domingo, 23 de novembro de 2008

O Caso Odebrecht e o Dilema da Liderança Regional Brasileira


Meridiano 47
Artur Andrade da Silva Machado
Nov 2008

O caso Odebrecht não deve ser entendido apenas no âmbito da relação governo-empresa, como propõe o Equador. Desde uma perspectiva que enquadra os interesses nacionais, tal caso extrapolou também para o âmbito da operação de um dilema estrutural encarado pela liderança regional do Brasil na América do Sul.
Desde o dia 23 de agosto de 2008, quando o presidente do Equador ameaçou expulsar a firma brasileira do seu país, as relações entre Equador e Brasil entraram em um movimento sutil de escalada de tensões. Na ocasião, apenas uma semana depois de Quito anunciar que investigaria problemas na hidrelétrica San Francisco, Correa determinou que a brasileira Odebrecht restaurasse problemas encontrados na usina.
Toda a polêmica gira em torno de falhas na estrutura da hidrelétrica San Francisco, que consiste na segunda maior do Equador e na primeira hidrelétrica totalmente subterrânea do mundo. Construída ao sopé do vulcão Tungurahua pelo consórcio Odebrecht-Alston-Vatech (as duas últimas, empresas européias), a obra foi concluída em junho de 2007, nove meses antes do que havia sido acordado.
Em junho deste ano, após um ano sendo operada por empresa equatoriana, a obra começou a apresentar problemas no funcionamento. Segundo auditoria realizada pelo governo equatoriano, a usina continha problemas severos, como fissuras em dutos subterrâneos, desgastes nos rotores de turbinas e presença de materiais de baixa qualidade na estrutura da obra.
Em virtude de tais problemas, a construtora brasileira (bem como o consórcio entre a empresa estatal brasileira FURNAS com a equatoriana Integral, responsável pela fiscalização da obra) entrou em uma crise de credibilidade junto ao governo equatoriano, que passou a exigir reformas urgentes na usina.
Com nenhuma resposta adotada passado um mês desde o primeiro aviso, Correa levantou o tom da ameaça. O presidente, que estava em campanha em defesa da mudança do texto da Carta Magna do Equador, decretou a custódia dos bens das obras da Odebrecht pelos militares, proibiu que os diretores da companhia cruzassem fronteiras e afirmou que estava analisando a possibilidade de não pagar o crédito com o qual o BNDES financiara a construção da hidrelétrica.
Até tal momento, o governo brasileiro adotava a postura de relativizar a gravidade da crise, a despeito do manifesto descontentamento de grupos de pressão em âmbito nacional. Assim, três dias depois que Correa anunciou que a Odebrecht aceitara as condições para ficar no país (se comprometendo a consertar os problemas detectados e a pagar mais de U$S 40 milhões, pelos prejuízos com a paralisação da usina), o presidente do Equador viajou para Manaus, onde discutiu um acordo de cooperação bilateral com Lula, cujo escopo era centrado na área de promoção de infra-estrutura.
A sequência dos fatos, no entanto, fez com que o Brasil mudasse de atitude. O que até o momento devia ser entendido pela relação governo-empresa, fruto da internacionalização das empresas brasileiras, passa a ser apropriado pela relação entre Brasil e Equador, devido à desproporcionalidade com a qual Quito tratava a questão. Apesar da resposta da Odebrecht, Correa manteve sua decisão de expulsar a empresa e ainda chamou a Petrobrás à ordem, exigindo que a petroleira renegociasse seu contrato de acordo com as novas diretrizes definidas pelo governo equatoriano. A nova linha exigia que todo o lucro derivado da exploração de petróleo fosse enviado ao governo, que se encarregaria de repassar uma fração às petroleiras. À persistência da decisão de Correa, o Brasil respondeu ameaçando suspender todos os acordos de cooperação na área de infra-estrutura que negociara com Quito.
No cume da crise, que figurou apenas no campo da retórica informal, o Equador ameaçou retaliar o Brasil suspendendo o pagamento do financiamento feito pelo BNDES, ao que o Brasil respondeu levantando a possibilidade de interromper todo seu comércio bilateral com o Equador.
