Esses grupos formam hoje uma das muitas expressões culturais do Cerrado. O leque abre-se na Pirenópolis das cavalhadas, em que mouros enfrentam cristãos, todos ricamente paramentados. Ou no Catalão das congadas. Ou em Goiás, antiga Vila Boa, ex-capital goiana, onde os turistas podem se extasiar com as cores e os sons da Procissão do Fogaréu, na quarta-feira da Semana Santa, quando dezenas de "farricocos", com uma roupa que vai dos pés à cabeça e um capuz parecido com o da Ku Klux Klan, tocam tambores à luz apenas de archotes (todas as lâmpadas da cidade são apagadas) e perseguem um Cristo pelas ruas de pedras, passando pela casa da poeta Cora Coralina. Impressionante. Se quiser, poderá conhecer o ateliê da pintora Goiandira do Couto, que utiliza em seus quadros cores dos mais de 500 pigmentos extraídos de areias que ela recolhe na serra Vermelha, uma área de preservação que ao longo do dia se tinge de muitas cores. E que contribuiu, ao lado da riqueza arquitetônica, para transformar a cidade, desde 1999, em Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Humanidade, reconhecida pela Unesco.
A despeito de tantas virtudes, o Cerrado parece condenado. Segundo a Embrapa Monitoramento por Satélites, menos de 5% da área total do ambiente apresenta fragmentos com mais de 2 mil hectares contínuos, capazes de sobreviver - em trechos menores as cadeias genéticas, reprodutivas, alimentares não conseguem se manter. E em boa parte dos fragmentos menores há ocupação progressiva em "pastagens naturais". Para piorar, o recente avanço da cana-de-açúcar no Cerrado está causando forte desmatamento nos dois Mato Grosso, além de Goiás, Tocantins, Piauí e oeste da Bahia, quando a expansão poderia perfeitamente acontecer em áreas de pastagens, onde o índice de degradação está em torno de 70% do total. A produção de carvão para siderúrgicas é outro sério problema.
Além da perda da biodiversidade - da qual poderiam vir novos medicamentos, alimentos e materiais -, a devastação terá graves conseqüências no clima. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, de 750 milhões de toneladas anuais de emissão de gases no país como resultado de desmatamento e queimadas, a Amazônia responde por 59%. E isso quer dizer que 41% ocorrem fora de lá, principalmente no Cerrado. Nos cenários que traçou para o Brasil, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais já prevê para o centro-oeste um aumento de temperatura entre 4 e 6 graus Celsius ao longo deste século. A perda também será relevante na área dos recursos hídricos, já que nas áreas desmatadas é bem menor a retenção de água. O Ministério do Meio Ambiente tem indicações de que está se reduzindo o volume de água retido no subsolo. Com isso, poderão ser afetadas inclusive as bacias em outros biomas que recebem água do Cerrado.
Contribui para o descaso com esse bioma o fato de ele não haver sido incluído entre os que a Constituição de 1988, no artigo 225, parágrafo 4º, considera "patrimônio nacional", como a floresta Amazônica, a mata Atlântica, a serra do Mar e o Pantanal Mato-Grossense. Há quase 14 anos está empacada no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional que retiraria do Cerrado, da Caatinga e do Pampa essa condição de "primos pobres" entre os ecossistemas brasileiros e os incluiria no artigo 225. Contudo, a bancada ruralista, com outros apoios, não permite que seja aprovada, pois considera o Cerrado o lugar ideal para a expansão da agropecuária. Essa não é a visão apenas dessa ala do Congresso. Ela tem adeptos nos mais altos níveis do governo federal.
Falta ao país, na verdade, uma estratégia que privilegie recursos e serviços naturais no centro de todo o planejamento nacional. Porque, como têm afirmado os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, esses recursos e serviços são hoje fator escasso no mundo, já que estamos consumindo cerca de 25% mais do que a biosfera terrestre pode repor. O Brasil é dono de posição privilegiada, que o coloca como uma espécie de sonho de futuro: tem território continental, Sol o ano todo, 12% de toda a água doce superficial do planeta, de 15% a 20% da diversidade biológica global. Além disso, pode dispor de uma matriz energética renovável e limpa, com hidreletricidade, energia solar, eólica (seu potencial é o dobro do consumo total de energia no país hoje), de marés e de biocombustíveis (álcool, mamona, dendê, pinhão-manso, soja).
