sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Sete anos de guerra no Afeganistão: desafios políticos e novas estratégia


Afeganistão
Afeganistão
دولت اسلامی افغانستا

por Pablo Perez Sampedro Romero e Rafael da Soler
17 Dec 2008
Meridiano 47

Ao final de sete anos de conflito no Afeganistão, verificam-se tendências estruturais que impõem novos desafios aos atores internacionais, regionais e domésticos envolvidos. Questões como a expansão da zona de influência dos talibãs no sul e leste do país, o aumento progressivo das mortes de civis e militares, a disposição de parte das lideranças políticas em adotarem um pacto nacional, associadas a um quadro de fragilidade institucional, representam maiores obstáculos à atuação das forças multinacionais e à articulação de potências regionais na busca pela resolução do conflito e pela estabilização do Afeganistão.
Com o objetivo de compreender melhor o objeto de análise, o texto se divide em duas seções. Na primeira, é abordado o envolvimento dos atores regionais no desenvolvimento do conflito e seu papel na estabilização do país. Posteriormente, o texto trata da evolução da atuação internacional na questão afegã e dos desafios apresentados à manutenção da aliança diante do aumento sistemático do número de mortes.
As origens e desenvolvimentos da crise política do Afeganistão não podem ser plenamente compreendidos sem uma análise cuidadosa da participação dos atores regionais e de como eles influenciam a situação interna do país. Desde antes da intervenção americana, em 2001, observou-se que o envolvimento de potências regionais como o Irã, o Paquistão e a Arábia Saudita foi um fator que afetou diretamente as dinâmicas da guerra civil e o processo de relativa estabilização política representado pela ascensão dos talibãs.
Há ao menos dois fatores que explicam porque o Estado afegão e sua política interna são sensíveis aos efeitos das forças regionais. Em primeiro lugar, por ocupar uma posição estratégica, a meio caminho entre a Federação Russa e o Golfo Pérsico, e por ser um espaço para transporte de recursos energéticos. A situação estratégica, desse modo, explica por que estados vizinhos e potências regionais têm interesse na estabilização política do país. Em segundo lugar, por ser constituído de entidades etnopolíticas que mantêm relações com os estados vizinhos. Nesse sentido, o Afeganistão, assim como o Líbano, por ser compreendido como uma arena onde se projetam interesses regionais, fato que é viabilizado pelas afinidades políticas, históricas e sócio-culturais existentes entre comunidades internas e suas contrapartes externas. A situação de diversidade étnico-política explica também por que os atores regionais mantêm visões estratégicas distintas a respeito de como o equilíbrio político deveria estabelecer-se no Afeganistão.
Exemplos de choque de interesses dos atores regionais e seus efeitos para as dinâmicas internas do Afeganistão podem ser facilmente encontrados na história recente do país. Paquistão, Arábia Saudita e, em menor medida, os Emirados Árabes Unidos, contribuíram, desde 1994, para a criação e consolidação do Talibã, que já em 1996 ocupou o governo do país, fato que se insere em uma tendência histórica de apoio político e material a grupos islamistas, empreendidos por Riad e Islamabad, para conter a dominação soviética desde o início dos anos 90. O Irã representa, por outro lado, importante eixo de oposição aos interesses dos outros atores, sendo inimigo tradicional dos talibãs e interpretando as ações do Paquistão e da Arábia Saudita como obstáculos à influência tradicionalmente mantida na região.
Os interesses dos referidos atores apresentam certa continuidade histórica e suas origens encontram-se, com já dito, seja em afinidades culturais e ideológicas mantidas em relação a atores internos, seja em motivações estratégicas, ligados à própria dinâmica política da região. O caráter multi-étnico do Estado afegão explica uma série de alinhamentos políticos, notadamente, a ligação do Irã a populações xiitas e persófonas, como os hazara; das minorias uzbeques e tadjiques ao Uzbequistão e Tadjiquistão e da etnia majoritária pachtu a seus correlatos paquistaneses. A defesa de vertentes sunitas fundamentalistas do islamismo político é, também, uma explicação para o alinhamento de diversos grupos no interior do Afeganistão ao Paquistão, em cujas regiões de fronteira muitos se originaram, e à Arábia Saudita, que representa o baluarte simbólico do fundamentalismo sunita.
Do ponto de vista das dinâmicas estratégicas da região, observa-se que os interesses da Arábia e do Paquistão articulam-se de modo a impedir que o Irã protagonize o processo de reconstrução estatal no Afeganistão e inclua-o em sua área de influência direta: a bandeira do islamismo político e a oposição a qualquer projeto hegemônico iraniano na Ásia Central alinhavam a posição dos dois países que, são, ademais, aliados estratégicos dos EUA na região. Os interesses paquistaneses, contudo, estão também ligados a questões logísticas e energéticas, no que se refere ao projeto de exportação de gás e petróleo através dos territórios afegão e paquistanês.
Compreender o padrão histórico de influência dos atores regionais no Afeganistão é importante, porque, em termos essenciais, os interesses do Paquistão, Arábia Saudita e Irã pouco mudaram, exceto pelo fato de que, diante da perspectiva de agravamento da crise, a reestabilização política do país emerge como um interesse comum mais premente. A presença massiva de tropas estrangeiras, o status internacional do conflito, bem como o acentuado grau de desagregação política, de violência sectária e de terrorismo contra civis e militares impõe, desse modo, novos desafios ao papel desempenhado pelos atores na resolução da crise.

