quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Megacidades - Brasília

Domingo, 3 de Agosto de 2008 - ESTADÃO

O sonho acabou
Concebida como modelo de integração entre homem e arquitetura, a capital nem completou 50 anos e já faz planos de revitalização, incluindo corredores de ônibus

João Domingos


Quando venceu o concurso para planejar Brasília, o urbanista Lúcio Costa pensou numa cidade de tamanho limitado, muito sossegada. A inovação introduzida pelas superquadras (conjuntos residenciais com mais de 50 mil metros quadrados) e entrequadras (espaço para estabelecimentos comerciais) permitiria a integração entre homem e arquitetura, comércio local sem atropelos, largas avenidas sem semáforos e trânsito tranqüilo. "Juscelino Kubitschek pensou uma coisa muito modesta, com poucos prédios, pouca população, pouca burocracia", conta o arquiteto Oscar Niemeyer que, com Lúcio Costa, desenhou a capital federal. "Quando fiz o Congresso, havia 80 deputados. Previ o dobro e, hoje, são 513. Quando fiz o Palácio do Planalto, era para 200 funcionários. E está com 700."
Quarenta e oito anos depois, a realidade também é outra. No fim dos anos 1980, ainda era possível distinguir a fronteira que delineava a cidade planejada, na transição do concreto e do asfalto para o verde pardacento das árvores baixas e tortas do cerrado. Até pequenas matas ciliares havia, principalmente nos Lagos Sul e Norte. No período de pouco menos de duas décadas, porém, as invasões de terras e a ocupação urbana desordenada ameaçam colocar Brasília no caos. Isso porque 70% dos empregos estão no Plano Piloto, que tem população correspondente a 14,5% dos 2,4 milhões de habitantes do Distrito Federal. De manhã a cidade é invadida; no final da tarde, todos vão embora.


O processo de degradação foi patrocinado, principalmente, pelo Poder Executivo. Governador de Brasília por quatro mandatos, Joaquim Roriz distribuiu 180 mil lotes, criando as cidades-satélites de Samambaia, Santa Maria, Recanto das Emas, Riacho Fundo 1 e 2, Itapuã e Estrutural, além de inchar outras que já existiam, como Taguatinga, Ceilândia, Sobradinho, Planaltina e Paranoá. Em menos de uma década a capital recebeu 1 milhão de migrantes. Embora questionada pelo Ministério Público, a criação das novas cidades ou expansões foi aprovada pela Câmara Distrital.


A princípio, a doação de terrenos ocorreu para remover pelo menos 60 favelas que ocupavam todos os cantos do Plano Piloto, das proximidades do Palácio do Planalto às margens de rodovias. Mas a distribuição de terrenos acabou atraindo outros migrantes, que começaram a formar novas favelas ou reocupar as antigas. Mais tarde, eles também receberam seus lotes. De forma capenga, e com reflexos econômicos e sociais dramáticos, resolvia-se a situação da população de baixa renda. Mas não a da classe média, que buscava saídas para a moradia, visto que os preços dos imóveis no Plano Piloto e nos Lagos Sul e Norte começavam a ficar inacessíveis. E, assim, nos últimos 15 anos armou-se um pacto de silêncio entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que permitiu o surgimento do maior processo de grilagem de terras públicas de que se tem notícia.


O desrespeito ao Plano Diretor foi só uma conseqüência natural da reação à inexistência de uma política de expansão urbana por parte do governo. Sem nenhuma repressão, 387 condomínios ilegais foram registrados em Cartórios de Notas - e não nos de Imóveis -, permitindo à classe média avançar sobre capoeiras e macegas, nascentes e córregos. Lotes foram comprados por R$ 10 mil ou R$ 20 mil, os mais caros por R$ 30 mil, enquanto os poucos que ainda restavam nos Lagos Sul e Norte custavam em torno de R$ 200 mil. Um apartamento de três quartos no Plano Piloto, com 120 metros quadrados, sai por volta de R$ 600 mil; casas de 160 m2 valem R$ 1 milhão. Nos Lagos, casas de 300 m2 chegam a R$ 2,5 milhões. No meio da especulação imobiliária surgiram, na marra, novos bairros levantados à base do facão, machado e tratores em terras públicas, griladas ou, quando em áreas privadas, parceladas ilegalmente. Hoje, 400 mil pessoas moram nesses condomínios, mas nem 10% deles foram legalizados. "A agilidade, capacidade operacional e articulação da grilagem é muito superior à capacidade de fiscalização e de resposta do poder público", concluiu um relatório da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, em 2002, na tentativa de levar o problema ao Poder Legislativo.


