Tão discreta quanto a beleza é a destruição da grande savana brasileira
Embora nascido em Patos de Minas, o escritor Carmo Bernardes, que morreu em 1996, considerava-se goiano. Um "goiano do pé rachado", como dizia. Com sua fala simplória, o mineiro explicava a incrédulos que "o Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo", pois em muitos lugares há mais matéria vegetal subterrânea, escondida sob o solo, que exposta. Às vezes as raízes têm de mergulhar em busca da água dos lençóis profundos - mais aqui, menos ali, dependendo de a planta estar em cerradão ou mata de galeria, mata seca ou vereda, campo limpo, campo sujo ou cerrado senso estrito, as sete paisagens desse ecossistema que os cientistas enumeram. Em certos lugares, a biomassa subterrânea de uma árvore chega a ser sete vezes maior que a exposta.
Nos mais de 2 milhões de quilômetros quadrados do Cerrado, cerca de 24,1% do território brasileiro, predominam mais arbustos e ervas que árvores. Mas há também matas secas, as chamadas florestas deciduais - aroeiras, perobas, ipês, cerejeiras, cedros -, que perdem quase todas as folhas no inverno, uma estratégia para guardar energia e enfrentar a estiagem e o frio. Já foram identificadas mais de 12 mil plantas - os pesquisadores acreditam que possam existir pelo menos 20 mil -, das quais 4 mil são endêmicas. Na última década, só de flores, foram identificadas 966 novas espécies. Para ter uma idéia, o Distrito Federal, com menos de 6 mil quilômetros quadrados em meio ao bioma, tem mais orquídeas conhecidas que toda a Amazônia. Segundo o I Relatório Nacional para a Convenção sobre Diversidade Biológica, o Cerrado brasileiro guarda pelo menos um terço dos 15% a 20% dessa diversidade no planeta. Em certos pontos, chega-se a encontrar até 28 espécies por metro quadrado. Na estação seca parece uma orgia de flores miúdas, multiformes e coloridas. O povo mais antigo orgulha-se de utilizar cerca de 300 espécies na medicina popular, que os cientistas estudam para encontrar formas de uso industrializáveis.
A despeito de tanta riqueza, o desmatamento do Cerrado avança à razão de 22 mil quilômetros quadrados (1,1% do ecossistema) por ano. Como já são mais de 800 mil quilômetros quadrados desmatados, a perda da biodiversidade é acentuada. Há indícios disso no desaparecimento progressivo de polinizadores, como abelhas e morcegos, dos quais depende inclusive o pequi, o fruto adorado pelos habitantes da região, seja para ser provado como doce, seja na composição de iguarias típicas, como a galinhada. É preciso saber degustá-lo: gente de fora, sem conhecimento ou hábito, costuma morder o fruto com pressa - com isso, enche também a língua de centenas de minúsculos espinhos que povoam cada caroço de pequi, por baixo da polpa amarela. A vida em breve irá melhorar para esses forasteiros incautos: com a ajuda de índios da região do Xingu, no Mato Grosso, pesquisadores estão começando a viabilizar um tipo de pequi sem espinhos.
Viajar pelo Cerrado pode ser uma surpresa sem fim, tantas as paisagens, tantos os encantos. Pode-se, por exemplo, ir ao Jalapão, no Tocantins - um "perto meio longe", como diz o povo dali - e reencontrar o Cerrado de antigamente, perdido em outros lugares do centro-oeste brasileiro. No Jalapão vivem 440 espécies de vertebrados, e recentemente foram descobertos mais 11. A despeito da fauna abundante, consegue-se rodar pelas estradas de terra dezenas de quilômetros sem cruzar com um só vivente, nem mesmo um calango, enquanto se vai passando por dunas, cerradões, cachoeiras e serras escarpadas. Se for tempo de seca, a impressão que se tem, como em quase todo o Cerrado, é a de que toda a vegetação está desaparecendo. Mas basta cair a primeira chuva e tudo reverdece como que por milagre.
Outra alternativa é descer o rio Araguaia, das praias de areia branca que mudam de lugar de ano para ano. No pôr-de-sol esplendoroso tuiuiús aninham-se no alto das árvores. E biguás.E garças, uma profusão de aves mergulhando em busca de peixes. Num trecho resguardado do rio - em certas áreas a pressão humana é forte demais - podem ser encontrados os enormes piracucu e jaú, ou matrinxã e pintado. A linda pirarara, que salta acima da superfície para exibir suas escamas coloridas, divide as águas com o boto que, diz a lenda, seduz donzelas que se banham distraídas. Há ainda a temível piranha, ingrediente de sopa afrodisíaca. Na ilha do Bananal, no grande Araguaia, os índios carajás podem receber quem chega com um jaraqui fresco e assado à beira-rio - uma experiência gastronômica que jamais se esquecerá. Esses moradores da maior ilha fluvial do mundo talvez levem o visitante para assistir à dança de aruanã em noite de Lua cheia. Ele também ficará deslumbrado se tiver a chance de ver a celebração do hetô-hokan, em que convidados de todas as aldeias tentam derrubar - e os anfitriões, manter ereto - um mastro enorme, que simboliza a dignidade da aldeia. É um rito de passagem dos adolescentes para a vida adulta, festa que leva um dia e uma noite inteiros.