Dois eventos, ocorridos em outubro de 2008, apontam para uma demonstração de vontade política de atores internos e externos para a construção de um novo pacto nacional, que poderia abrir portas à resolução do conflito civil e da crise política. O primeiro deles refere-se a um possível encontro, noticiado por autoridades sauditas, entre o presidente Hamid Karzai e lideranças talibãs, na Arábia. Embora nenhuma negociação tenha sido confirmada oficialmente pelo porta-voz do Talibã, o encontro teria um importante significado simbólico, indicando que o governo estaria disposto a incluir o Talibã em um futuro pacto político. O segundo evento corresponde a uma assembléia (Jirga) convocada em Islamabad, que reuniu lideranças paquistanesas e afegãs para tratar dos incidentes fronteiriços que vêm ocorrendo entre os dois países.
Ambas as iniciativas representaram passos importantes para a construção de um pacto entre as principais lideranças políticas, muito embora nenhum resultado concreto tenha sido alcançado. Em ambos os casos observou-se, também, certo protagonismo dos poderes regionais, que pode ser analisado de modo distinto em cada caso. O caráter fortuito do encontro na Arábia Saudita revela a indisposição desse país em ter uma participação ativa na resolução da crise. Entretanto, o governo de Riad tem interesse na estabilização do Afeganistão e teme o fortalecimento de milícias islâmicas no país e o transbordamento do conflito para o Paquistão, tendo-se mostrado disposto a servir como facilitador do diálogo político. Para Islamabad, contudo, os efeitos desestabilizadores do conflito afegão justificam sua atitude mais assertiva em cooperar para o saneamento da crise.
A atuação das potências regionais deve também ser compreendida à luz dos fatores domésticos que definem a situação política no Afeganistão. Atualmente, dois fatores internos são determinantes para a definição de cenários: (1) o aumento de poder relativo dos talibãs no sul e oeste afegãos e (2) a disposição dos grupos políticos internos em negociar um pacto político. O primeiro fator significa que o Talibã consolidou-se como uma força política de facto no interior do país, que possui bases de apoio em setores da população - pachtus, em especial -, que demonstrou grande poder de resistência contra as tropas estrangeiras de ocupação, e que, portanto, seria plausível considerar sua inclusão em um pacto político no futuro. O segundo fator, contudo, aponta para um impasse político configurado pela indisposição de certos grupos a negociar com o Talibã - por conta de rivalidades políticas, étnicas e religiosas - e da indisposição dos talibãs em compor qualquer pacto político com o governo antes da retirada das tropas estrangeiras, o que torna a idéia de um pacto fantasiosa no curto prazo.
Nota-se, portanto, que a atuação das potências regionais deve ter em conta os interesses dos principais atores domésticos e as dinâmicas políticas em que estão envolvidos. A conclusão geral que se pode tirar a respeito dos efeitos da agência externa no Afeganistão é que as potências regionais têm um papel fundamental na pacificação e estabilização do país. Por razões já apontadas, a atuação das forças regionais pode ter um grande poder desestabilizador, na medida em que pode instrumentalizar rivalidades políticas e étnico-religiosas que minariam qualquer possibilidade de consenso nacional. A resolução do conflito civil e a estabilização do país parecem, contudo, emergir, definitivamente, como interesses prioritários tanto do Irã como do Paquistão e Arábia Saudita.
O engajamento da comunidade internacional no processo de estabilização do Afeganistão ocorre, principalmente, por meio da Força de Assistência para a Segurança Internacional (ISAF, em inglês). A Operação Enduring Freedom, liderada pelos Estados Unidos, foi estabelecida logo após os ataques terroristas de setembro de 2001 e age com o objetivo de eliminar as redes terroristas do país, paralelamente à ISAF. Em dezembro de 2001, na Conferência de Bonn, líderes afegãos e autoridades internacionais estabeleceram diretivas iniciais para a reconstrução do país, incluindo a formação de um governo interino e de uma força multinacional de manutenção de paz. Neste sentido, o Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizou a formação da ISAF, sob o comando do Reino Unido, com os objetivos de estabilizar o Afeganistão e criar condições para a paz auto-sustentada.