Talvez contribua para esse drama silencioso a idéia de ser o Cerrado uma "paisagem triste, feia e inútil", como mostraram pesquisas do governo do Distrito Federal na década de 90. Pessoas que se impressionam com o cenário de árvores retorcidas e "campos sujos". A essa visão é preciso contrapor os versos magistrais do poeta brasiliense Nicolas Behr, para quem "nem tudo o que é torto é errado: veja as pernas do Garrincha, veja as árvores do Cerrado".
O jornalista Washington Novaes é, ele próprio, um habitante do Cerrado: vive em Goiânia. Foi por dois anos secretário do Meio Ambiente de uma unidade federativa de Cerrado, o Distrito Federal, nos anos 90.
Por: Washington Novaes Foto: Luciano Candisani
Matéria publicada na Revista National Geographic
A despeito de tantas virtudes, o Cerrado parece condenado. Segundo a Embrapa Monitoramento por Satélites, menos de 5% da área total do ambiente apresenta fragmentos com mais de 2 mil hectares contínuos, capazes de sobreviver - em trechos menores as cadeias genéticas, reprodutivas, alimentares não conseguem se manter. E em boa parte dos fragmentos menores há ocupação progressiva em "pastagens naturais". Para piorar, o recente avanço da cana-de-açúcar no Cerrado está causando forte desmatamento nos dois Mato Grosso, além de Goiás, Tocantins, Piauí e oeste da Bahia, quando a expansão poderia perfeitamente acontecer em áreas de pastagens, onde o índice de degradação está em torno de 70% do total. A produção de carvão para siderúrgicas é outro sério problema.
Além da perda da biodiversidade - da qual poderiam vir novos medicamentos, alimentos e materiais -, a devastação terá graves conseqüências no clima. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, de 750 milhões de toneladas anuais de emissão de gases no país como resultado de desmatamento e queimadas, a Amazônia responde por 59%. E isso quer dizer que 41% ocorrem fora de lá, principalmente no Cerrado. Nos cenários que traçou para o Brasil, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais já prevê para o centro-oeste um aumento de temperatura entre 4 e 6 graus Celsius ao longo deste século. A perda também será relevante na área dos recursos hídricos, já que nas áreas desmatadas é bem menor a retenção de água. O Ministério do Meio Ambiente tem indicações de que está se reduzindo o volume de água retido no subsolo. Com isso, poderão ser afetadas inclusive as bacias em outros biomas que recebem água do Cerrado.
Contribui para o descaso com esse bioma o fato de ele não haver sido incluído entre os que a Constituição de 1988, no artigo 225, parágrafo 4º, considera "patrimônio nacional", como a floresta Amazônica, a mata Atlântica, a serra do Mar e o Pantanal Mato-Grossense. Há quase 14 anos está empacada no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional que retiraria do Cerrado, da Caatinga e do Pampa essa condição de "primos pobres" entre os ecossistemas brasileiros e os incluiria no artigo 225. Contudo, a bancada ruralista, com outros apoios, não permite que seja aprovada, pois considera o Cerrado o lugar ideal para a expansão da agropecuária. Essa não é a visão apenas dessa ala do Congresso. Ela tem adeptos nos mais altos níveis do governo federal.
Falta ao país, na verdade, uma estratégia que privilegie recursos e serviços naturais no centro de todo o planejamento nacional. Porque, como têm afirmado os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, esses recursos e serviços são hoje fator escasso no mundo, já que estamos consumindo cerca de 25% mais do que a biosfera terrestre pode repor. O Brasil é dono de posição privilegiada, que o coloca como uma espécie de sonho de futuro: tem território continental, Sol o ano todo, 12% de toda a água doce superficial do planeta, de 15% a 20% da diversidade biológica global. Além disso, pode dispor de uma matriz energética renovável e limpa, com hidreletricidade, energia solar, eólica (seu potencial é o dobro do consumo total de energia no país hoje), de marés e de biocombustíveis (álcool, mamona, dendê, pinhão-manso, soja).
Talvez contribua para esse drama silencioso a idéia de ser o Cerrado uma "paisagem triste, feia e inútil", como mostraram pesquisas do governo do Distrito Federal na década de 90. Pessoas que se impressionam com o cenário de árvores retorcidas e "campos sujos". A essa visão é preciso contrapor os versos magistrais do poeta brasiliense Nicolas Behr, para quem "nem tudo o que é torto é errado: veja as pernas do Garrincha, veja as árvores do Cerrado".
O jornalista Washington Novaes é, ele próprio, um habitante do Cerrado: vive em Goiânia. Foi por dois anos secretário do Meio Ambiente de uma unidade federativa de Cerrado, o Distrito Federal, nos anos 90.
Por: Washington Novaes Foto: Luciano Candisani
Matéria publicada na Revista National Geographic
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