sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Moscou nunca dorme - parte 6

PREFEITO Desde Stalin, ninguém deixou tantas marcas em Moscou quanto o prefeito Yuri Lujkov. Um baixinho metido a colosso, ele ergue arranha-céus com a mão direita enquanto arrasa bairros históricos com a esquerda. Os holofotes que iluminam os palácios de Moscou à noite estão sob seu comando. Ele ornamenta a cidade com estátuas que enfurecem seus críticos, os quais ele ignora. Ele é o que os russos chamam de mujique, um campônio tosco. Embora Lujkov e Vladimir Putin tenham sido adversários no passado, os dois parecem concordar em que os cassinos espalhafatosos estão em descompasso com a nova maturidade e dignidade de Moscou. Isso a despeito de Putin reclamar, como já foi divulgado, que ele nunca sabe como será o skyline da cidade ao se levantar de manhã.

O sentimento prevalente em Moscou é o de que Lujkov pode ser corrupto, mas faz as coisas acontecerem. Quando os fundos escassearam para a reconstrução da Catedral do Cristo Salvador, o prefeito, segundo se diz, não hesitou em achacar tanto empresários quanto a máfia para concluir os trabalhos. De acordo com uma estimativa, em 2005 os russos tiveram de morrer com o equivalente a 316 bilhões de dólares em propinas. Qual o problema, portanto, em se pedir um donativo para uma causa meritória? E é só uma feliz coincidência que uma companhia controlada pela mulher do prefeito, Yelena Baturina, tenha firmado tantos contratos para obras públicas na cidade. Na verdade, Yelena é a única mulher entre os bilionários moscovitas.

TRÊS ESTAÇÕES – PARTE DOIS Sasha e eu enveredamos pela passagem subterrânea de pedestres que sai da estação Kazan. É tranqüilizador encontrar dois seguranças uniformizados no caminho, mesmo que um deles leia um gibi, e o outro, cochile. As lojinhas ao longo do túnel estão fechadas, exceto por uma vitrine que exibe celulares. Emergimos em frente à estação Yaroslavl. São 3 da madrugada, e todos os cidadãos de bem se recolhem aos saguões de espera, cedendo a noite aos zumbis entupidos de vodca, às prostitutas e às gangues de adolescentes tão zonzos de cheirar cola que nem nos notam.

É incrível como, ao pisar o saguão de espera, já entramos de novo no mundo normal. Há cafés, uma livraria, uma área infantil, tudo fechado agora, mas dando testemunho dessa normalidade. Pessoas normais dormem nos assentos. Bebês saudáveis se aninham no colo das mães.

Mas a história não acaba aí. Ao retornar pela passagem subterrânea, topamos com dois homens roubando um bêbado. Um deles ergue a vítima pelo pescoço enquanto o outro vasculha seus bolsos. Temos de contornar a cena para passar. Sasha se posiciona entre mim e os ladrões. Os seguranças permanecem sentados, olhando a coisa toda com curiosidade. Eles são pagos para proteger a vitrine dos celulares e mais nada.

O roubo ao bebum não dura mais que dez segundos. Os ladrões pegam o dinheiro e saem correndo escadaria acima, em direção à rua.

O bêbado cospe sangue e depois suspira. Ele consegue girar o corpo, erguer o tronco e se sentar, abanando a mão em recusa de qualquer ajuda.

À noite? Na Três Estações? Nada acontece.

DIAGHILEV Entre nuvens de fumaça, luzes estroboscópicas e a ensurdecedora batida de house music, os novos senhores do petróleo, do níquel e do gás natural chegam ao clube Diaghilev com mulheres tão silenciosas e belas quanto jaguatiricas na coleira. Em meio a essa cacofonia um milionário pode se soltar e relaxar. Armas são proibidas na boate, que dispõe de um batalhão de 40 seguranças. Qualquer cliente que se sinta carente de proteção tem direito a um guarda-costas pessoal. Um cão farejador treinado para detectar bombas já terá inspecionado os assentos e um relatório de segurança previamente emitido já terá alertado o pessoal sobre as circunstâncias especiais, como a presença de convivas do Irã que não querem ser fotografados bebendo champanhe na companhia de modelos em trajes sumários.

Entro ali com Yegor por uma porta dos fundos. Não tenho idéia de como ele conseguiu arranjar essa minha visita, mas vejo que o chefe da segurança não parece contente. O clube noturno incorpora som incessante, cores e agitação.