A participação de países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na ISAF ocorreu desde o princípio; contudo, o comando rotatório da Força prejudicava sua ação. O ano de 2003 foi decisivo para a adoção, por parte da OTAN, de uma postura protagonista na questão afegã. Em abril, o Conselho do Atlântico Norte decidiu pela expansão do apoio da organização, e, em agosto, a OTAN assumiu o comando e a coordenação da ISAF, congregando uma coalizão de 41 países. Seguiu-se um processo de expansão de seu mandato, até então restrito à região de Cabul. As tropas da ISAF-OTAN assumiram o controle de diversas províncias no norte e no oeste do país, além de coordenarem as Equipes de Reconstrução Provincial. A partir de 2006, a coalizão assume o controle de áreas no sul e no leste do Afeganistão, regiões sob forte influência do Talibã e sujeitas a insurgências. Atualmente, as 50.700 tropas sob liderança da ISAF-OTAN buscam assistir as autoridades afegãs em estender e exercer sua influência sobre todo o país, criando as condições para a estabilização e a reconstrução.
A situação no Afeganistão tem, contudo, recrudescido nos últimos anos. Desde 2003 verifica-se tendência de aumento no número de mortes, tanto de militares como de civis. Do total de 940 mortes de combatentes registradas desde 2001, 258 ocorreram em 2008 (até setembro), que já figura como o ano com maior número de baixas. Com relação aos civis, a Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão (UNAMA) relatou a morte de 1.445 afegãos nos primeiros oito meses de 2008, um aumento de 39% em relação ao mesmo período do ano anterior.
São muitos os obstáculos que justificam essa situação. A ampliação da presença militar internacional não foi acompanhada de uma estratégia unificada de estabilização econômica e política. As Equipes de Reconstrução Provincial são liderados por países diferentes e suas atividades não são coordenadas por uma estratégia unificada de reconstrução, de modo que diferentes estratégias são implementadas paralelamente. A despeito do treinamento implementado pela ISAF-OTAN e pela missão européia EUROPOL, as agências afegãs de aplicação de lei (polícia, exército, sistema judiciário) ainda não adquiriram o necessário grau de eficácia e idoneidade para manterem o país estável. O governo afegão é inoperante em 70% do território nacional, deixando espaço para a expansão dos Talibãs e de outros grupos insurgentes. De fato, é justamente a ampliação da área controlada pelos Talibãs que demanda maiores operações contra-insurgência, dificultando a execução do objetivo inicial da ISAF-OTAN, de reconstruir e estabilizar o país.
O engajamento das forças aliadas em combates diretos com insurgentes tem sido um dos principais pontos de discórdia na gestão da missão. Em tese, a Enduring Freedom é responsável por combater diretamente as redes terroristas no sul e no leste do Afeganistão, enquanto a ISAF-OTAN mantém a estabilidade de modo a permitir a consolidação do governo central em todas as regiões. Na prática, a presença das forças aliadas em regiões mais violentas impede sua ação de maneira eficaz e faz com que a segurança da própria missão se torne o objetivo principal. No sul, as tropas são autorizadas a aplicarem “autodefesa pró-ativa”, um conceito vago que revela um desvio de prioridades.
Os desafios postos à atuação da ISAF-OTAN não se restringem ao Afeganistão. Tanto no ambiente doméstico dos países colaboradores como no plano multilateral existem sérios obstáculos ao sucesso da missão. O crescimento do número das mortes de militares está relacionado ao aumento dos ataques terroristas direcionados às unidades aliadas de manutenção de paz. Tal estratégia vem sendo eficazmente adotada pelos Talibãs com vistas a enfraquecer a aliança e tem como principal conseqüência a maior oposição popular ao envolvimento de tropas nacionais no Afeganistão. Em agosto de 2008, dez soldados franceses foram mortos em um ataque na cidade de Sirobi, 50 km de Kabul, gerando grandes protestos domésticos contra o engajamento do país no conflito. O percentual de franceses que é contra a manutenção das tropas no Afeganistão pulou de 55% para 62%.
