segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O poder que sai das torneiras

O poder que sai das torneiras
Marlucio Luna

Direito universal ou privilégio das elites? Quando a pergunta se refere à água, ambas as opções são verdadeiras. No campo das idéias, não há quem discorde de que toda pessoa tem o direito de receber água tratada necessária para sua sobrevivên- cia. Mas a realidade se mostra bem distante disso. Receber em casa água de qualidade ainda é um sonho distante para boa parte da população mundial. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 70% dos atendimentos médicos em todo o planeta são decorrentes de doenças transmitidas pela água consumida sem tratamento adequado. Se analisarmos apenas os dados de países do Terceiro Mundo, os números são ainda maiores.

A Conferência Internacional sobre Água Doce, realizada na Alemanha em dezembro de 2001, discutiu, entre outros temas, a relação entre pobreza e acesso aos recursos hídricos. Barbara Schreiner, do Departamento de Assuntos de Água e Floresta da África do Sul, destacou que ter água é ter poder:

- Água é uma substância excepcional. Ela é essencial para a vida, alimenta nações, alimenta nossa indústria, atenua nossos problemas, sacia nossa sede e traz beleza e prazer às nossas vidas. Mas há um aspecto infeliz da natureza da água, quando ela flui em direção ao poder. Entretanto, o "sem poder" é sempre o mais vulnerável, pois não tem acesso à água, seja para beber ou para fins produtivos. Muito provavelmente há água suficiente para todos no mundo, incluindo o pobre. Mas essa disponibilidade só ocorrerá quando mudarmos o modo de gerenciar a sua utilização.

O discurso de Barbara representou um ataque direto à visão de água como mercadoria a ser comercializada - e potencialmente acessível apenas às elites em caso de tarifas elevadas. Sua avaliação leva em conta a realidade africana, mas pode ser estendida aos demais países pobres ou em desenvolvimento. Pagar pelo uso da água é algo inviável para populações carentes ou produtores que praticam a agricultura de subsistência - duas situações que se repetem no Brasil.

Em Kioto, durante o 3o Fórum Mundial da Água, em março deste ano, surgiram inúmeras discussões sobre a "mercantilização dos recursos hídricos". Representantes de ONGs atacaram as propostas que determinam a cobrança de tarifas, de acordo com as leis de mercado, o que agravaria o quadro de apartação social. Os ativistas -destacam que água é um elemento indispensável à vida tal qual o oxigênio - e, por isso, não pode ter preço definido. Já os grupos empresariais e alguns representantes de alguns governos argumentam que a tarifa não é pela água, mas pelo serviço de levá-la até o consumidor e pelo tratamento. Nenhum dos lados cedeu e não houve acordo na conferência sobre o tema.

Discussões comerciais e políticas à parte, a legislação brasileira garante a gratuidade do abastecimento de água potável à população. Pelo menos esta é a interpretação do jurista Paulo Affonso Leme Machado, professor de direito ambiental da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e autor do livro Recursos hídricos - direito brasileiro e internacional, lançado em outubro de 2002. Machado cita a Lei no 9.433/1997, que estabelece que o uso da água em pequena quantidade (consumo humano) é gratuito. Ele reforça tal interpretação ao mencionar o artigo 225 da Constituição Federal, cujo texto ressalta que a água "é bem de uso comum do povo".

O jurista ressalta que a cobrança pelo uso da água deveria ser restringida aos grandes consumidores, principalmente indústria e agricultura intensiva irrigada. Machado lembra que toda a legislação brasileira sobre recursos hídricos garante à população o direito ao abastecimento para alimentação, bebida e higiene pessoal.

A realidade brasileira mostra, no entanto, que a legislação tem interpretações distintas. O acesso à água tratada e de qualidade já faz parte do cotidiano das elites há décadas. Já as populações de áreas carentes ainda se mobilizam para que tal direito seja respeitado. Enquanto em bairros nobres obras são executadas por empreiteiras, na periferia das grandes cidades os moradores precisam se organizar em mutirões e auxiliar o Poder Público na instalação de redes de saneamento básico. Sacrificar momentos de lazer e descanso é o caminho encontrado por parcelas da população para deixar a condição de "sem poder" - citada pela sul-africana Barbara Schreiner - e se tornar um "com água".


Marlucio Luna é editor do projeto Século XX1.

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