Visões psicodélicas se projetam por telas e balcões que servem vodca. Um óvni e um lustre de cristal disputam o espaço aéreo, e um contorcionista dá ao conjunto um toque de Cirque du Soleil.

É um esquema singelo. O "controle do visual" admite mais mulheres que homens, ambos em número suficiente para inteirar uma massa crítica – ou seja, lotação máxima. Quanto mais gente é barrada na porta, mais gente quer entrar. O verdadeiro Diaghilev, que dá nome ao lugar, foi um empresário de balé clássico, sempre envolto em casacos de pele, que fundou os Balés Russos há 100 anos. Antes de mais nada, era um homem do show business. Ele teria adorado isso aqui.

Os novos-russos se aboletam a suas mesas, acenando para os colegas. Personalidades da TV e representantes do esnobismo europeu temperam a mistura. Logo a pista está tão apinhada de gente que só dá para dançar sem sair do lugar, coisa que as modelos de 1,80 metro, e 15 centímetros de salto, fazem com a maior graça. Yegor repete várias vezes uma pergunta que eu finalmente consigo entender em meio à zorra sonora. "Tudo bem com você? Conseguiu o que queria?"

Não sei dizer. Foi para isso que milhões de russos morreram em guerras e campos de concentração, além de enfrentar um golpe da KGB contra a liberalização do regime comunista, em 1991, e conseguir, por fim, desmantelar o império soviético? Para que um punhado de glutões pudesse se refestelar a noite inteira? Gogol, o grande escritor russo, comparou a Rússia a uma tróica de cavalos em disparada, não a um Bentley atolado numa vala à beira da estrada.

De repente, os alto-falantes silenciam e se ouve um "I love Moscow!", em inglês. É uma cantora americana de microfone na mão. Negra – como poucos na cidade –, ela canta blues. A turma da área vip continua a conversar aos berros, despejando conhaque nos cálices uns dos outros. A turba se une num refrão em inglês: "What are we supposed to do after all that we’ve been through?" ("O que devemos fazer, agora que passamos por tudo isso?") Não conheço a canção. Eles seguem repetindo o mesmo refrão muitas vezes.

(Pouco tempo depois disso tudo, seguindo uma veneranda tradição das boates russas, o Diaghilev foi consumido pelas chamas. Agora, mais que um night club quente, ele é uma lenda.)

LUZES Na minha última noite em Moscou, Yegor me apresenta ao futuro. Rodamos de carro para além do Anel do Jardim, acompanhando o curso do rio até uma área industrial, onde paramos e seguimos a pé ao longo de uma cerca de tela de arame. Se isso é o futuro, não me parece nada excepcional. "Olhe pra cima", diz Yegor. "Não vejo nada", respondo. "Olhe mais pra cima!"

Contra o negror da noite, ergue-se uma escada de luzes tão alta que não dá para ver onde termina. Mas eis que um facho de luz vermelha assoma à beira de um patamar aberto não longe de Marte. "É o Centro Internacional de Negócios, também conhecido como Moscow City", diz ele. "Uma cidade dentro da cidade."

Parece aquele pé de feijão do conto de fadas que sobe aos céus – um complexo de 14 edifícios, entre eles a Russia Tower, de 113 andares, projetada para ser o prédio mais alto da Europa. Um guindaste gigante descreve uma pirueta no topo do que será a Moscow Tower, de "apenas" 72 andares.

O trabalho prossegue dia e noite. Um holofote revela figuras de capa amarela encarapitadas na carga que o guindaste transporta. Ouvimos o estampido seqüenciado de uma pistola de rebites, o choque de chapas de metal e até mesmo vozes, criando uma curiosa sensação de intimidade.

Os prédios se acham em estágios variados de construção. Os que já foram terminados se assemelham a naves espaciais prontas para partir.

A escala é colossal. A escavação no terreno, por si só, seria capaz de engolir as pirâmides de Gizé, no Egito. O complexo deverá abrigar a prefeitura, mais escritórios e apartamentos de luxo com vista até meio caminho para a Finlândia.

Essa é a vantagem de estar em Moscou à noite. Durante o dia, só se enxerga a arquitetura. À noite, dá para ver a ambição flamejante.

Por: Martin Cruz Smith Foto: Gerd Ludwig
Matéria publicada na Revista National Geographic

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