O fato exemplifica a rejeição popular à guerra na maior parte dos países da ISAF-OTAN. Tanto o engajamento como a ampliação das tropas são rechaçados pelas populações dos Estados-membros da missão. Nos Estados Unidos, a intervenção afegã é vista como a “guerra boa”, por não ser tão reprovada pelo eleitorado como a invasão do Iraque. Porém, como a estabilização do Afeganistão demanda uma aliança internacional forte o suficiente para derrotar as redes terroristas locais, os EUA não podem agir sozinhos, e a cooperação dos aliados da OTAN é fundamental. O compromisso com a operação afegã foi reafirmado pelos seus membros na Conferência da OTAN de Bucareste (Romênia), realizada em abril de 2008. Contudo, os governos dos países-membros, em resposta às pressões populares, são cada vez mais reticentes em enviar novos contingentes militares, fundamentais para a estabilização do país.
A esse fato se combina o processo de redefinição da OTAN na ordem pós-Guerra Fria, que está longe de ser concluído. A missão no Afeganistão não é apenas a primeira da aliança euro-atlântica fora da Europa, como também a maior de todas, o que gera questionamentos entre seus participantes sobre o papel da OTAN na Ásia Central e sobre a necessidade de se despender tantos recursos em um conflito tão distante do espaço euro-atlântico. Deste modo, a disposição política dos governos europeus em manter e aprofundar a aliança com os Estados Unidos na questão afegã dependerá da capacidade de Washington em dialogar com seus principais aliados.
Postos os principais desafios à ISAF-OTAN, é fundamental considerar a transição política corrente nos Estados Unidos. Durante sua campanha, o então candidato Barrack Obama assegurou que o Afeganistão estará no centro de sua política anti-terrorismo. Os planos do presidente norte-americano eleito incluem a retirada de tropas do Iraque e o envio de novos contingentes para o Afeganistão, usando este compromisso para angariar maiores contribuições - com menos restrições - dos aliados da OTAN. Outro ponto importante é o aumento de ajuda não-militar em US$ 1 bilhão, acelerando a reconstrução da infra-estrutura e da economia local e consolidando o governo central. O sucesso no Afeganistão é fundamental para a legitimação internacional da política anti-terror norte-americana, e Obama deverá aproveitar seus primeiros meses de governo para conseguir maiores garantias de comprometimento dos aliados. Entretanto, a redefinição da estratégia da missão não será fácil, na medida em que se considerem a resistência dos europeus em enviar novas tropas e as restrições impostas pela crise financeira mundial.
O reconhecimento dos limites da atuação de cada um dos agentes envolvidos é fundamental para que se alcancem os objetivos de estabilidade e paz sustentável no Afeganistão.
Se por um lado a presença de forças estrangeiras é necessária para garantir um nível básico de segurança que permita a consolidação do poder estatal, por outro, é necessário que o fortalecimento do Estado venha acompanhado de um consenso mínimo entre os grupos políticos principais. Neste sentido, a resolução da crise no Afeganistão passa pela maior articulação entre atores domésticos e internacionais, de forma a criar condições para superar os desafios políticos e securitários que caracterizam o conflito.

Pablo P. Sampedro Romero é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações 
Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de 
Análise de Relações Internacionais - LARI (pablopsrel@yahoo.com.br).

Rafael da Soler é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais - LARI (rafadasoler@yahoo.com.br).

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