Diz a história fundamental dos carajás que eles foram criados como peixes - aruanãs - e viviam, imortais, no fundo do grande rio. Como em todo mito de origem, estavam submetidos a uma proibição: não podiam passar por um buraco no fundo das águas. Um dia, porém, um aruanã quebrou a proibição, entrou pelo buraco e saiu numa das deslumbrantes praias de areia branca do Araguaia. Fascinado, retornou ao fundo do rio e contou sua saga a seu povo. E foram todos, juntos, pedir a seu herói criador, Kananciué, que lhes permitisse viver naquela praia branca. Kananciué argumentou que, para isso, teriam de deixar de ser peixes e de ser imortais. Eles aceitaram, e passaram a ser os carajás e a viver à beira do rio. O saudoso psicanalista Hélio Pellegrino costumava dizer que esse mito é uma síntese do que deve ser a sabedoria humana: aceitar a mortalidade para começar a viver.
Tais histórias que mostram esse Araguaia de outros tempos estão ocultas em um livro perdido nas estantes, escrito na década de 1930 pelo paulista Hermano Ribeiro da Silva, Nos Sertões do Araguaia. Hermano saiu de São Paulo, chegou com um amigo a Aruanã, em Goiás (que naquele tempo se chamava Leopoldina), comprou uma canoa velha e mandou calafetar os buracos de seu casco. E saíram rio abaixo, pela água imensa, os dois paulistas, deslumbrados com tudo. Passaram pela ilha do Bananal e chegaram até a Santana do Araguaia, onde o parceiro de Hermano desistiu da viagem na canoa precária. Hermano vendeu-a, comprou um batelão e contratou dois índios como pilotos. Eles exigiram parte do pagamento adiantado, conseguiram um caixão cheio de mangas e divertiam-se espalhando cascas pelo piso para ver Hermano escorregar e cair na água. Mas ele continuou deslumbrado com tudo. Voltou para casa e escreveu seu célebre relato de viagem.
A maior parte dos povos indígenas do Cerrado concentra-se no Parque Indígena do Xingu. Com 26,4 mil quilômetros quadrados no norte do Mato Grosso, na transição entre o Cerrado e a floresta Amazônica, o parque foi criado, em 1960, graças aos irmãos sertanistas Villas Bôas, e abriga 16 povos. Alguns estão por lá há uns 12 séculos, segundo estudos de antropólogos e arqueólogos. Hoje, contudo, o parque é uma ilha de vegetação exuberante, cercada por campos de soja e pastagens, onde nascem vários rios formadores do majestoso Xingu - por isso mesmo, ameaçado pelos agrotóxicos e pelos sedimentos carreados das margens desmatadas do Kuluene, do Batovi, do Ronuro e de outros afluentes. Além disso, os índios do Xingu andam temerosos de que os peixes, base de sua alimentação, não sejam mais capazes de subir os rios para desovar, interrompidos em sua trajetória pelas usinas hidrelétricas que estão sendo implantadas. Esses projetos ocupam inclusive territórios sagrados, como aquele em que Mavutsini ensinou aos xinguanos o belo ritual do kuarup, uma homenagem aos chefes ilustres que morrem e seguem para a aldeia dos ancestrais, onde nos encontraremos todos, algum dia. Até essa eternidade, seu nome não será mais pronunciado.
Tais culturas escancaram o que o antropólogo francês Pierre Clastres chamou de "democracia do consenso". Nelas o chefe não manda, não dá ordens: ele é, sobretudo, o maior conhecedor da história daquele povo, de seu modo de viver. Aprendeu com seu pai desde menino, e por isso a chefia é hereditária. É também o grande mediador de conflitos, o que melhor fala e o que mais sofre - nunca, contudo, dá ordens. E, se não há delegação de poder, é impossível o domínio de um grupo ou pessoa sobre outro grupo ou pessoa. Todos são iguais, e o limite de cada um está na liberdade do outro, que é seu igual. Não bastasse isso, cada indivíduo é auto-suficiente. Sabe fazer tudo de que precisará ao longo da vida: manter a casa, a roça, seus instrumentos de trabalho, sua rede, sua esteira, sabe caçar e pescar, identifica na natureza as espécies que lhe podem ser úteis. Que luxo: passar a vida sem receber ordens e sem depender de ninguém, enfeitando-se, cantando e dançando, trabalhando apenas o necessário. Uma sociedade em que o homem não dá ordens à esposa nem sequer tem o direito de se queixar dela, pois uma queixa implica ter o direito de esperar determinado comportamento - e isso não existe para esses povos do Cerrado.
Por que não se pensar, então, em reconhecer como patrimônio histórico, cultural e ambiental da humanidade a "ilha" xinguana de vegetação? Resistem ali preciosos recursos naturais em meio ao mar devastado pela agropecuária, lar de povos antigos que aprenderam a não sobrecarregar seu ambiente (sempre que uma aldeia cresce muito e começa a pressionar o entorno, divide-se em duas ou mais). É uma pena constatar que, ao contrário disso, para aflição dos mais velhos, a cultura branca influencia cada vez mais os jovens xinguanos, que querem viver de bermuda e camiseta coloridas, com tênis de marca e óculos escuros, dançando forró e jogando futebol. Para isso têm de esquecer suas tradições, as lindas formas de homenagear os espíritos que tudo regem. Cada animal e cada árvore têm um espírito que é seu "dono", e os pajés fazem a ligação entre os dois mundos.
