quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Moscou nunca dorme - parte 1

O romancista Martin Cruz Smith e o fotógrafo Gerd Ludwig revelam o encanto sinistro de uma cidade que só mostra suas verdadeiras cores à noite
Moscou à noite é um conto de fadas ameaçador. Uma Cinderela que não deixe o Kremlin à meia-noite pode perder mais que o sapatinho de cristal.

À meia-noite, a cidade é um quadro de luzes que inclui o domo dourado da Catedral do Cristo Salvador, templo da Igreja Ortodoxa do Oriente, e o horror stalinista gótico do hotel Ucrânia, além de um contorno sombrio do rio Moscou. Mais abaixo, as luzes da construção em marcha durante 24 horas pairam no ar enquanto o aço e o concreto vão sendo deglutidos. A zoeira do dia acaba.

A noite traz claridade; as luzes, o futuro. Nas colinas do Pardal, na parte sudoeste de Moscou, entretanto, todos os olhos se voltam para um conclave informal de motocicletas: motos japonesas reluzentes feito brinquedos, austeras Vostok russas, Ducati Monster, Harley com escapamentos de cromo polido. Centenas de admiradores lotam o mirante para ver as máquinas que, de pé em seus apoios, fazem uma pose "tô nem aí" de astros de cinema diante dos fotógrafos. Basta uma Harley puxar um pigarro que a galera delira.

Algumas motos são tão equipadas que fica difícil determinar como eram originalmente. Uma Ural, fabricada na Rússia e acostumada a carregar sacos de batata no side-car, virou um negro e furtivo predador eriçado de foguetes bélicos e metralhadoras. Mas, como os canos das metrancas são apenas pernas de cadeira e o guidão é feito de muletas, o efeito soa mais teatral que ameaçador. E, a despeito de todo o couro e tachinhas que exibem, o mesmo poderia ser dito dos motoqueiros. Pergunto a um ogro de cabeça raspada e bandana o que ele faz durante o dia. "Eu durmo", responde ele, ao que sua namorada logo emenda: "Fievel é programador de computadores".

Ou seja, nerd durante o dia, bad boy à noite.

Meu amigo Sasha está comigo. De fala tão mansa que até parece tímido, ele é, na verdade, detetive da delegacia de Homicídios, um tipo acostumado a medir suas palavras. Quando fez o Exército, competia no biatlo, um esporte em que você tem de correr com esquis e um rifle, daí parar de repente e, coração aos pulos, mirar e atirar num alvo. Ele ainda mantém essa calma.

Nos vimos pela primeira vez anos atrás num bar irlandês em Moscou. Minha inteligentíssima colega Lyuba e eu celebramos o fim de duas semanas de pesquisa de campo para o meu próximo romance. Mas Sasha, que acabou de pescar uns mafiosos mortos de um pântano, não está muito interessado em heróis fictícios. Agora que se casou com Lyuba, ele se vê forçado a suportar minhas perguntas, sem, contudo, deixar de resmungar que o meu personagem, o investigador Renko, devia ser um policial regular como ele. A corrida começa do lado de lá do bulevar.

As motos menores aceleram com um zumbido enquanto as pesos pesados emitem um ronco que faz o chão tremer. A linha de chegada é negociável, e pode estar tanto a 100 metros da largada como no fim do circuito do Anel do Jardim, a via periférica que circunda o centro de Moscou em que as bykes podem chegar a 190 quilômetros por hora. Carros também tiram rachas ali ou tiravam, até a polícia cair em cima depois que apareceram no YouTube uns vídeos com motoristas costurando o trânsito do Anel três vezes mais rápido que a velocidade permitida.

Um motoqueiro de casaco estofado de couro – que lhe dá mais panca de mau do que proteção real – monta em sua Kawasaki, talvez uma de 750 cilindradas. Pouco sei sobre motos: todo o meu conhecimento da matéria vem de uma viagem de lambreta que fiz de Roma ao sul da Espanha. Sei é que estou preocupado com a adolescente, vestida com pouco mais que um capacete, aboletada na garupa. Assim que ela se firma lá atrás, a moto sai zunindo pela pista. A garota parece tão desprotegida que me vem a pergunta: quem é o responsável aqui? Cadê a polícia? Sasha aponta para um grupo de milicianos pouco à vontade num canto: "Está fora do controle deles".