Ao final do processo, a expulsão da construtora brasileira foi confirmada e tal decisão foi também estendida por decreto presidencial à FURNAS, sobre a qual Correa declarou que a empresa “também é responsável pelo desastre de San Francisco. Também é brasileira. A empresa construtora é brasileira, e a fiscalização é brasileira. Amigos de alma”.
Não se sabe ao certo qual é o estado real das relações entre os dois países, devido inclusive a uma divergência de opiniões na interpretação da crise. Para Correa, que acredita que o episódio deve ser confinado ao escopo da relação entre governo e empresa, o Equador tomou uma decisão fundamentada na “justiça”, já que a Odebrecht entregou um trabalho mal feito. Por outro lado, segundo a opinião mais divulgada na mídia brasileira, que ressalta o momento de sensibilidade política por que passava o Equador devido à mudança na Constituição, concomitante aos acontecimentos do caso da Odebrecht, a atitude de Correa esteve inteiramente direcionada para garantir bons índices de popularidade interna.
Segundo defende esta análise, a questão extrapolou do âmbito da relação governo empresa, passando para o da relação bilateral entre Brasil e Equador, em virtude da desproporcionalidade com que Quito tratou o tema. Além disso, a percepção de que há direcionamento autonomista em uma série de decisões de Correa, permite reavaliar a questão como um desafio para a liderança regional do Brasil, que enfrenta um dilema estrutural no que se refere à institucionalização do espaço sul-americano.
A despeito das demandas por justiça lançadas por Correa, a resposta que Quito sustentou para a conclusão do embate com a Odebrecht foi deveras desproporcional. Devido a prejuízos causados pelo atraso nas atividades da hidrelétrica, que estavam calculados na ordem de U$S 43 milhões e com os quais a empresa brasileira se comprometeu a arcar, o governo de Correa executou uma ordem de suspensão das atividades da Odebrecht do Equador. Assim, a medida significa também a interrupção da construção de uma rodovia e de um aeroporto e responde por uma perda calculada em mais de U$S 600 milhões.
Outros fatos concatenados ao caso da Odebrecht, como a expulsão da FURNAS, as ameaças direcionadas também à Petrobrás e a suspensão de um tratado sobre base militar com os EUA, indicam que o governo de Correa de fato se aproveitou de uma relação intransigente com agentes externos para compor aspecto importante de sua imagem nacional. Diante de tal interpretação, há sim um caráter populista nas ações de Correa.
Além disso, a interferência do governo brasileiro na questão, desistindo de um projeto bilateral de construção de infra-estrutura que incentivaria trocas comerciais, indica que Brasília absorveu a crise para o âmbito político. Nesse sentido, o caso Odebrecht não é apenas um tropeço natural da marcha de internacionalização das empresas brasileiras, mas tampouco é restrito a um entrave político entre atores da região. Na verdade, o caso Odebrecht figura no interstício da interação da política regional com os processos de integração econômica de mercados e empresas nacionais. Interstício este que tem suas proporções definidas em grande medida por características do projeto brasileiro para a América do Sul, vinculado à liderança regional do Brasil.
Esses acontecimentos, à luz de paralelos com a nacionalização da Petrobrás na Bolívia e com a contestação do tratado de Itaipu no Paraguai - ambos acompanhados por deslocamento das consequências de tais ações para a política interna dos países - assumem uma nova dimensão, que permite reavaliar a liderança brasileira na América do Sul. De fato, a onda de agressões a empresas e signos brasileiros nos países vizinhos é um indicativo de que o soft power do Brasil na região passa por uma fase de recolhimento. Estrutural, em todos os paralelos, é a frustração dos países da região com o projeto de liderança regional do Brasil, voltado para fora e exercitado plenamente apenas no campo discursivo.
Tal frustração deriva de uma falta de incentivos para o Brasil investir na região. Segundo a teoria da hegemonia cooperativa de Pedersen, potências regionais têm incentivos para perseguir institucionalização regional porque é possível criar uma ordem favorável por meio da instrumentalização de instituições de governança pela política externa de tais potências. Por meio de tal estratégia, o líder regional seria persuadido pela possibilidade de levantar várias vantagens: (i) maior capacidade de agregar poder; (ii) novas possibilidades de ampliação de mercado para escoamento de produtos e para acesso a recursos escassos; (iii) mais estabilidade; e (iv) criação de ambiente propício para a difusão de ideais e valores.