Se sair a pescar pelos rios do Xingu, o forasteiro precisará tomar cuidado: poderá topar de repente com uma arraia, que Carmo Bernardes a descreve em seu admirável livro Selva: Bichos e Gente. "Forma de disco, na borda cresce a cauda armada com a chopa do esporão alongado de nunca menos de meio palmo se ainda é filhote [...] cartilagem pouco mais consistente que gelatina. De osso calcificado, de extrema dureza, é apenas o aguilhão, esporão serrilhado que penetra abrindo músculos e volta arrebentando filamentos. Larga no tecido lacerado partículas de limo, bactérias do meio aquático, que reagem na presença de ar puro ambiente e fazem desencadear dor tetânica lancinante". Segundo os caboclos do Cerrado, o único remédio capaz de minimizar as dores terríveis de uma picada de arraia é esfregar o ferimento nas partes íntimas de uma mulher. Se não for possível, a urina também servirá, mas com menos eficácia.
Uma alternativa original para o viajante será percorrer o Cerrado de uma região de transição da mata Atlântica, no sul-sudoeste de Goiás, perto da cidade de Serranópolis. Ideal será conseguir a companhia de Binónimo da Costa Lima, o seu Meco, um fazendeiro de Jataí que sabe tudo do bioma, do conhecimento científico à sabedoria popular. Foi ele quem descobriu, na serra das Araras, inscrições rupestres que são o vestígio mais antigo da presença humana no Cerrado do centro-oeste, em torno de 11 mil anos. Ele certamente ficará mais uma vez enfurecido ao ver que um carpinteiro, contratado por uma ONG para construir passarelas protetoras em torno das cavidades, achou "muito pobres" os desenhos rupestres, comprou latas de tinta e retocou partes de algumas das inscrições, além de dar sua contribuição pessoal com outras figuras. Passada a raiva, seu Meco poderá conduzi-lo por uma das trilhas na mata, identificando cada espécie, descrevendo suas utilização e qualidade. Poderá falar das propriedades do baru como alimento humano ou animal. Ou da fava-d'anta, que as cooperativas do nordeste de Goiás já conseguem exportar para a França, onde é utilizada pelas indústrias de cosmético (por causa da rutina que contém) ou medicinal. Se estiver à vontade, seu Meco pode chegar a empunhar, com muita gaiatice, uma folha alongada que, ao ser dobrada ao meio, retorna de imediato à posição primitiva, na vertical. "É o Viagra do sertão", dirá ele. Mas cuidado: seu Meco é um extraordinário inventor de histórias assombrosas e só no fim revelará ou não se são fruto de sua criatividade.
Bem perto dali, o Parque Nacional das Emas é o cenário de uma das maiores tristezas do Cerrado. Praticamente todo o entorno dessa unidade de conservação foi drenado para secar e permitir a plantação de soja. Isso afeta os rios que correm para dentro do parque e a vegetação que alimenta a fauna (emas costumam pastar nas plantações para comer restos de soja). Os agrotóxicos pulverizados por avião são levados pelos ventos reserva adentro, e as queimadas se estendem pela vegetação que deveria ser preservada. O lobo-guará, símbolo do Cerrado, um ser em geral solitário, tem de aproximar-se dos humanos em busca de comida - ele que, segundo Carmo Bernardes, é um "cachorrão natural dos campos gerais, responsável, com seu urro bufado, pela melancolia das noites geralinas".
Na mesma região, outro drama: as imensas voçorocas das nascentes do rio Araguaia. Já são quase 100, cada uma com quilômetros de extensão e dezenas de metros de profundidade. Elas aumentam anualmente, despejando sedimentos que o rio carreia. Em Aruanã, no Médio Araguaia, a Universidade Federal de Goiás quantificou, em 12 meses, 7 milhões de toneladas de sedimentos que fazem o leito navegável mudar de lugar de ano para ano. Isso inviabiliza o projeto de uma hidrovia, que precisaria de dragagem durante séculos, sem destinação adequada dos resíduos. É um processo para o qual contribui a própria natureza, já que a região, do período Quaternário, tem um problema de dejeção de areia de baixo para cima. Mas que é muito acentuado pela desinformação e pela ganância humanas ao desmatar encostas e topos de morros para abrir pastagens.
Seguindo para nordeste, pode-se chegar à chapada dos Veadeiros, um paraíso de várias paisagens típicas de Cerrado, ao lado de uma cidade, Alto Paraíso, que se tornou uma capital de seitas esotéricas. Muitas pessoas vivem em casas que sustentam, no telhado, pirâmides de cristal, e às vezes saem à noite para tentar ver, na pista de um insólito campo de pouso local, a chegada de extraterrenos. Em 31 de dezembro de 1999, uma dessas seitas chegou a se recolher no topo de um morro, preparada para o fim dos tempos.