As motos zarpam. Em segundos, viram rastros luminosos, esvanescendo-se ao longe.

QUEM É O RESPONSÁVEL AQUI? Vladimir Putin? Dmitry Medvedev? Os "oligarcas", como são conhecidos os multimilionários que surgiram na esteira das privatizações, ao fim da União Soviética? A KGB disfarçada de FSB, o Bureau de Segurança Federal que sucedeu o temido órgão de espionagem e repressão do regime soviético? Bom, como dizem na Rússia, "quem sabe sabe".

O certo é que Moscou está boiando em petrodólares. Há mais bilionários ali que em qualquer outra cidade do mundo. Mais que em Nova York, Londres ou Dubai. Milionários são tão comuns quanto pombos. Juntos, os endinheirados constituem uma classe social genericamente chamada de novos-russos quando surgiu nos anos 1990 – os novos-ricos do mundo dos negócios.

Metade deles é sobrevivente das transformações radicais na indústria, a exemplo da "guerra do alumínio", dez anos atrás, quando executivos eram mortos a torto e a direito. Metade descobriu que abrir um banco era mais lucrativo que assaltar um. Metade é de jovens trapezistas financeiros se balançando de um a outro hedge fund, um tipo de aplicação múltipla e maciça no mercado de capitais. (Nota-se que podem haver três metades na nova Rússia...)

Uma mudança e tanto. Quando fui pela primeira vez a Moscou, em 1973, toda a população parecia se recolher a uma cripta tão logo o Sol se punha. Os poucos automóveis nas ruas eram os pequenos e dispépticos Zhiguli. Uma vitrine de loja podia exibir um único peixe seco.

A praça Vermelha ficava vazia, à exceção da guarda de honra no túmulo de Lenin, que exibe seu cadáver embalsamado, e dos cartazes expondo a cara pétrea do então secretário-geral do Partido Comunista, Leonid Brejnev. Faixas apregoavam: "O Partido Comunista é a vanguarda da classe operária!" Esse é o mundo em que cresceram os atuais novos-russos, e não é de espantar que suas energia e frustração represadas irrompessem de forma acalorada.

Os russos extrapolam na ostentação. Eles não são o "dinheiro velho" entocado atrás de muros cobertos de hera – na verdade, costumam recusá-lo. É o dinheiro novo que conta, as notas de 100 dólares estalando que entram velozes a cada dia e são gastas quase tão rápido quanto. Como celebrar tudo isso? Quanto caviar você agüenta comer? E quantas champanhotas consegue beber?

Para resolver o problema foram inventados os clubes noturnos. Essas boates dão aos ricos a chance de brilhar na passarela, certas de que presenças indesejáveis serão barradas na porta pelo "controle do visual" – uma operação exercida por homens que num relance são capazes de determinar seu perfil financeiro e seu grau de celebridade.

E também se você está portando uma arma.

O primeiro sinal de que o GQ Bar está bombando é o número de Bentley e Lamborghini alinhados no meio-fio. Fui até lá com a escritora Lana Kapriznaya e o jornalista Yegor Tolstyakov. Lana, de cabelo escuro e uns 45 quilos, incluindo a fumaça do cigarro, é cronista das extravagâncias dos novos-russos. Yegor é dono de uma voz cavernosa mas está sempre sorrindo. "Você tem de pensar no GQ como uma boate para rapazes", diz Lana. "Para rapazes com guarda-costas."

Os recém-chegados são saudados por mulheres com um nível surreal de beleza. Beijim, beijim no ar para não estragar a maquiagem. O GQ Bar é uma franquia da casa editorial Condé Nast International, que a provê de um suprimento constante de modelos que bicam águas minerais de 20 dólares a garrafa, beliscando a carne do caranguejo de Kamchatka, servido com seis molhos diferentes. Não está com fome? Nyet problema. O lounge vip do GQ é um botequim só para tigrões. Ali um cidadão pode sorver seu Johnny Walker rótulo azul ou um brandy, acender um charuto cubano, relaxar e fazer mais dinheiro.

