por Carmen Licia Palazzo
Posted: 12 Dec 2008 05:00 AM CST
Meridiano 47
A análise dos conflitos entre as duas principais correntes muçulmanas, sunitas e xiitas, procurando entendê-las numa perspectiva histórica de longa duração, permite lançar algumas luzes no complexo quadro de violência que retrata o Oriente Médio contemporâneo. Múltiplos são os fatores que têm levado a guerras na região, mas a luta dentro do próprio Islã, com seus desdobramentos merece uma atenção especial na medida em que se faz presente nas mais diversas realidades regionais.
A fratura interna no mundo muçulmano ocorreu muito cedo, já no século VII, como conseqüência de uma guerra civil na disputa pela sucessão do califado. Após a morte do quarto califa, Ali, primo e genro de Maomé, a comunidade (”umma”) cindiu-se em dois grupos ou facções. Aqueles que defendiam que os candidatos à sucessão fossem necessariamente membros da família do Profeta ficaram conhecidos como os partidários de Ali (”xiit’Ali”). No entanto venceu o conflito a facção que havia se insurgido contra a descendência familiar e que pregava a escolha do califa entre os membros mais respeitados da “umma” e que melhor representassem a tradição (”sunna”). Aqueles que mais tarde seriam denominados xiitas, derrotados, não apenas eram vistos como contestadores da ordem vigente mas tornaram-se também suspeitos de conspirar contra o poder. O trágico fecho da disputa sucessória foi o assassinato, no ano de 680, de Hussein, filho de Ali, em Karbala (atual Iraque). Consolidava-se, assim, a hegemonia sunita mas, ao mesmo tempo, criava-se um mártir. Ainda hoje a morte de Hussein ecoa na memória coletiva das comunidades xiitas, erguendo-se como um símbolo da opressão dentro do próprio Islã.
Muitos foram os percalços e as lutas que envolveram as duas principais facções muçulmanas no decorrer dos séculos. É importante lembrar que, apesar da ênfase que costuma ser dada aos aspectos religiosos das disputas, no rompimento do século VII o que estava em jogo era essencialmente uma questão de ordem política. Naquele momento não havia diferença significativa de dogma e nem de prática religiosa. Mas com o passar do tempo, os rituais de um e de outro grupo foram se distanciando e os xiitas, minoritários no conjunto do Islã, desenvolveram uma cultura do martírio e uma espiritualidade carregada de emoções, muito visível no chamado festival de Ashura, quando é anualmente evocada a morte de Hussein.
Com exceção do Irã onde o xiismo, a partir do século XVI, passou a se constituir em religião oficial, com o apoio da dinastia safávida, em outros países tem sido registrada uma história de discriminação e muitas vezes de perseguições, especialmente no Líbano, na Arábia Saudita, no Bahrein, no Kuwait e no Iraque na época de Saddam Hussein. O grau extremo de violência anti-xiita por parte do ditador iraquiano encontra-se bem documentado já que o seu partido, o Baath, realizava abertamente perseguições sistemáticas cujo intuito era o de disseminar o medo. Um dos exemplos mais marcantes de tais atos foi o assassinato do respeitado aiatolá Baqr al-Sadr que, antes de ser executado, em 1980, foi obrigado a presenciar o estupro e a morte de sua própria irmã.
O fosso existente entre sunitas e xiitas iraquianos tornou-se quase intransponível à custa da crescente violência. Assim, por mais que, atualmente, o moderado e pragmático aiatolá Sistani se esforce no sentido de lembrar que ambas as facções pertencem a uma única raiz islâmica, o contencioso político entre elas continua muito grande. E amplia-se o espaço para as ações da Brigada Mahdi, liderada por Muqtada al-Sadr, portador de uma mensagem de revolta, pouco afeito ao diálogo e ancorado em representações passionais do xiismo, como a do retorno do Imã oculto, o Mahdi.
Outro dado importante a ser levado em conta quando se analisa o relacionamento entre sunitas e xiitas no Iraque e as possibilidades de um entendimento duradouro entre ambas as partes é o da discriminação étnica. Há muitos iranianos entre a comunidade xiita, principalmente na região de Karbala, Najaf e Kufa, e a elite árabe do país sempre os tratou como cidadãos de segunda categoria, acentuando ainda mais as diferenças numa sociedade onde o federalismo poderia ser uma solução viável para a reconstrução do Estado.