Esses grupos formam hoje uma das muitas expressões culturais do Cerrado. O leque abre-se na Pirenópolis das cavalhadas, em que mouros enfrentam cristãos, todos ricamente paramentados. Ou no Catalão das congadas. Ou em Goiás, antiga Vila Boa, ex-capital goiana, onde os turistas podem se extasiar com as cores e os sons da Procissão do Fogaréu, na quarta-feira da Semana Santa, quando dezenas de "farricocos", com uma roupa que vai dos pés à cabeça e um capuz parecido com o da Ku Klux Klan, tocam tambores à luz apenas de archotes (todas as lâmpadas da cidade são apagadas) e perseguem um Cristo pelas ruas de pedras, passando pela casa da poeta Cora Coralina. Impressionante. Se quiser, poderá conhecer o ateliê da pintora Goiandira do Couto, que utiliza em seus quadros cores dos mais de 500 pigmentos extraídos de areias que ela recolhe na serra Vermelha, uma área de preservação que ao longo do dia se tinge de muitas cores. E que contribuiu, ao lado da riqueza arquitetônica, para transformar a cidade, desde 1999, em Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Humanidade, reconhecida pela Unesco.
A despeito de tantas virtudes, o Cerrado parece condenado. Segundo a Embrapa Monitoramento por Satélites, menos de 5% da área total do ambiente apresenta fragmentos com mais de 2 mil hectares contínuos, capazes de sobreviver - em trechos menores as cadeias genéticas, reprodutivas, alimentares não conseguem se manter. E em boa parte dos fragmentos menores há ocupação progressiva em "pastagens naturais". Para piorar, o recente avanço da cana-de-açúcar no Cerrado está causando forte desmatamento nos dois Mato Grosso, além de Goiás, Tocantins, Piauí e oeste da Bahia, quando a expansão poderia perfeitamente acontecer em áreas de pastagens, onde o índice de degradação está em torno de 70% do total. A produção de carvão para siderúrgicas é outro sério problema.
Além da perda da biodiversidade - da qual poderiam vir novos medicamentos, alimentos e materiais -, a devastação terá graves conseqüências no clima. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, de 750 milhões de toneladas anuais de emissão de gases no país como resultado de desmatamento e queimadas, a Amazônia responde por 59%. E isso quer dizer que 41% ocorrem fora de lá, principalmente no Cerrado. Nos cenários que traçou para o Brasil, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais já prevê para o centro-oeste um aumento de temperatura entre 4 e 6 graus Celsius ao longo deste século. A perda também será relevante na área dos recursos hídricos, já que nas áreas desmatadas é bem menor a retenção de água. O Ministério do Meio Ambiente tem indicações de que está se reduzindo o volume de água retido no subsolo. Com isso, poderão ser afetadas inclusive as bacias em outros biomas que recebem água do Cerrado.
Contribui para o descaso com esse bioma o fato de ele não haver sido incluído entre os que a Constituição de 1988, no artigo 225, parágrafo 4º, considera "patrimônio nacional", como a floresta Amazônica, a mata Atlântica, a serra do Mar e o Pantanal Mato-Grossense. Há quase 14 anos está empacada no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional que retiraria do Cerrado, da Caatinga e do Pampa essa condição de "primos pobres" entre os ecossistemas brasileiros e os incluiria no artigo 225. Contudo, a bancada ruralista, com outros apoios, não permite que seja aprovada, pois considera o Cerrado o lugar ideal para a expansão da agropecuária. Essa não é a visão apenas dessa ala do Congresso. Ela tem adeptos nos mais altos níveis do governo federal.
Falta ao país, na verdade, uma estratégia que privilegie recursos e serviços naturais no centro de todo o planejamento nacional. Porque, como têm afirmado os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, esses recursos e serviços são hoje fator escasso no mundo, já que estamos consumindo cerca de 25% mais do que a biosfera terrestre pode repor. O Brasil é dono de posição privilegiada, que o coloca como uma espécie de sonho de futuro: tem território continental, Sol o ano todo, 12% de toda a água doce superficial do planeta, de 15% a 20% da diversidade biológica global. Além disso, pode dispor de uma matriz energética renovável e limpa, com hidreletricidade, energia solar, eólica (seu potencial é o dobro do consumo total de energia no país hoje), de marés e de biocombustíveis (álcool, mamona, dendê, pinhão-manso, soja).
Talvez contribua para esse drama silencioso a idéia de ser o Cerrado uma "paisagem triste, feia e inútil", como mostraram pesquisas do governo do Distrito Federal na década de 90. Pessoas que se impressionam com o cenário de árvores retorcidas e "campos sujos". A essa visão é preciso contrapor os versos magistrais do poeta brasiliense Nicolas Behr, para quem "nem tudo o que é torto é errado: veja as pernas do Garrincha, veja as árvores do Cerrado".
O jornalista Washington Novaes é, ele próprio, um habitante do Cerrado: vive em Goiânia. Foi por dois anos secretário do Meio Ambiente de uma unidade federativa de Cerrado, o Distrito Federal, nos anos 90.