Os novos-russos são animais sociais. Eles dão um jeito de espremer trabalho e prazer no mesmo espaço, do mesmo jeito que os motoristas moscovitas encaixam cinco pistas de rolagem numa avenida que só tem quatro. Os escritórios são pródigos em atividades menores: reuniões, telefonemas, infinitos detalhes. Já os negócios de bilhões de dólares aguardam pelas horas agradáveis da noite. Reza uma tradição russa na qual você não pode confiar nem fazer negócios com um homem antes de tomar um porre com ele. Comida, vodca, dinheiro, tudo anda de mãos dadas.

Mais impressionante que a estica dos homens é a transformação das mulheres. Nos poucos anos decorridos desde o colapso da União Soviética, as antes robustas edificadoras do socialismo se metamorfosearam em tenistas célebres. Durante o dia, clones de Maria Sharapova pulam de spa em spa. À noite, saltam ouriçadas de clube em clube, atrás de um milionário para chamar de seu.

Enquanto Sergei, o gerente do GQ, nos ciceroneia em um tour pelo lugar, Lana descreve a lista de compras de um novo-russo: "Casa de campo na Belgravia, uma villa em Saint-Tropez, um chalé de esqui em Courchevel, escolas no estrangeiro para os filhos, bancos estrangeiros para o seu dinheiro e, por fim, um jatinho particular".

Essa é uma fonte de amargura na Rússia. Mesmo nos piores tempos da era stalinista havia um senso geral de ausência de classes. As pessoas não tinham dinheiro, tinham vantagens: uma ração maior de salsichões, uma semana extra de internação numa clínica, acesso a filmes estrangeiros. Os novos-russos, porém, emergiram ungidos em dólares, e, aos olhos de muita gente, são uns ladrões. Seu estilo de vida é invejado e abominado. Moscou, o centro de tudo, tem sua cena clubber imitada no país inteiro. Sergei me descreve o esquema clubber: das 10 à meia-noite, interação social no restaurante. Daí, às 4 da madrugada, ferveção nos clubes. E, das 4 às 6, relaxamento pós-balada. Segundo ele, quando Mickey Rourke está em Moscou, vai para o GQ.

Saímos do GQ e vamos para uma boate que está lançando um novo BMW ou uma marca de vodca, ou ambos. Dali, partimos para um clube no parque Gorki com uma patota mais democrática, onde, além de brincar de Whack-A-Mole com uma marreta de borracha, tentando acertar a toupeira que sai do chão no game eletrônico, você pode passear por uma praia artificial.

Contudo, sinto que estou perdendo algo. Qual é o melhor clube noturno de Moscou? "Bom", diz Lana, "tem o Diaghilev." "Por que é tão famoso?", rebato. "Por que ninguém consegue entrar."

TRÊS ESTAÇÕES – PARTE UM Se a Diaghilev é o Olimpo de Moscou, Três Estações representa o ponto mais baixo da cidade. Oficialmente, Três Estações se chama praça Komsomol, mas as pessoas conhecem o lugar por causa dos três terminais ferroviários ali situados: as estações Yaroslavl e Leningrado, do lado norte, e a Kazan, no lado sul. Há uma estátua de Lenin em uma praça lateral. O grande agitador da Revolução Russa segura a lapela do paletó com a mão esquerda enquanto a direita procura o bolso traseiro da calça, como se tivesse acabado de se dar conta de que lhe bateram a carteira.

Todos os dias milhares de passageiros desembocam na ampla calçada, onde cruzam no contrafluxo com sacoleiros carregados de roupas e calçados. Marreteiros oferecem bonés de pele de coelho, relíquias cafonas da era soviética, rosas embrulhadas em celofane, CDs piratas. Mulheres da Ásia Central varrem o chão com suas volumosas saias cor de papoula. Todo tipo de cara dá as caras: ucranianos de olhos azuis, homens aquilinos do Cáucaso, uzbeques de boina, mongóis e, sobretudo, tadjiques, conhecidos pela sobriedade e disposição para o trabalho duro que os russos não querem fazer. Isso é Três Estações.

Mas, às 2 da madrugada, a vasta praça está vazia. A luz nevoenta dos postes revela o que o tráfego diurno oculta. É difícil ver os bebuns que rondam a estação Kazan, cinzentos como a calçada. Não se trata de farristas ocasionais, mas sim de alcoólatras de carteirinha curtidos em vodca. São tantos os que portam bandagens ou feridas que poderiam compor um quadro representando uma batalha. Um deles segura um cartaz com os dizeres: "Dá um dinheiro, senão a gente morre".

