Venezuela, pp. 4, 6, 7.

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