Por: Washington Novaes Foto: Luciano Candisani
Matéria publicada na Revista National Geographic
Embora nascido em Patos de Minas, o escritor Carmo Bernardes, que morreu em 1996, considerava-se goiano. Um "goiano do pé rachado", como dizia. Com sua fala simplória, o mineiro explicava a incrédulos que "o Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo", pois em muitos lugares há mais matéria vegetal subterrânea, escondida sob o solo, que exposta. Às vezes as raízes têm de mergulhar em busca da água dos lençóis profundos - mais aqui, menos ali, dependendo de a planta estar em cerradão ou mata de galeria, mata seca ou vereda, campo limpo, campo sujo ou cerrado senso estrito, as sete paisagens desse ecossistema que os cientistas enumeram. Em certos lugares, a biomassa subterrânea de uma árvore chega a ser sete vezes maior que a exposta.
Nos mais de 2 milhões de quilômetros quadrados do Cerrado, cerca de 24,1% do território brasileiro, predominam mais arbustos e ervas que árvores. Mas há também matas secas, as chamadas florestas deciduais - aroeiras, perobas, ipês, cerejeiras, cedros -, que perdem quase todas as folhas no inverno, uma estratégia para guardar energia e enfrentar a estiagem e o frio. Já foram identificadas mais de 12 mil plantas - os pesquisadores acreditam que possam existir pelo menos 20 mil -, das quais 4 mil são endêmicas. Na última década, só de flores, foram identificadas 966 novas espécies. Para ter uma idéia, o Distrito Federal, com menos de 6 mil quilômetros quadrados em meio ao bioma, tem mais orquídeas conhecidas que toda a Amazônia. Segundo o I Relatório Nacional para a Convenção sobre Diversidade Biológica, o Cerrado brasileiro guarda pelo menos um terço dos 15% a 20% dessa diversidade no planeta. Em certos pontos, chega-se a encontrar até 28 espécies por metro quadrado. Na estação seca parece uma orgia de flores miúdas, multiformes e coloridas. O povo mais antigo orgulha-se de utilizar cerca de 300 espécies na medicina popular, que os cientistas estudam para encontrar formas de uso industrializáveis.
A despeito de tanta riqueza, o desmatamento do Cerrado avança à razão de 22 mil quilômetros quadrados (1,1% do ecossistema) por ano. Como já são mais de 800 mil quilômetros quadrados desmatados, a perda da biodiversidade é acentuada. Há indícios disso no desaparecimento progressivo de polinizadores, como abelhas e morcegos, dos quais depende inclusive o pequi, o fruto adorado pelos habitantes da região, seja para ser provado como doce, seja na composição de iguarias típicas, como a galinhada. É preciso saber degustá-lo: gente de fora, sem conhecimento ou hábito, costuma morder o fruto com pressa - com isso, enche também a língua de centenas de minúsculos espinhos que povoam cada caroço de pequi, por baixo da polpa amarela. A vida em breve irá melhorar para esses forasteiros incautos: com a ajuda de índios da região do Xingu, no Mato Grosso, pesquisadores estão começando a viabilizar um tipo de pequi sem espinhos.
Viajar pelo Cerrado pode ser uma surpresa sem fim, tantas as paisagens, tantos os encantos. Pode-se, por exemplo, ir ao Jalapão, no Tocantins - um "perto meio longe", como diz o povo dali - e reencontrar o Cerrado de antigamente, perdido em outros lugares do centro-oeste brasileiro. No Jalapão vivem 440 espécies de vertebrados, e recentemente foram descobertos mais 11. A despeito da fauna abundante, consegue-se rodar pelas estradas de terra dezenas de quilômetros sem cruzar com um só vivente, nem mesmo um calango, enquanto se vai passando por dunas, cerradões, cachoeiras e serras escarpadas. Se for tempo de seca, a impressão que se tem, como em quase todo o Cerrado, é a de que toda a vegetação está desaparecendo. Mas basta cair a primeira chuva e tudo reverdece como que por milagre.
Outra alternativa é descer o rio Araguaia, das praias de areia branca que mudam de lugar de ano para ano. No pôr-de-sol esplendoroso tuiuiús aninham-se no alto das árvores. E biguás.E garças, uma profusão de aves mergulhando em busca de peixes. Num trecho resguardado do rio - em certas áreas a pressão humana é forte demais - podem ser encontrados os enormes piracucu e jaú, ou matrinxã e pintado. A linda pirarara, que salta acima da superfície para exibir suas escamas coloridas, divide as águas com o boto que, diz a lenda, seduz donzelas que se banham distraídas. Há ainda a temível piranha, ingrediente de sopa afrodisíaca. Na ilha do Bananal, no grande Araguaia, os índios carajás podem receber quem chega com um jaraqui fresco e assado à beira-rio - uma experiência gastronômica que jamais se esquecerá. Esses moradores da maior ilha fluvial do mundo talvez levem o visitante para assistir à dança de aruanã em noite de Lua cheia. Ele também ficará deslumbrado se tiver a chance de ver a celebração do hetô-hokan, em que convidados de todas as aldeias tentam derrubar - e os anfitriões, manter ereto - um mastro enorme, que simboliza a dignidade da aldeia. É um rito de passagem dos adolescentes para a vida adulta, festa que leva um dia e uma noite inteiros.