Atrás da estação, uma viela abriga uma turma de sem-tetos embrulhada em trapos e jornais. Uma mulher vestida de andrajos amarra um buquê de lavanda. Um único quiosque aberto vende adivinha o quê? Vodca. Sombras passam zunindo. Crianças de rua. "São pessoas livres", diz Sasha. "Há abrigos. Mas eles escolhem viver assim."

Vemos prostitutas rebolando em calça justa. Elas têm fama de esmigalhar pílulas de clonidina, transformando-as em pó. O cloridrato de clonidina, um remédio para pressão arterial, tem efeito narcótico, e basta uma vodca batizada com a droga para o cliente capotar – e, então, ser depenado. Ao acordar de cueca, ele provavelmente não correrá até o policial mais próximo. Bêbado ou não, ele deve saber que na Três Estações os policiais são os cafetões.

Ao avançar por trás da estação, topamos com uma briga de gangues, russos contra tadjiques, uns oito de cada lado, com idades entre 10 e 20 anos. Um tadjique derrubou um russo e está socando a cara dele contra o concreto. Sasha me manda ficar onde estou e se embrenha no melê. O tadjique pára, de punho erguido, tentando sacar quem é o intruso. O russo no chão ergue sua cabeça massacrada com a mesma pergunta no olhar. Ouço Sasha dizer a eles o equivalente russo de "Parem com isso e vão pra casa". Mas as gangues já estão em casa, cada bando reivindicando o mesmo território – eis o problema.

O que eles mais odeiam, além de seus adversários, é a presença de um estranho. Eles não são inocentes. Traficam drogas, depenam bêbados e avançam contra qualquer um que esteja sozinho e desarmado. O tadjique apanhou sua boina.

O russo levantou-se. A barra ali não podia ser mais pesada. Será que Sasha tem uma arma? Não precisaria: de cara feia, eles preferem cair fora.

Eu seria um alvo fácil, mas Sasha, definitivamente, não é um tipo com quem se mexe. O tadjique ainda o cumprimenta e o chama de "brother", como se eles fossem se cruzar de novo.

Na verdade, descubro depois, Sasha traz na cintura uma pistola da qual ele muito se orgulha. Foi um prêmio de honra ao mérito. Um dos lados da arma tem uma inscrição com seu nome, feito um troféu. Ele odeia ter de usar aquilo.

CARROS De dia, as ruas de Moscou são invadidas por Mercedes negros com vidros fumê mais escuros do que permite a lei. À noite, os BMW e os Porsche saem para brincar. O tráfego noturno em torno do Kremlin possui uma força centrífuga que catapulta as máquinas a velocidades inalcançáveis por qualquer viatura policial. E, mesmo que algum motorista seja pego, ele simplesmente vai molhar a mão do policial no ato.

A coisa lembra pesca esportiva: é fisgar e soltar. A Rússia tem índices alarmantes de acidentes automobilísticos. Mas nem parecem tão altos se você considerar que se pode obter uma carteira de motorista mediante propina.

Uma característica especialmente suicida de avenidas e estradas russas é a existência de uma pista intermediária com mão dupla de direção. Ela é reservada aos veículos com luzes azuis no teto, permitindo que as altas autoridades possam correr para seus negócios de Estado. Tais luzes são objeto de desejo para um novo-russo apressadinho. O preço atual de um luz azul e chapa branca é de 50 000 dólares. Não é raro ver duas carreatas de chapas brancas xispando em rota de colisão, feito carrinhos bate-bate de parque de diversões.

SOBRIEDADE A tarde já vai avançada, o Sol se dissolvendo no lusco-fusco, quando chego para o almoço no apartamento de Alexei (não é esse seu nome verdadeiro). Alexei e Andrew já estão na metade da segunda garrafa de vodca. Tento alcançá-los, mas não sou páreo. Magro feito um palito, Alexei é crítico de arte, acadêmico e colecionador de porcelana fina, um intelectual que vai se animando mais a cada trago. Andrew é britânico, mas tem negócios na Rússia e está acostumado a nadar em vodca, digamos assim.

