terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Juros, mentiras e videoteipe



Por Marcos Nobre e Vinicius Torres Freire

As altas taxas de juros no Brasil não devem ser entendidas como uma questão exclusivamente econômica

Uma das perguntas que atormentam os economistas (teoricamente) e todos os brasileiros (no dia-a-dia) é justamente: por que os juros são tão altos no Brasil? Em termos técnicos, a pergunta é dificílima e, provavelmente, com múltiplas respostas corretas. A solução ideal estaria então em conseguir combinar as várias respostas em uma explicação complexa.

Mas, no quadro teórico dominante na economia hoje, mesmo uma explicação muito complexa exclui, por exemplo, a relação dos juros com aspectos importantes da estrutura social e política brasileira. E não parece possível responder satisfatoriamente a pergunta sem pelo menos tentar estabelecer essa relação. Dito de outra maneira: a taxa de juros não pode ser compreendida apenas como um problema estritamente econômico. E não somente a taxa de juros.
Os sucessivos arranjos políticos brasileiros sempre tiveram de lidar crescentemente com a tarefa primordial de impedir que o tema das desigualdades sociais viesse a se tornar de fato (e não somente no discurso) o objeto central da política pública e do desenvolvimento do país. Com ditaduras, se necessário. Mas sem nunca ignorar que uma ordem de dominação não pode se manter apenas na base da pancada.
A inflação desempenhou por longo tempo o papel central no “pacto pela desigualdade” que caracterizou na prática o nacional-desenvolvimentismo. A inflação tinha essa característica fundamental de produzir crescimento econômico (e, portanto, de melhorar, em geral, os padrões de vida) sem alterar fundamentalmente os padrões da desigualdade brasileira. Não por acaso, um dos primeiros atos importantes de ditadura militar de 1964 foi a institucionalização da inflação, uma invenção brasileira que tinha o nome de “correção monetária”.
Mas em determinado momento a inflação deixou de ser o mecanismo mais eficaz de funcionamento desse pacto de dominação brasileiro, dividido por um abismo entre os que tinham e os que não tinham renda suficiente para ter acesso a aplicações financeiras protetoras. E, nesse momento, a inflação revelou muito mais que uma divisão crua entre privilegiados e desprivilegiados; revelou também as disputas no interior do próprio estrato privilegiado da sociedade que conseguia se proteger mal ou bem dos efeitos deletérios mais diretos da inflação.

Os 15 anos compreendidos entre 1979 e 1994 foram marcados por dois diferentes níveis da disputa distributiva que se expressava em inflação. A redemocratização, em um ambiente tenso de resto pela acelerada urbanização, trouxe com ela as pressões de estratos de renda mais baixos contra o congelamento da desigualdade representado pela inflação. Mas trouxe também um rompimento da aliança tácita dos estratos privilegiados que havia sido garantida na marra pela ditadura militar.
Nesse momento, a inflação já não mais representava um instrumento consentido e controlável para a manutenção das desigualdades históricas brasileiras. Ao contrário, havia se tornado um obstáculo quase intransponível à composição de um novo bloco hegemônico no país. Não por acaso, o período de 1979 a 1994 coincide com as mais altas taxas de inflação da história brasileira.
O governo Figueiredo, o último da série dos generais da ditadura, já enfrentou taxas de inflação preocupantes. No período imediatamente anterior à edição do chamado Plano Cruzado, em fevereiro de 1986, as taxas mensais se aproximaram perigosamente dos 20%. E é por essa altura que começa a se formar um novo consenso social, político e econômico no Brasil: a partir dos anos 1980, a inflação se torna o centro de todas as discussões e o objeto primeiro de todos os sucessivos planos econômicos.
O conflito distributivo era já evidente quando Delfim Netto, reincidente ministro dos governos militares, afirmava a relação entre aumentos salariais e escalada inflacionária, buscando conter pressões por redistribuição por parte dos trabalhadores. Mas ficou cristalino no momento em que a assim chamada “explosão de demanda” que acompanhou o Cruzado mostrou ser, antes de mais nada, a explosão de um consumo irrefreado de alimentos.
A análise das razões do insucesso do Plano Cruzado mostra que a inflação brasileira sempre teve duas faces, que se confundem com o próprio período chamado “nacional-desenvolvimentista” brasileiro. De um lado, mantinha quase intocado o padrão altamente desigual de distribuição de renda brasileiro. De outro, financiava, à base de descontrole fiscal, um crescimento econômico derivado ainda de empréstimos e investimentos externos com fechamento econômico rígido. A combinação perversa dessas duas faces foi levada a seu limite extremo pelo chamado “milagre econômico” da ditadura militar. Era essa combinação que tornava possível desenvolver o país sem tocar em suas desigualdades estruturais.
O insucesso do Plano Cruzado pôs a nu essa dupla face do processo inflacionário brasileiro. Além disso, ao conter em um primeiro momento a inflação, o Cruzado evidenciou as fraturas de pilares históricos do arranjo político-social brasileiro conhecido como nacional-desenvolvimentismo: não era possível conter a inflação sem abertura econômica; não era possível conter a inflação sem um novo arranjo do gasto público; não era possível estancar a inflação sem um novo arranjo político hegemônico. Esse, no fundo, o conteúdo político-social da chamada “inércia inflacionária”.
Todos os planos econômicos que se seguiram não fizeram senão repetir a fórmula do Cruzado, estruturalmente comprometida. Mas, ao mesmo tempo, cada desastre que provocaram foi um passo na consolidação da necessidade de abertura econômica, do rearranjo do gasto público e da produção de uma nova aliança política hegemônica. Se Collor teve clareza da necessidade da abertura econômica, colocou-a em prática da mesma forma desvairada como conduziu seu governo. Não foi capaz de reestruturar o Estado e o gasto público. E, principalmente, não passou nem perto de construir a necessária nova aliança política hegemônica capaz de sustentar de fato um plano antiinflacionário bem sucedido.
O sucesso do Plano Real se deve justamente ao sucesso da aliança política a sustentá-lo, concomitante com a implantação da abertura econômica, com rearranjos mais ou menos pontuais na despesa pública e com reformas constitucionais dirigidas contra pilares importantes do padrão nacional-desenvolvimentista anterior. Com o Plano Real, a política brasileira mudou de patamar. A inflação deixou de ser centro mais imediato dos debates e deixou de ser o mecanismo mais visível de manutenção das desigualdades.