Ainda que a chamada questão curda tenha conduzido aos dramáticos ataques de extermínio por parte de Saddam Hussein e envolva também problemas de fronteiras e de relacionamento com países vizinhos, são as disputas entre xiitas e sunitas que maiores dificuldades podem trazer para a consolidação de um governo unido e administrativamente eficaz. E, se por um lado, a tão temida ingerência do Irã é algo a ser observado no decorrer do processo de maiores conquistas políticas por parte dos xiismo iraquiano, por outro lado não seria demais lembrar que, em 1991, a Arábia Saudita conseguiu convencer os Estados Unidos de que estes não deveriam apoiar uma revolta xiita que tinha como objetivo a derrubada de Saddam. O frágil equilíbrio da política interna iraquiana fica, pois, dependente não apenas de seus próprios problemas mas também da atuação de duas grandes forças regionais, a dos aiatolás iranianos e a do imanato wahabita que é o esteio da casa de Saud. E bem maior do que a preocupação com os inflamados discursos xiitas deveria ser a atenção dada às ações do sunismo, o qual, no Iraque, tem buscado apoio nos grupos fundamentalistas que consideram o xiismo uma heresia do Islã.
A invasão americana inverteu a ordem no poder abrindo espaço para uma representação xiita mais justa no governo mas não levou em conta as conseqüências que inevitavelmente se seguiriam após o desmantelamento do baathismo, ou seja, o enfraquecimento das elites sunitas moderadas e dos componentes laicos na política do Iraque. Assim, a tendência atual é a de que o sunismo, antes pouco afeito, no país, a uma religiosidade estrita, agora passe a estreitar os laços com o wahabismo saudita e com os chamados neo-salafistas da Al Qaeda, que fornecem uma ideologia jihadista de luta para a recuperação do poder perdido.
Partilhando o mesmo livro sagrado, sunismo e xiismo foram, ao longo dos séculos, aprofundando o rompimento que os separou nos primórdios do Islã. A tal ponto que, atualmente, uma análise acurada de ambas as correntes deixa claro que as diferenças são mais significativas do que as semelhanças. No caso do Iraque, qualquer proposta para uma paz efetiva terá que levar em conta tanto a enormidade da fratura quanto o crescimento do componente religioso. Ou seja, a maneira como política e espiritualidade interagem de modo a enfatizar não apenas o discurso do messianismo xiita, que vem assumindo grandes proporções na região mesopotâmica, mas também o recrudescimento do fundamentalismo sunita. Se, inicialmente, as diferenças de caráter religioso eram pouco significativas na divisão entre os dois grupos, hoje em dia, e principalmente no Iraque, etnia e religião são elementos incontornáveis na busca da construção da Nação.
Carmen Licia Palazzo é Historiadora, especialista em Oriente Médio e História do Islã, professora do Centro Universitário de Brasília - UNICEUB (carmenlicia@yahoo.com).
Posted: 12 Dec 2008 05:00 AM CST
Meridiano 47
A análise dos conflitos entre as duas principais correntes muçulmanas, sunitas e xiitas, procurando entendê-las numa perspectiva histórica de longa duração, permite lançar algumas luzes no complexo quadro de violência que retrata o Oriente Médio contemporâneo. Múltiplos são os fatores que têm levado a guerras na região, mas a luta dentro do próprio Islã, com seus desdobramentos merece uma atenção especial na medida em que se faz presente nas mais diversas realidades regionais.
A fratura interna no mundo muçulmano ocorreu muito cedo, já no século VII, como conseqüência de uma guerra civil na disputa pela sucessão do califado. Após a morte do quarto califa, Ali, primo e genro de Maomé, a comunidade (”umma”) cindiu-se em dois grupos ou facções. Aqueles que defendiam que os candidatos à sucessão fossem necessariamente membros da família do Profeta ficaram conhecidos como os partidários de Ali (”xiit’Ali”). No entanto venceu o conflito a facção que havia se insurgido contra a descendência familiar e que pregava a escolha do califa entre os membros mais respeitados da “umma” e que melhor representassem a tradição (”sunna”). Aqueles que mais tarde seriam denominados xiitas, derrotados, não apenas eram vistos como contestadores da ordem vigente mas tornaram-se também suspeitos de conspirar contra o poder. O trágico fecho da disputa sucessória foi o assassinato, no ano de 680, de Hussein, filho de Ali, em Karbala (atual Iraque). Consolidava-se, assim, a hegemonia sunita mas, ao mesmo tempo, criava-se um mártir. Ainda hoje a morte de Hussein ecoa na memória coletiva das comunidades xiitas, erguendo-se como um símbolo da opressão dentro do próprio Islã.
Muitos foram os percalços e as lutas que envolveram as duas principais facções muçulmanas no decorrer dos séculos. É importante lembrar que, apesar da ênfase que costuma ser dada aos aspectos religiosos das disputas, no rompimento do século VII o que estava em jogo era essencialmente uma questão de ordem política. Naquele momento não havia diferença significativa de dogma e nem de prática religiosa. Mas com o passar do tempo, os rituais de um e de outro grupo foram se distanciando e os xiitas, minoritários no conjunto do Islã, desenvolveram uma cultura do martírio e uma espiritualidade carregada de emoções, muito visível no chamado festival de Ashura, quando é anualmente evocada a morte de Hussein.