Às tantas, Alexei jura que viu um vídeo flagrando o presidente americano em pleno ato de grudar um chiclete debaixo de uma mesa no famoso Museu Hermitage, em Moscou. Alexei está convencido de que George W. Bush declarou guerra à cultura russa. Na real, o magrelo acabou de passar pela humilhante experiência de ver negado o seu visto de entrada nos Estados Unidos. Ele acha que, na prática, o Departamento de Estado o acusou de tentar se infiltrar no país, quando o que acontece é justamente o contrário.

Os Estados Unidos é que estão invadindo a Rússia, sob o falso pretexto dos investimentos, pelo processo de aburguesamento. Ele até ouviu falar de um bairro em Moscou que baniu os carros russos. Só se permitem carros estrangeiros!

E por que ele ia querer virar americano?

Afinal, para Alexei, Moscou é mais segura à noite que Nova York. Pode-se andar pelo centro a qualquer hora, bêbado ou sóbrio. Ele dá um exemplo. Uma semana atrás, ele visitou o ateliê de um artista interessado na arte nazista, no narcisismo e na banalidade dessa arte. Foi uma discussão profunda, sendo que, às 2 da madrugada, a vodca acabou. Eles já estavam meio bêbados, mas Alexei conhecia uma loja do outro lado da cidade que estava aberta. Andaram muito, discutindo pintura, escultura e arquitetura fascistas. Na loja, compraram bebida e, ao se voltar para sair, viram seu caminho bloqueado por quatro skinheads tatuados com suásticas e retratos de Hitler.

O grandalhão do grupo perguntou a eles por que estavam falando mal do Führer. Alexei achou que iam apanhar. Mas eis que o artista, meio de pileque ainda, abriu uma garrafa e convidou os skinheads a ir até seu ateliê. No caminho, bebiam enquanto o artista discorria sobre arte moderna, a começar de Cézanne. A palestra foi tão entediante, e os skinheads ficaram tão bêbados, que já não conseguiam andar por si sós. Alexei e ele, então, foram despejando os caras, um a um, em vários pátios de prédios, demonstrando a diferença entre estar bêbado e só meio bêbado.

O que isso tem a ver com a segurança de Moscou? Meu próprio nível etílico não me permite acompanhar o raciocínio dele. A certa altura, vejo que escurecera. Alexei abre uma janela que nos traz o burburinho das ruas, o que me leva a perguntar se ele já ouvira falar dos "pegas" noturnos de carros e motos. Acho descabido perguntar isso a um artista, mas ele me responde com outra pergunta: "No Anel do Jardim?"

O mero fato de ele saber isso já me surpreende. "Sim", respondo. "O tempo recorde que um carro leva para completar a volta é de seis minutos." "Cinco", me corrige ele. "Você já...?", rebato. "Já, em nove minutos." Ele suspira, lamentando a glória perdida. "Parei nos faróis vermelhos."

CASSINO Andrei Sychev lança um olhar de inspeção para 220 máquinas caça-níqueis, 30 mesas de jogos, um bar com telas de TV exibindo esportes e uma área vip. Empregado do cassino Udarnik, ele não entende por que a prefeitura quer fechá-lo, "matando um ganso que só bota ovos de ouro". O governo acusa os cassinos de "dano moral", e já fechou vários deles, prometendo realocar outros nas "zonas Las Vegas", nas remotas fronteiras da Federação Russa, até o fim do ano que vem.

Para alguns, a noite moscovita sem o brilho das luzes dos cassinos poderá se assemelhar a um ano sem primavera. As autoridades, porém, já interditaram centenas de pontos de jogo. O cassino Udarnik é mesmo uma empresa criminosa? "Claro que não", diz Sychev. Quer dizer, não mais que qualquer outro empreendimento. Talvez só 10%, uma vez que, para efeito de proteção, todo mundo precisa ter um "teto" – algo como "costas quentes". Não pense em nada como a máfia, e sim em algo como uma "polícia alternativa".

Alexei me disse que os americanos nunca vão entender a Rússia, pois só enxergam o branco e o preto, e não as nuanças intermediárias. Já os russos vêem uma área cinzenta de uns 80%, talvez. O que nos leva ao...

