terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A Turquia e a sua peculiar cultura política


A Turquia e a sua peculiar cultura política
Escrito por André Barrinha
01-Set-2008
A realidade política turca não pode ser compreendida se for analisada tendo somente em consideração os pressupostos políticos da ortodoxia ocidental. Não que a Turquia não possa ser considerada ‘democrática’ ou as suas estruturas políticas menos ocidentalizadas que as de países como a Grécia, Chipre, Bulgária ou Roménia; simplesmente obedece a práticas políticas muito próprias.

No sistema político turco, os partidos não se posicionam somente à esquerda e à direita, mas também em relação ao seu grau de ‘kemalismo’, conjunto de princípios básicos que regem o funcionamento da vida social e política na Turquia e que tem por base as medidas tomadas por Mustafa Kemal ‘Atatürk’ aquando e após a criação do estado turco. O caso mais emblemático é o do Partido Republicano do Povo (CHP), membro da Internacional Socialista, mas na prática frequente defensor de medidas conservadoras e de discursos nacionalistas que, por vezes, se confundem com os do Partido do Movimento Nacionalista (MHP).


No sistema político turco é comum a participação activa das forças armadas, uma tradição que vem do tempo otomano e que, de certa forma, se manteve. Os três golpes de Estado de 1960, 1971 e 1981 (ao qual se pode juntar o golpe ‘pós-moderno’ de 1997) são claros sinais desse envolvimento. Durante muitos anos o Conselho de Segurança Nacional (MGK) foi o grande centro de decisão política, com os militares a ditarem muitas das regras. Actualmente, apesar de uma série de reformas que incluíram o aumento do número de civis e a diminuição do peso político do MGK, este continua a ser um órgão extremamente relevante e alvo de grande atenção pública (isto apesar do conteúdo secreto das reuniões).


No sistema político turco é comum partidos políticos serem encerrados ou ilegalizados (24 o foram nos últimos 50 anos), o que mostra claramente que o aparelho judicial tem um papel político de relevo na Turquia. O caso do processo de encerramento do partido do governo, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), é o mais mediático e recente exemplo. Não só o AKP esteve em risco de ser encerrado, como toda uma série de membros do partido, incluindo os actuais presidente e primeiro-ministro da Turquia, Abdullah Gül e Recep Tayyip Erdoğan, estiveram em risco de serem suspensos da actividade política. No que para muitos foi uma forma de retaliação, o governo, por intermédio do procurador-geral de Istambul, desencadeou uma investigação de uma suposta rede de personalidades dos mais variados sectores da sociedade turca – a rede ‘Ergenekon’ – que tinha por objectivo o derrube do actual governo. 86 pessoas foram presas, das quais 48 permanecem detidas. Entre elas encontram-se generais na reforma, empresários e jornalistas, oficialmente acusados de terrorismo, estando entre os seus crimes o assassinato de um juiz em 2006 que estaria contra a proibição do uso do véu islâmico nas instituições públicas turcas.


Na mesma altura em que o partido do governo, AKP, lutava em tribunal por evitar o seu encerramento [1], também o partido nacionalista curdo, Partido da Sociedade Democrática (DTP), tentava evitar o destino de todos os seus antecessores – uma longa história de partidos políticos de base curda encerrados. O aparelho judicial já tinha sido igualmente decisivo, poucos meses antes, na rejeição da eleição parlamentar do candidato presidencial do AKP, Abdullah Gül, levando à convocação de eleições antecipadas das quais o AKP saiu vitorioso de forma avassaladora com 46.6% dos votos.


Como podemos desta forma concluir, na Turquia, para além de ideologias políticas muito próprias e de um papel político ‘diferente’ por parte das forças armadas, justiça e política surgem-nos como conceitos facilmente confundíveis.


Curiosamente, a recente tensão política vivida na Turquia abriu, de certa forma, a possibilidade para a reforma do seu sistema político. Apesar das ameaças e do humilhante processo em tribunal, o AKP acabou por não ser encerrado, sendo somente penalizado no seu financiamento. Ficou o aviso de que os esmagadores resultados eleitorais de Julho de 2007 não foram uma carta branca para o governo desenvolver as suas políticas e que é necessário o governo ter em consideração a opinião dos restantes actores políticos aquando da tomada de decisões tão importantes como, por exemplo, a revisão constitucional. Tal não impede, contudo, que o governo de Erdoğan não retome o ímpeto reformador mostrado durante boa parte do seu primeiro mandato. Em boa verdade, tal será essencial para uma reaproximação de Ancara a Bruxelas.


E se o processo de encerramento do AKP foi para muitos um teste à ‘maturidade’ da democracia turca, o caso Ergenekon será bem mais do que isso. É que para além de mexer directamente com o supostamente imaculado aparelho militar turco, este caso está intimamente ligado a um dos mitos da política turca – o da existência de um Estado paralelo, que ‘realmente’ comanda os destinos do país. Um mito que tem servido para desresponsabilizar políticos e para deixar a população turca desconfiada do seu sistema político. Se se vier realmente a provar a existência e os objectivos desta rede, a sociedade turca poderá respirar um ar mais saudável. Contudo, se tudo isto não tiver de facto passado de uma manobra política, o mito do Estado paralelo continuará e o AKP, embora não tenha sido condenado em tribunal, sê-lo-á pela História como o partido que podia ter reformado a Turquia, caso não tivesse cedido às tentações do peculiar funcionamento do seu sistema político.

Nota:
[1] Tentando assim evitar o destino dado ao que muitos dizem ser o seu antecessor ideológico, o partido Refah, ao qual pertenciam muitos dos actuais membros do actual AKP, e que foi encerrado em 1998 por ordem do tribunal, após a dissolução do governo do qual fazia parte. A dissolução do governo liderado pelo igualmente líder do partido, Necmettin Erbakan, ficaria conhecida como o primeiro golpe de Estado pós-moderno da Turquia, uma vez que foram os militares que pressionaram (e ameaçaram) no sentido da dissolução, sem no entanto ter sido necessário saírem dos quartéis.

A Turquia e a sua peculiar cultura política
01-Set-2008 © 2008 - Revista Autor


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Fonte:
http://revistaautor.com/index.php?option=com_content&task=view&id=264&Itemid=50

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