Com exceção do Irã onde o xiismo, a partir do século XVI, passou a se constituir em religião oficial, com o apoio da dinastia safávida, em outros países tem sido registrada uma história de discriminação e muitas vezes de perseguições, especialmente no Líbano, na Arábia Saudita, no Bahrein, no Kuwait e no Iraque na época de Saddam Hussein. O grau extremo de violência anti-xiita por parte do ditador iraquiano encontra-se bem documentado já que o seu partido, o Baath, realizava abertamente perseguições sistemáticas cujo intuito era o de disseminar o medo. Um dos exemplos mais marcantes de tais atos foi o assassinato do respeitado aiatolá Baqr al-Sadr que, antes de ser executado, em 1980, foi obrigado a presenciar o estupro e a morte de sua própria irmã.
O fosso existente entre sunitas e xiitas iraquianos tornou-se quase intransponível à custa da crescente violência. Assim, por mais que, atualmente, o moderado e pragmático aiatolá Sistani se esforce no sentido de lembrar que ambas as facções pertencem a uma única raiz islâmica, o contencioso político entre elas continua muito grande. E amplia-se o espaço para as ações da Brigada Mahdi, liderada por Muqtada al-Sadr, portador de uma mensagem de revolta, pouco afeito ao diálogo e ancorado em representações passionais do xiismo, como a do retorno do Imã oculto, o Mahdi.
Outro dado importante a ser levado em conta quando se analisa o relacionamento entre sunitas e xiitas no Iraque e as possibilidades de um entendimento duradouro entre ambas as partes é o da discriminação étnica. Há muitos iranianos entre a comunidade xiita, principalmente na região de Karbala, Najaf e Kufa, e a elite árabe do país sempre os tratou como cidadãos de segunda categoria, acentuando ainda mais as diferenças numa sociedade onde o federalismo poderia ser uma solução viável para a reconstrução do Estado.
Ainda que a chamada questão curda tenha conduzido aos dramáticos ataques de extermínio por parte de Saddam Hussein e envolva também problemas de fronteiras e de relacionamento com países vizinhos, são as disputas entre xiitas e sunitas que maiores dificuldades podem trazer para a consolidação de um governo unido e administrativamente eficaz. E, se por um lado, a tão temida ingerência do Irã é algo a ser observado no decorrer do processo de maiores conquistas políticas por parte dos xiismo iraquiano, por outro lado não seria demais lembrar que, em 1991, a Arábia Saudita conseguiu convencer os Estados Unidos de que estes não deveriam apoiar uma revolta xiita que tinha como objetivo a derrubada de Saddam. O frágil equilíbrio da política interna iraquiana fica, pois, dependente não apenas de seus próprios problemas mas também da atuação de duas grandes forças regionais, a dos aiatolás iranianos e a do imanato wahabita que é o esteio da casa de Saud. E bem maior do que a preocupação com os inflamados discursos xiitas deveria ser a atenção dada às ações do sunismo, o qual, no Iraque, tem buscado apoio nos grupos fundamentalistas que consideram o xiismo uma heresia do Islã.
A invasão americana inverteu a ordem no poder abrindo espaço para uma representação xiita mais justa no governo mas não levou em conta as conseqüências que inevitavelmente se seguiriam após o desmantelamento do baathismo, ou seja, o enfraquecimento das elites sunitas moderadas e dos componentes laicos na política do Iraque. Assim, a tendência atual é a de que o sunismo, antes pouco afeito, no país, a uma religiosidade estrita, agora passe a estreitar os laços com o wahabismo saudita e com os chamados neo-salafistas da Al Qaeda, que fornecem uma ideologia jihadista de luta para a recuperação do poder perdido.
Partilhando o mesmo livro sagrado, sunismo e xiismo foram, ao longo dos séculos, aprofundando o rompimento que os separou nos primórdios do Islã. A tal ponto que, atualmente, uma análise acurada de ambas as correntes deixa claro que as diferenças são mais significativas do que as semelhanças. No caso do Iraque, qualquer proposta para uma paz efetiva terá que levar em conta tanto a enormidade da fratura quanto o crescimento do componente religioso. Ou seja, a maneira como política e espiritualidade interagem de modo a enfatizar não apenas o discurso do messianismo xiita, que vem assumindo grandes proporções na região mesopotâmica, mas também o recrudescimento do fundamentalismo sunita. Se, inicialmente, as diferenças de caráter religioso eram pouco significativas na divisão entre os dois grupos, hoje em dia, e principalmente no Iraque, etnia e religião são elementos incontornáveis na busca da construção da Nação.
Carmen Licia Palazzo é Historiadora, especialista em Oriente Médio e História do Islã, professora do Centro Universitário de Brasília - UNICEUB (carmenlicia@yahoo.com).
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