No entanto, promover a institucionalização regional é uma grande estratégia que implica também custos, como: (i) a necessidade de compartilhar poder com países da região; (ii) compromissos de longo prazo, exigindo convergência do planejamento estratégico nacional para o nível regional; e (iii) custos de integração, para os quais o líder regional deve estar preparado e com os quais deve estar disposto a arcar.
No contexto da América do Sul, o Brasil é o único país com capacidade para exercer o papel de líder regional, devido aos tamanhos de seu território e população, bem como à força de sua economia. No entanto, o Brasil, que tem diversos problemas para serem solucionados no nível doméstico, não parece estar verdadeiramente disposto a arcar com os custos de tal integração, fazendo opção por um projeto de integração liberal de mercados nacionais.
Assim, o projeto do Brasil para a região focaliza em cooperação para a redução de tarifas alfandegárias e investimentos em infra-estrutura seletivos, que favorecem os interesses da expansão do mercado nacional. Em face dessa proposta de integração regional por meio de forças naturais de mercado e precária em investimentos de institucionalização da esfera regional, os países do centro-norte da região nutrem certa mágoa da liderança do Brasil, fruto de expectativas não confirmadas.
No campo discursivo, o conceito de líder regional é interpretado por poderes secundários na América do Sul como disfarce para o imperialismo brasileiro na região. Historicamente, o Brasil fez uso de sua capacidade para assegurar seus interesses na plataforma regional, onde atuou muitas vezes como co-garante da Ordem internacional liberal. Tal interpretação fez com que a diplomacia brasileira deixasse de lado esse conceito com o final da negociação sobre a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas e enfatizasse o caráter de global player na política externa brasileira.
Por meio do conceito de global player o Brasil deseja se afirmar como uma potência com interesses nas mais variadas regiões do globo e com as mais variadas agendas. Em nome de tal estratégia, o Brasil busca diversificar sua malha de relações para além da América do Sul, participando ativamente em diversas discussões multilaterais, visando se consolidar como parceiro estratégico da União Européia, promovendo acordos bilaterais com países distantes e criando mecanismos multilaterais complexos, como é o caso do IBAS e do BRIC. Esse lado da política externa brasileira tem sido muito bem sucedido, na medida em que o país tem atratividade própria no sistema internacional, além da que o vincula ao seu contexto regional.
No entanto, também a estratégia brasileira de se caracterizar como país importante para considerações do sistema internacional encontra limites. Devido ao seu nível relativamente baixo de capacidades militares, o Brasil não tem como opinar em questões de segurança ou partir em defesa da ordem liberal em um escopo sistêmico, sendo conseqüentemente confinado à sua própria esfera regional (e arredores, para justificar a missão no Haiti).
Assim, tendo em vista os objetivos delimitados no médio prazo pela diplomacia brasileira (como é o caso da reivindicação de assento permanente no Conselho de Segurança da ONU), ambas as estratégias, seja o confinamento regional, seja a atuação global, mostram-se insuficientes. No que diz respeito à primeira, o Brasil se mostra cada vez mais cético de que sua vinculação ao regional possa lhe trazer mais benefícios que custos. Quanto à segunda, falta ao Brasil capacidade para cumprir plenamente com o que se espera de um ator global.
Essa situação leva o Brasil a encarar um dilema estrutural de sua liderança regional: até que ponto vale a pena converter o discurso em ação efetiva? Em outras palavras: será que os benefícios auferidos pela vinculação do Brasil ao signo discursivo de líder regional compensam os custos necessários para a institucionalização da América do Sul como espaço regional coerente e subsidiário da liderança brasileira?
Enquanto os países da América do Sul esperam até que o Brasil assuma definitivamente uma postura frente ao projeto regional, a Venezuela surge com um projeto de institucionalização paralelo, diferente do apresentado pelo Brasil, mais ideologizado e financiado pela diplomacia do petróleo de Chávez. A ideologia do projeto de Chávez, revisionista em relação à ordem sistêmica, bem como as incansáveis propostas de compartilhamento dos créditos oriundos da exportação do petróleo possibilitam uma combinação poderosa para uma audiência frustrada com as propostas liberais, embora sejam mais um empecilho para o reconhecimento externo de alguma espécie de liderança que a Venezuela possa prestar no contexto regional ou sub-regional.