O “pacto pela desigualdade” antes sustentado pela inflação parece hoje sem substituto à vista. É difícil imaginar um mecanismo ideológico tão poderoso e eficiente como foi a inflação para a manutenção das desigualdades brasileiras. De outro lado, o problema da desigualdade foi de fato (e não apenas no discurso) para o centro da agenda. E um dos complicadores dessa história está justamente em que as disputas políticas em torno do tema da desigualdade passam hoje pelo debate público, esotérico em grande medida, sobre novos temas: câmbio e das contas públicas, juros e crescimento econômico.
O novo pacto de dominação brasileiro inaugurado oficialmente em 1994 foi possível nos termos ainda conservadores da aliança entre PSDB e PFL porque a irresponsabilidade fiscal do primeiro mandato de FHC reduziu drasticamente o ritmo possível de redução da desigualdade, amarrando as políticas públicas em margens bastante estreitas, quando se olha para o tamanho das desigualdades por enfrentar.
Nesse sentido, não apenas o “passivo” do “pacto pela desigualdade” do nacional-desenvolvimentismo anterior é um limitador importante e que tem de ser pago pelo conjunto da sociedade (e não apenas pelos seus beneficiários), mas também o “passivo” do novo pacto inaugurado por FHC veio se somar a ele. Se há algum sentido em falar em “herança maldita”, é disso que se trata.
Daí que o novo arranjo político inaugurado pelo Real tenha por base a idéia de que o enfrentamento da desigualdade é incremental e não maximalista. Quer dizer, a desigualdade foi para o centro da agenda, mas a sua redução é assunto para décadas. É isso o que dizia o ministro Pedro Malan, ao mesmo tempo em que aumentava alucinadamente o endividamento público e, desse modo, realizava a sua própria profecia.
Seja como for, discutimos hoje margens e ritmos de redução da desigualdade. Surgem daí pelo menos duas questões interessantes. A primeira e mais geral é a seguinte: essa lógica “marginalista” e incremental vai ser aceita pela sociedade como pano de fundo mais ou menos consensual sobre o qual se joga o jogo político? A segunda questão é: o quanto o ritmo e a extensão da “margem” são construídos politicamente e não dados insuperáveis da realidade?
Essas duas questões terão um teste importante nas eleições desse ano. Tanto para tentarmos saber o quanto o jogo político fundado na disputa de margens será aceito pela sociedade brasileira, como para aferir a capacidade de mobilização de movimentos sociais e de entidades da sociedade civil e do debate público em geral para fixar os máximos e mínimos das margens em disputa. Por isso, a discussão sobre um tema como a taxa de juros, ainda que esotérica em boa medida, é parte importante dessa fixação de margens.
Voltando ao início, então: por que nossas taxas de juros são altas? Uma parte importante da resposta está no fato de que o custo de crescer sobre a base de abismais diferenças de renda é produzir inflação. E não importa aqui se essas taxas são altas ou altíssimas. Desaparecida a inflação como mecanismo de escape para o crescimento com desigualdade, restou-nos discutir margens e ritmos para reduzir desigualdades sem poder recorrer ao escape inflacionário. Esse é hoje o verdadeiro tema de nossas disputas políticas. Da taxa de juros inclusive.
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Marcos Nobre e Vinicius Torres Freire
Marcos Nobre é professor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap. Entre outras publicações, é co-organizador e um dos autores do livro "Participação e deliberação - Teoria democrática e experiências institucionais no Brasil Contemporâneo" (Editora 34).

Vinicius Torres Freire foi editor de economia do jornal ''Folha de S. Paulo'', onde atualmente exerce a função de Secretário de Redação. Entre outras publicações, é co-autor, com Marcos Nobre, do artigo "Política difícil, estabilização imperfeita: Os anos FHC'' ("Novos estudos Cebrap, n. 52, julho de 1998).
Revista Trópico

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