Não houve como fugir do prejuízo ambiental. Segundo o governo de Brasília, 54,2% dos loteamentos irregulares foram constituídos em áreas de proteção ambiental. A ocupação desordenada provocou o esgotamento de mananciais e foi sepultado o plano de se fazer no Rio São Bartolomeu um lago maior que o Paranoá. O Lago do São Bartolomeu, que teria 50 quilômetros quadrados de extensão, com água em profundidade média de 20 metros e volume perto de 700 milhões de metros cúbicos, garantiria o fornecimento de água para Brasília até 2100. Mas sem ele, daqui a 10 anos, a Companhia de Águas e Esgotos de Brasília terá de buscar água a 120 quilômetros de distância, na represa da Usina de Corumbá 4, já no Estado de Goiás, e sem garantias de boa qualidade. "Fala-se muito que a distribuição de lotes no governo de Joaquim Roriz foi uma atitude criminosa. Foi. Mas a ocupação das nascentes do São Bartolomeu foi um crime até pior", afirma o secretário de Urbanismo de Brasília, Cássio Taniguchi.


Reflexo do crescimento da população, o trânsito tornou-se um problema sério, com engarrafamentos na parte da manhã em todas as vias de acesso ao Plano Piloto e, à tarde, no sentido inverso. Atualmente, fazer os 15 quilômetros entre a cidade-satélite do Guará e a rodoviária central demora uma hora nos horários de pico; antes, a viagem era feita em 15 minutos. Em maio foi emplacado em Brasília o veículo de número 1 milhão, e 315 novos veículos entram em circulação todo dia na capital, que já tem um carro para cada 2,4 habitantes. Faltam vagas nos estacionamentos. Na área central, o Plano Piloto precisaria de 45 mil vagas; tem apenas 15 mil, e todas gratuitas. A intenção, no plano de revitalização, é fazer licitação para que empresas construam e explorem garagens subterrâneas, além de criar estacionamentos pagos.


"Estou animado, porque um projeto que deverá ser executado agora, em Brasília, vai resolver a questão do trânsito", afirma Niemeyer. Esse projeto, do também urbanista Jaime Lerner (que ganhou projeção mundial ao resolver problemas urbanos em Curitiba, da qual foi prefeito), prevê a primeira intervenção urbana em Brasília desde que foi construída, sem descaracterizar a área tombada pela Unesco. Os custos estimados são de R$ 1,6 bilhão e incluem a implantação, até 2010, do Veículo Leve Sobre Trilhos (ou VLT), espécie de bonde que ligará o aeroporto à Avenida W3 Sul. Também está previsto um corredor exclusivo para ônibus, o "Interbairros", entre o Plano Piloto e a cidade-satélite do Gama, distante 35 km. Para desafogar o tráfego, ao longo do corredor deverão ser construídos prédios e aglomerados comerciais, encurtando a distância entre casa e trabalho. A W3 Sul, avenida muito degradada, deverá ser revitalizada com novos parques e museus. A orla do Lago Paranoá será urbanizada.


A idéia é fazer de Brasília, enfim, uma cidade cosmopolita. Ela já tem os mais altos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do País: 0,945 no Lago Sul, 0,936 no Plano Piloto e 0,933 no Lago Norte, próximos aos de países nórdicos. Mas é só avançar um pouco, até as cidades-satélites, para que o índice caia a 0,864. "É mais fácil resolver aqui do que em outras cidades", diz o ex-governador do Distrito Federal Cristovam Buarque. Ele lembra que, em alguns aspectos, Brasília melhorou. No governo Roriz, justiça seja feita, chegou-se ao tratamento de 100% da rede de esgoto, com água em 99% das casas e coleta em 93%. Mas, na área da segurança, a cidade é diretamente atingida pela pressão que vem do chamado Entorno do Distrito Federal, um conglomerado de 19 cidades de Goiás e três de Minas Gerais que ficam nas proximidades de Brasília.


Desde meados de 2007, a Força Nacional de Segurança ocupa parte da região. Luziânia, 60 quilômetros ao sul de Brasília, é a 10a cidade com o maior número de homicídios do País: pelos dados do Ministério da Justiça, a média é de 63,9 assassinatos para cada 100 mil habitantes. Também estão no ranking das cidades mais violentas Águas Lindas e Cidade Ocidental, ambas em Goiás. No Distrito Federal, figuram Recanto das Emas (35,5 mortos por 100 mil), Planaltina (32,8) e Santa Maria (30,3). No caso de latrocínio, o índice do Entorno é de 1,8.


De acordo com a Secretaria de Segurança, nos municípios onde a Guarda Nacional atua as ocorrências de furtos e roubos diminuíram em 40%. Para a professora Lourdes Bandeira, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), os dados mostram que a violência ocorre principalmente por causa do abandono dessas comunidades pelo poder público. Na região do Entorno faltam água tratada, esgoto, creche, educação, emprego e segurança. Para o secretário de Segurança Pública do DF, general Cândido Vargas, falta mais: "Principalmente, a presença do Estado."

http://www.estadao.com.br/megacidades/brasilia.shtm

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