Vale a pena frisar, no entanto, que embora a Venezuela concorra com o Brasil em termos de competência para reunir influência na região, a Venezuela não tem capacidade para substituir ou competir com a liderança brasileira, devendo também montar estratégias conscientes da preponderância do Brasil no plano regional.
Assim, fruto de uma recente virada no escopo do engajamento venezuelano, dilatado do Caribe para o continente, outra virada de estrutura aconteceu. Redefinido o alvo dos interesses de Caracas para o continente, o projeto venezuelano se mesclou com o brasileiro, com a substituição da CASA pela UNASUL, de tal maneira enfraquecendo as bases do projeto regional, que parece realmente ter sido relegado ao segundo plano pela diplomacia brasileira.
Rebuscando o importante papel de atores não-estatais no projeto brasileiro para a região, que incentiva a integração liberal de mercados e financia a infra-estrutura necessária para a atuação privada, a relação dos países da região com atores privados de origem brasileira deve também ser elabora em face da relação dos países com o projeto brasileiro para a região per se.
Nesse sentido, as relações entre o governo e a sociedade brasileiros e cada país da tríade Equador, Bolívia e Paraguai devem ser entendidas à luz da frustração de expectativas desses países com o projeto de institucionalização do regional, sejam elas dirigidas ao modelo liberal de integração, ou à liderança pessoal do Brasil. No caso do Equador, há ainda agravantes lançados pela concessão brasileira de asilo diplomático ao ex-presidente Gutierrez e pela tentativa frustrada de mediação na invasão colombiana ao território equatoriano, interpretada por Quito como afronta inescusável ao princípio da soberania.
Neste ponto das coisas, o cenário mais provável é que o projeto brasileiro para a região continue em banho-maria. Inevitavelmente, o Brasil continuará a participar dos desenvolvimentos no âmbito da UNASUL, em que um Conselho de defesa vem sendo articulado (embora não prometa ir além de um fórum para diálogo político). No entanto, dificilmente o Brasil estará disposto a liderar plenamente o processo de integração depois de tantas modificações levantadas pela ideologia de Chávez.
A relação entre Brasil e Equador deve permanecer como está: apesar de Correia afirmar que corre tudo bem, a relação foi sim esfriada e o interesse pela cooperação reduziu. Importante desenvolvimento que transformará para melhor ou para pior o atual estado das coisas, será como agirá Quito no momento de renegociar o contrato com a Petrobrás. Terá a empresa incentivos para continuar atuando no Equador?
No que se refere a fatores domésticos, apesar de Correa apresentar altos índices de popularidade interna, na última década o país teve quase 10 presidentes diferentes. O extremismo com que Correa tem levado sua política externa traz uma imagem de instabilidade para o observador externo, o que pode levar o país rumo ao isolamento. Devido a litígios de fronteira pendentes, ao mau trato do capital estrangeiro, ao deterioramento nas relações com a Colômbia e ao descuidado diplomático nas relações com as potências mais próximas (Brasil e os EUA), a única alternativa que resta ao Equador parece ser realmente uma aproximação com a Venezuela de Chávez.
Depender de uma única alternativa, todavia, é deveras arriscado. Não se sabe ao certo quais serão os efeitos da crise financeira sobre a economia dolarizada do Equador, mas a queda nos preços do petróleo já afeta as receitas de exportação do Equador e da Venezuela, levantando dúvidas sobre a sustentabilidade do poder de barganha venezuelano nos cenários sistêmico e regional. Se os preços da commodity se mantiverem no mesmo nível, dificilmente poderá Chavez sustentar sua atuação internacional como vinha fazendo. A queda nos preços do petróleo aponta para um cenário em que o Equador de Correa terá trabalho dobrado para contornar os efeitos de uma dupla crise (econômica e de isolamento) que assolaria o país. Não seria possível dizer até quando tal crise seria contida de modo a não extrapolar para a política doméstica.

Artur Andrade da Silva Machado é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais - LARI (andradesmachado@gmail.com).

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