Diz a história fundamental dos carajás que eles foram criados como peixes - aruanãs - e viviam, imortais, no fundo do grande rio. Como em todo mito de origem, estavam submetidos a uma proibição: não podiam passar por um buraco no fundo das águas. Um dia, porém, um aruanã quebrou a proibição, entrou pelo buraco e saiu numa das deslumbrantes praias de areia branca do Araguaia. Fascinado, retornou ao fundo do rio e contou sua saga a seu povo. E foram todos, juntos, pedir a seu herói criador, Kananciué, que lhes permitisse viver naquela praia branca. Kananciué argumentou que, para isso, teriam de deixar de ser peixes e de ser imortais. Eles aceitaram, e passaram a ser os carajás e a viver à beira do rio. O saudoso psicanalista Hélio Pellegrino costumava dizer que esse mito é uma síntese do que deve ser a sabedoria humana: aceitar a mortalidade para começar a viver.
Tais histórias que mostram esse Araguaia de outros tempos estão ocultas em um livro perdido nas estantes, escrito na década de 1930 pelo paulista Hermano Ribeiro da Silva, Nos Sertões do Araguaia. Hermano saiu de São Paulo, chegou com um amigo a Aruanã, em Goiás (que naquele tempo se chamava Leopoldina), comprou uma canoa velha e mandou calafetar os buracos de seu casco. E saíram rio abaixo, pela água imensa, os dois paulistas, deslumbrados com tudo. Passaram pela ilha do Bananal e chegaram até a Santana do Araguaia, onde o parceiro de Hermano desistiu da viagem na canoa precária. Hermano vendeu-a, comprou um batelão e contratou dois índios como pilotos. Eles exigiram parte do pagamento adiantado, conseguiram um caixão cheio de mangas e divertiam-se espalhando cascas pelo piso para ver Hermano escorregar e cair na água. Mas ele continuou deslumbrado com tudo. Voltou para casa e escreveu seu célebre relato de viagem.
A maior parte dos povos indígenas do Cerrado concentra-se no Parque Indígena do Xingu. Com 26,4 mil quilômetros quadrados no norte do Mato Grosso, na transição entre o Cerrado e a floresta Amazônica, o parque foi criado, em 1960, graças aos irmãos sertanistas Villas Bôas, e abriga 16 povos. Alguns estão por lá há uns 12 séculos, segundo estudos de antropólogos e arqueólogos. Hoje, contudo, o parque é uma ilha de vegetação exuberante, cercada por campos de soja e pastagens, onde nascem vários rios formadores do majestoso Xingu - por isso mesmo, ameaçado pelos agrotóxicos e pelos sedimentos carreados das margens desmatadas do Kuluene, do Batovi, do Ronuro e de outros afluentes. Além disso, os índios do Xingu andam temerosos de que os peixes, base de sua alimentação, não sejam mais capazes de subir os rios para desovar, interrompidos em sua trajetória pelas usinas hidrelétricas que estão sendo implantadas. Esses projetos ocupam inclusive territórios sagrados, como aquele em que Mavutsini ensinou aos xinguanos o belo ritual do kuarup, uma homenagem aos chefes ilustres que morrem e seguem para a aldeia dos ancestrais, onde nos encontraremos todos, algum dia. Até essa eternidade, seu nome não será mais pronunciado.
Tais culturas escancaram o que o antropólogo francês Pierre Clastres chamou de "democracia do consenso". Nelas o chefe não manda, não dá ordens: ele é, sobretudo, o maior conhecedor da história daquele povo, de seu modo de viver. Aprendeu com seu pai desde menino, e por isso a chefia é hereditária. É também o grande mediador de conflitos, o que melhor fala e o que mais sofre - nunca, contudo, dá ordens. E, se não há delegação de poder, é impossível o domínio de um grupo ou pessoa sobre outro grupo ou pessoa. Todos são iguais, e o limite de cada um está na liberdade do outro, que é seu igual. Não bastasse isso, cada indivíduo é auto-suficiente. Sabe fazer tudo de que precisará ao longo da vida: manter a casa, a roça, seus instrumentos de trabalho, sua rede, sua esteira, sabe caçar e pescar, identifica na natureza as espécies que lhe podem ser úteis. Que luxo: passar a vida sem receber ordens e sem depender de ninguém, enfeitando-se, cantando e dançando, trabalhando apenas o necessário. Uma sociedade em que o homem não dá ordens à esposa nem sequer tem o direito de se queixar dela, pois uma queixa implica ter o direito de esperar determinado comportamento - e isso não existe para esses povos do Cerrado.
Por que não se pensar, então, em reconhecer como patrimônio histórico, cultural e ambiental da humanidade a "ilha" xinguana de vegetação? Resistem ali preciosos recursos naturais em meio ao mar devastado pela agropecuária, lar de povos antigos que aprenderam a não sobrecarregar seu ambiente (sempre que uma aldeia cresce muito e começa a pressionar o entorno, divide-se em duas ou mais). É uma pena constatar que, ao contrário disso, para aflição dos mais velhos, a cultura branca influencia cada vez mais os jovens xinguanos, que querem viver de bermuda e camiseta coloridas, com tênis de marca e óculos escuros, dançando forró e jogando futebol. Para isso têm de esquecer suas tradições, as lindas formas de homenagear os espíritos que tudo regem. Cada animal e cada árvore têm um espírito que é seu "dono", e os pajés fazem a ligação entre os dois mundos.
