sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A instrumentalização da defesa dos direitos humanos: os interesses políticos por trás da guerra contra o terrorismo


por Hermes Moreira Júnior

Posted: 13 Dec 2008 05:00 AM CST

No ano em que são comemorados os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, fica evidente a maneira pela qual estes se colocam como fator de análise essencial para a discussão das relações internacionais no mundo contemporâneo. Na verdade, mais precisamente a tríade composta pelas discussões que envolvem a proteção e defesa dos direitos humanos, as migrações e deslocamentos populacionais, e as questões sobre meio ambiente e aquecimento global, tem se caracterizado como elemento fundamental para a avaliação dos rumos da política internacional.
É notório como, fortemente impulsionados pelos atentados de 11 de Setembro de 2001, porém não somente a partir de então, os Estados Unidos buscam organizar os seus sistemas de segurança nacional e internacional por meio de um discurso de promoção e proteção dos direitos humanos e da democracia. Contudo, é patente que tal processo se dá através de medidas políticas guiadas por interesses que colocam os direitos humanos e a democracia à margem dos reais objetivos estadunidenses.
Nesse sentido, a Doutrina de Guerra contra o Terrorismo tem criado um discurso de proteção aos direitos humanos, porém instrumentalizando-os de acordo com suas prioridades estratégicas, gerando enormes constrangimentos àqueles que lutam pela efetiva promoção e proteção das liberdades políticas, econômicas, sociais e culturais.
A proteção dos direitos humanos, sobretudo na cultura ocidental, tem se desenvolvido a partir do século XVIII. A luta pelo reconhecimento, conquista e consolidação de direitos se fortaleceu a partir da Revolução Francesa (1789), se expandiu com a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e buscou a universalização a partir da II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (1993).
Principalmente após o período das duas grandes Guerras Mundiais, houve uma prevalência do discurso de defesa dos direitos humanos no chamado Estado Democrático de Direito, sobretudo nas questões internacionais (proibição às guerras de conquista e estimulo à solução pacífica de controvérsias). Entretanto, observamos que em Estados onde a suspensão da ordem jurídica do estado democrático de direito foi efetuada (regimes autoritários e totalitários da América Latina, Ásia, África e Leste Europeu) o respeito aos direitos humanos passou a ser relativizado de acordo com os interesses daqueles que conduziam tal regime. Atrelava-se, naquele momento, à defesa aos direitos humanos à busca pela consolidação de regimes democráticos.
No entanto, no período pós-Guerra Fria, em meio ao processo de expansão da democracia liberal nos moldes dos vencedores do conflitos à grande parte dos países do sistema internacional, a discussão acerca do respeito e defesa dos direitos humanos não estava mais ligada apenas à questão da existência do regime democrático, mas sim da legitimidade e da efetividade de universalização desses valores, até então vinculados à cultura e modo de vida ocidentais.

Assim, o debate acerca dos direitos humanos ganha um novo contorno, e transita da esfera jurídica (consolidação de um regime de proteção de direitos) para a esfera política (moralidade e legitimidade de expansão desses valores a sociedades diversas). Nesse sentido, a questão dos direitos humanos se torna um fator determinante da política internacional, sobretudo no que tange à perspectiva relacionada a intervenções militares e à soberania estatal. Seriam os direitos humanos um tema universal precedente à lógica do sistema estatal como o conhecemos?
Desse modo, observamos que os direitos humanos assumem um papel que representa a ambiguidade inerente ao tema, que se encontra nos binômios liberdade/aprisionamento, emancipação/hegemonia, e faz com que este se desloque da esfera de aquisição e garantia de direitos para a esfera do debate político. O que faz com que os direitos humanos se caracterize como elemento central para análise dos conflitos contemporâneos.
Para ampliar a visão sobre esses dois binômios (liberdade/aprisionamento, emancipação/hegemonia), devemos voltar à questão da relação entre direitos humanos e democracia. Atualmente, o debate se encontra na esfera de expansão dos regimes democráticos, baseados nos preceitos de liberdades individuais, a todo o sistema. Nesse aspecto recaímos no primeiro binômio, liberdade/aprisionamento: os direitos humanos são universais?
Esse debate se dá como fruto de uma concepção de mundo que vislumbra a defesa dos direitos humanos como uma perspectiva de liberdade. Contudo, se encontra no limiar do aprisionamento, uma vez que a universalização acarreta conflitos de valores em diferentes culturas. Nesse sentido, o diálogo intercultural - conforme propõe Boaventura de Sousa Santos - deve ser baseado no respeito aos valores comuns da dignidade humana, que necessita ser o ponto de convergência entre aqueles que defendem os valores dos direitos humanos.
O segundo binômio, emancipação/hegemonia, se coloca como o mais problemático, polêmico e atual. Seria a proteção dos direitos humanos um valor desprovido de intenções ligadas à lógica do poder? A defesa dos direitos humanos seria um passo essencial a um projeto posterior de emancipação, ou apenas um elemento ordenador e regulador vinculado a um processo de dominação e hegemonia?
A lógica de interesses e de poder está voltada exatamente nesta questão. Se por um lado a defesa da democracia e dos direitos humanos se coloca como essencial para a manutenção das condições dignas de organização social e individual, por outro, ela se torna um instrumento de interesses daqueles que as conduzem, muitas vezes sem os objetivos éticos e humanistas que são encontrados em seus discursos.
Tomaremos assim como base o discurso norte-americano de defesa dos direitos humanos e expansão da democracia. As ações unilaterais norte-americanas criam uma insegurança coletiva, e geram um descrédito na política de apoio aos direitos humanos, principalmente ao passo que sua política utiliza o direito internacional público como ferramenta em função de seus interesses nacionais. O discurso neoconservador, predominante na doutrina de segurança dos governos W. Bush, ressalta essa perspectiva. O realismo democrático (formulado para efetuar intervenções pontuais, e servir como um guia de “onde intervir”, de “onde construir a democracia” e de “onde construir uma nova nação”) é emblemático dessa situação. Com critérios bem claros, demonstra que aliada à lógica de promoção dos direitos humanos está a lógica de “intervir onde faz a diferença”.
Assim, fica claro que na guerra contra o terrorismo a ameaça terrorista ganhou contornos amplos e status de ameaça internacional, permitindo aos EUA estendessem seu papel de polícia global. Nesse sentido é possível observarmos a instrumentalização do terror para apresentar e aplicar o unilateralismo norte-americano, passando este do nível de retórica à prática.
Analisando especificamente a Doutrina Bush, a mesma foi elaborada pelo Conselho de Segurança Nacional e pela Casa Branca, e é definida como a união dos valores e dos interesses norte-americanos, transformando a postura tática dos Estados Unidos, que passa da contenção à prevenção. Na avaliação de seus formuladores, no início do século XXI, os EUA atravessam o momento de maior poder de sua história e devem estar preparados para exercê-lo de forma construtiva, preservando e expandindo seus interesses nacionais e de segurança à luz das novas ameaças nascentes no sistema internacional.

Logo, os direitos humanos, na esteira do processo de “guerra contra o terrorismo”, tem sofrido uma instrumentalização em favor de interesses particulares. Sua promoção, consolidação e defesa não tem sido mais buscados com base em sua função e interesses precípuos, de universalidade, indivisibilidade e interdependência de três liberdades: liberdade para viver sem medo (luta pela paz); liberdade para viver sem miséria (luta pelo desenvolvimento); liberdade para viver com dignidade (direitos de cidadania).

Hermes Moreira Júnior é Mestrando em Relações Internacionais e Desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista - UNESP (hermes.moreira@marilia.unesp.br).

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