PREFEITO Desde Stalin, ninguém deixou tantas marcas em Moscou quanto o prefeito Yuri Lujkov. Um baixinho metido a colosso, ele ergue arranha-céus com a mão direita enquanto arrasa bairros históricos com a esquerda. Os holofotes que iluminam os palácios de Moscou à noite estão sob seu comando. Ele ornamenta a cidade com estátuas que enfurecem seus críticos, os quais ele ignora. Ele é o que os russos chamam de mujique, um campônio tosco. Embora Lujkov e Vladimir Putin tenham sido adversários no passado, os dois parecem concordar em que os cassinos espalhafatosos estão em descompasso com a nova maturidade e dignidade de Moscou. Isso a despeito de Putin reclamar, como já foi divulgado, que ele nunca sabe como será o skyline da cidade ao se levantar de manhã.

O sentimento prevalente em Moscou é o de que Lujkov pode ser corrupto, mas faz as coisas acontecerem. Quando os fundos escassearam para a reconstrução da Catedral do Cristo Salvador, o prefeito, segundo se diz, não hesitou em achacar tanto empresários quanto a máfia para concluir os trabalhos. De acordo com uma estimativa, em 2005 os russos tiveram de morrer com o equivalente a 316 bilhões de dólares em propinas. Qual o problema, portanto, em se pedir um donativo para uma causa meritória? E é só uma feliz coincidência que uma companhia controlada pela mulher do prefeito, Yelena Baturina, tenha firmado tantos contratos para obras públicas na cidade. Na verdade, Yelena é a única mulher entre os bilionários moscovitas.

TRÊS ESTAÇÕES – PARTE DOIS Sasha e eu enveredamos pela passagem subterrânea de pedestres que sai da estação Kazan. É tranqüilizador encontrar dois seguranças uniformizados no caminho, mesmo que um deles leia um gibi, e o outro, cochile. As lojinhas ao longo do túnel estão fechadas, exceto por uma vitrine que exibe celulares. Emergimos em frente à estação Yaroslavl. São 3 da madrugada, e todos os cidadãos de bem se recolhem aos saguões de espera, cedendo a noite aos zumbis entupidos de vodca, às prostitutas e às gangues de adolescentes tão zonzos de cheirar cola que nem nos notam.

É incrível como, ao pisar o saguão de espera, já entramos de novo no mundo normal. Há cafés, uma livraria, uma área infantil, tudo fechado agora, mas dando testemunho dessa normalidade. Pessoas normais dormem nos assentos. Bebês saudáveis se aninham no colo das mães.

Mas a história não acaba aí. Ao retornar pela passagem subterrânea, topamos com dois homens roubando um bêbado. Um deles ergue a vítima pelo pescoço enquanto o outro vasculha seus bolsos. Temos de contornar a cena para passar. Sasha se posiciona entre mim e os ladrões. Os seguranças permanecem sentados, olhando a coisa toda com curiosidade. Eles são pagos para proteger a vitrine dos celulares e mais nada.

O roubo ao bebum não dura mais que dez segundos. Os ladrões pegam o dinheiro e saem correndo escadaria acima, em direção à rua.

O bêbado cospe sangue e depois suspira. Ele consegue girar o corpo, erguer o tronco e se sentar, abanando a mão em recusa de qualquer ajuda.

À noite? Na Três Estações? Nada acontece.

DIAGHILEV Entre nuvens de fumaça, luzes estroboscópicas e a ensurdecedora batida de house music, os novos senhores do petróleo, do níquel e do gás natural chegam ao clube Diaghilev com mulheres tão silenciosas e belas quanto jaguatiricas na coleira. Em meio a essa cacofonia um milionário pode se soltar e relaxar. Armas são proibidas na boate, que dispõe de um batalhão de 40 seguranças. Qualquer cliente que se sinta carente de proteção tem direito a um guarda-costas pessoal. Um cão farejador treinado para detectar bombas já terá inspecionado os assentos e um relatório de segurança previamente emitido já terá alertado o pessoal sobre as circunstâncias especiais, como a presença de convivas do Irã que não querem ser fotografados bebendo champanhe na companhia de modelos em trajes sumários.

Entro ali com Yegor por uma porta dos fundos. Não tenho idéia de como ele conseguiu arranjar essa minha visita, mas vejo que o chefe da segurança não parece contente. O clube noturno incorpora som incessante, cores e agitação.