Se sair a pescar pelos rios do Xingu, o forasteiro precisará tomar cuidado: poderá topar de repente com uma arraia, que Carmo Bernardes a descreve em seu admirável livro Selva: Bichos e Gente. "Forma de disco, na borda cresce a cauda armada com a chopa do esporão alongado de nunca menos de meio palmo se ainda é filhote [...] cartilagem pouco mais consistente que gelatina. De osso calcificado, de extrema dureza, é apenas o aguilhão, esporão serrilhado que penetra abrindo músculos e volta arrebentando filamentos. Larga no tecido lacerado partículas de limo, bactérias do meio aquático, que reagem na presença de ar puro ambiente e fazem desencadear dor tetânica lancinante". Segundo os caboclos do Cerrado, o único remédio capaz de minimizar as dores terríveis de uma picada de arraia é esfregar o ferimento nas partes íntimas de uma mulher. Se não for possível, a urina também servirá, mas com menos eficácia.
Uma alternativa original para o viajante será percorrer o Cerrado de uma região de transição da mata Atlântica, no sul-sudoeste de Goiás, perto da cidade de Serranópolis. Ideal será conseguir a companhia de Binónimo da Costa Lima, o seu Meco, um fazendeiro de Jataí que sabe tudo do bioma, do conhecimento científico à sabedoria popular. Foi ele quem descobriu, na serra das Araras, inscrições rupestres que são o vestígio mais antigo da presença humana no Cerrado do centro-oeste, em torno de 11 mil anos. Ele certamente ficará mais uma vez enfurecido ao ver que um carpinteiro, contratado por uma ONG para construir passarelas protetoras em torno das cavidades, achou "muito pobres" os desenhos rupestres, comprou latas de tinta e retocou partes de algumas das inscrições, além de dar sua contribuição pessoal com outras figuras. Passada a raiva, seu Meco poderá conduzi-lo por uma das trilhas na mata, identificando cada espécie, descrevendo suas utilização e qualidade. Poderá falar das propriedades do baru como alimento humano ou animal. Ou da fava-d'anta, que as cooperativas do nordeste de Goiás já conseguem exportar para a França, onde é utilizada pelas indústrias de cosmético (por causa da rutina que contém) ou medicinal. Se estiver à vontade, seu Meco pode chegar a empunhar, com muita gaiatice, uma folha alongada que, ao ser dobrada ao meio, retorna de imediato à posição primitiva, na vertical. "É o Viagra do sertão", dirá ele. Mas cuidado: seu Meco é um extraordinário inventor de histórias assombrosas e só no fim revelará ou não se são fruto de sua criatividade.
Bem perto dali, o Parque Nacional das Emas é o cenário de uma das maiores tristezas do Cerrado. Praticamente todo o entorno dessa unidade de conservação foi drenado para secar e permitir a plantação de soja. Isso afeta os rios que correm para dentro do parque e a vegetação que alimenta a fauna (emas costumam pastar nas plantações para comer restos de soja). Os agrotóxicos pulverizados por avião são levados pelos ventos reserva adentro, e as queimadas se estendem pela vegetação que deveria ser preservada. O lobo-guará, símbolo do Cerrado, um ser em geral solitário, tem de aproximar-se dos humanos em busca de comida - ele que, segundo Carmo Bernardes, é um "cachorrão natural dos campos gerais, responsável, com seu urro bufado, pela melancolia das noites geralinas".
Na mesma região, outro drama: as imensas voçorocas das nascentes do rio Araguaia. Já são quase 100, cada uma com quilômetros de extensão e dezenas de metros de profundidade. Elas aumentam anualmente, despejando sedimentos que o rio carreia. Em Aruanã, no Médio Araguaia, a Universidade Federal de Goiás quantificou, em 12 meses, 7 milhões de toneladas de sedimentos que fazem o leito navegável mudar de lugar de ano para ano. Isso inviabiliza o projeto de uma hidrovia, que precisaria de dragagem durante séculos, sem destinação adequada dos resíduos. É um processo para o qual contribui a própria natureza, já que a região, do período Quaternário, tem um problema de dejeção de areia de baixo para cima. Mas que é muito acentuado pela desinformação e pela ganância humanas ao desmatar encostas e topos de morros para abrir pastagens.
Seguindo para nordeste, pode-se chegar à chapada dos Veadeiros, um paraíso de várias paisagens típicas de Cerrado, ao lado de uma cidade, Alto Paraíso, que se tornou uma capital de seitas esotéricas. Muitas pessoas vivem em casas que sustentam, no telhado, pirâmides de cristal, e às vezes saem à noite para tentar ver, na pista de um insólito campo de pouso local, a chegada de extraterrenos. Em 31 de dezembro de 1999, uma dessas seitas chegou a se recolher no topo de um morro, preparada para o fim dos tempos.
Esses grupos formam hoje uma das muitas expressões culturais do Cerrado. O leque abre-se na Pirenópolis das cavalhadas, em que mouros enfrentam cristãos, todos ricamente paramentados. Ou no Catalão das congadas. Ou em Goiás, antiga Vila Boa, ex-capital goiana, onde os turistas podem se extasiar com as cores e os sons da Procissão do Fogaréu, na quarta-feira da Semana Santa, quando dezenas de "farricocos", com uma roupa que vai dos pés à cabeça e um capuz parecido com o da Ku Klux Klan, tocam tambores à luz apenas de archotes (todas as lâmpadas da cidade são apagadas) e perseguem um Cristo pelas ruas de pedras, passando pela casa da poeta Cora Coralina. Impressionante. Se quiser, poderá conhecer o ateliê da pintora Goiandira do Couto, que utiliza em seus quadros cores dos mais de 500 pigmentos extraídos de areias que ela recolhe na serra Vermelha, uma área de preservação que ao longo do dia se tinge de muitas cores. E que contribuiu, ao lado da riqueza arquitetônica, para transformar a cidade, desde 1999, em Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Humanidade, reconhecida pela Unesco.
A despeito de tantas virtudes, o Cerrado parece condenado. Segundo a Embrapa Monitoramento por Satélites, menos de 5% da área total do ambiente apresenta fragmentos com mais de 2 mil hectares contínuos, capazes de sobreviver - em trechos menores as cadeias genéticas, reprodutivas, alimentares não conseguem se manter. E em boa parte dos fragmentos menores há ocupação progressiva em "pastagens naturais". Para piorar, o recente avanço da cana-de-açúcar no Cerrado está causando forte desmatamento nos dois Mato Grosso, além de Goiás, Tocantins, Piauí e oeste da Bahia, quando a expansão poderia perfeitamente acontecer em áreas de pastagens, onde o índice de degradação está em torno de 70% do total. A produção de carvão para siderúrgicas é outro sério problema.
Além da perda da biodiversidade - da qual poderiam vir novos medicamentos, alimentos e materiais -, a devastação terá graves conseqüências no clima. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, de 750 milhões de toneladas anuais de emissão de gases no país como resultado de desmatamento e queimadas, a Amazônia responde por 59%. E isso quer dizer que 41% ocorrem fora de lá, principalmente no Cerrado. Nos cenários que traçou para o Brasil, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais já prevê para o centro-oeste um aumento de temperatura entre 4 e 6 graus Celsius ao longo deste século. A perda também será relevante na área dos recursos hídricos, já que nas áreas desmatadas é bem menor a retenção de água. O Ministério do Meio Ambiente tem indicações de que está se reduzindo o volume de água retido no subsolo. Com isso, poderão ser afetadas inclusive as bacias em outros biomas que recebem água do Cerrado.
Contribui para o descaso com esse bioma o fato de ele não haver sido incluído entre os que a Constituição de 1988, no artigo 225, parágrafo 4º, considera "patrimônio nacional", como a floresta Amazônica, a mata Atlântica, a serra do Mar e o Pantanal Mato-Grossense. Há quase 14 anos está empacada no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional que retiraria do Cerrado, da Caatinga e do Pampa essa condição de "primos pobres" entre os ecossistemas brasileiros e os incluiria no artigo 225. Contudo, a bancada ruralista, com outros apoios, não permite que seja aprovada, pois considera o Cerrado o lugar ideal para a expansão da agropecuária. Essa não é a visão apenas dessa ala do Congresso. Ela tem adeptos nos mais altos níveis do governo federal.
Falta ao país, na verdade, uma estratégia que privilegie recursos e serviços naturais no centro de todo o planejamento nacional. Porque, como têm afirmado os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, esses recursos e serviços são hoje fator escasso no mundo, já que estamos consumindo cerca de 25% mais do que a biosfera terrestre pode repor. O Brasil é dono de posição privilegiada, que o coloca como uma espécie de sonho de futuro: tem território continental, Sol o ano todo, 12% de toda a água doce superficial do planeta, de 15% a 20% da diversidade biológica global. Além disso, pode dispor de uma matriz energética renovável e limpa, com hidreletricidade, energia solar, eólica (seu potencial é o dobro do consumo total de energia no país hoje), de marés e de biocombustíveis (álcool, mamona, dendê, pinhão-manso, soja).
Talvez contribua para esse drama silencioso a idéia de ser o Cerrado uma "paisagem triste, feia e inútil", como mostraram pesquisas do governo do Distrito Federal na década de 90. Pessoas que se impressionam com o cenário de árvores retorcidas e "campos sujos". A essa visão é preciso contrapor os versos magistrais do poeta brasiliense Nicolas Behr, para quem "nem tudo o que é torto é errado: veja as pernas do Garrincha, veja as árvores do Cerrado".
O jornalista Washington Novaes é, ele próprio, um habitante do Cerrado: vive em Goiânia. Foi por dois anos secretário do Meio Ambiente de uma unidade federativa de Cerrado, o Distrito Federal, nos anos 90.
Por: Washington Novaes Foto: Luciano Candisani
Matéria publicada na Revista National Geographic
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