Visões psicodélicas se projetam por telas e balcões que servem vodca. Um óvni e um lustre de cristal disputam o espaço aéreo, e um contorcionista dá ao conjunto um toque de Cirque du Soleil.

É um esquema singelo. O "controle do visual" admite mais mulheres que homens, ambos em número suficiente para inteirar uma massa crítica – ou seja, lotação máxima. Quanto mais gente é barrada na porta, mais gente quer entrar. O verdadeiro Diaghilev, que dá nome ao lugar, foi um empresário de balé clássico, sempre envolto em casacos de pele, que fundou os Balés Russos há 100 anos. Antes de mais nada, era um homem do show business. Ele teria adorado isso aqui.

Os novos-russos se aboletam a suas mesas, acenando para os colegas. Personalidades da TV e representantes do esnobismo europeu temperam a mistura. Logo a pista está tão apinhada de gente que só dá para dançar sem sair do lugar, coisa que as modelos de 1,80 metro, e 15 centímetros de salto, fazem com a maior graça. Yegor repete várias vezes uma pergunta que eu finalmente consigo entender em meio à zorra sonora. "Tudo bem com você? Conseguiu o que queria?"

Não sei dizer. Foi para isso que milhões de russos morreram em guerras e campos de concentração, além de enfrentar um golpe da KGB contra a liberalização do regime comunista, em 1991, e conseguir, por fim, desmantelar o império soviético? Para que um punhado de glutões pudesse se refestelar a noite inteira? Gogol, o grande escritor russo, comparou a Rússia a uma tróica de cavalos em disparada, não a um Bentley atolado numa vala à beira da estrada.

De repente, os alto-falantes silenciam e se ouve um "I love Moscow!", em inglês. É uma cantora americana de microfone na mão. Negra – como poucos na cidade –, ela canta blues. A turma da área vip continua a conversar aos berros, despejando conhaque nos cálices uns dos outros. A turba se une num refrão em inglês: "What are we supposed to do after all that we’ve been through?" ("O que devemos fazer, agora que passamos por tudo isso?") Não conheço a canção. Eles seguem repetindo o mesmo refrão muitas vezes.

(Pouco tempo depois disso tudo, seguindo uma veneranda tradição das boates russas, o Diaghilev foi consumido pelas chamas. Agora, mais que um night club quente, ele é uma lenda.)

LUZES Na minha última noite em Moscou, Yegor me apresenta ao futuro. Rodamos de carro para além do Anel do Jardim, acompanhando o curso do rio até uma área industrial, onde paramos e seguimos a pé ao longo de uma cerca de tela de arame. Se isso é o futuro, não me parece nada excepcional. "Olhe pra cima", diz Yegor. "Não vejo nada", respondo. "Olhe mais pra cima!"

Contra o negror da noite, ergue-se uma escada de luzes tão alta que não dá para ver onde termina. Mas eis que um facho de luz vermelha assoma à beira de um patamar aberto não longe de Marte. "É o Centro Internacional de Negócios, também conhecido como Moscow City", diz ele. "Uma cidade dentro da cidade."

Parece aquele pé de feijão do conto de fadas que sobe aos céus – um complexo de 14 edifícios, entre eles a Russia Tower, de 113 andares, projetada para ser o prédio mais alto da Europa. Um guindaste gigante descreve uma pirueta no topo do que será a Moscow Tower, de "apenas" 72 andares.

O trabalho prossegue dia e noite. Um holofote revela figuras de capa amarela encarapitadas na carga que o guindaste transporta. Ouvimos o estampido seqüenciado de uma pistola de rebites, o choque de chapas de metal e até mesmo vozes, criando uma curiosa sensação de intimidade.

Os prédios se acham em estágios variados de construção. Os que já foram terminados se assemelham a naves espaciais prontas para partir.

A escala é colossal. A escavação no terreno, por si só, seria capaz de engolir as pirâmides de Gizé, no Egito. O complexo deverá abrigar a prefeitura, mais escritórios e apartamentos de luxo com vista até meio caminho para a Finlândia.

Essa é a vantagem de estar em Moscou à noite. Durante o dia, só se enxerga a arquitetura. À noite, dá para ver a ambição flamejante.
agosto de 2008
Por: Martin Cruz Smith Foto: Gerd Ludwig
Matéria publicada na Revista National Geographic

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