terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Guerra no Cáucaso do Sul: o gigante e o anão


Guerra no Cáucaso do Sul: o gigante e o anão
Escrito por Maria Raquel Freire
01-Set-2008
Há cerca de um ano atrás, caminhando pelas ruas de Tbilisi, a atmosfera que se vivia era de um país em transformação, bem distante da Geórgia tímida pós-independência. O buliço nas ruas da cidade assemelhava-se a qualquer metrópole europeia, com trânsito caótico, pessoas apressadas, brincadeiras de crianças e, à noite, o ambiente fervilhava, desde os típicos cafés e bares à ópera. Cheguei à capital da Geórgia vinda de Baku (Azerbeijão), atravessando o controlo fronteiriço na Ponte Vermelha, sobre o rio Khrami, na região sudeste de Kvemo Kartli.

Nos cerca de 70 quilómetros que separam a fronteira de Tbilisi, o cenário rural foi apenas interrompido por uma grande cidade industrial – Rustavi – a fazer lembrar os tempos soviéticos. Os trabalhos na estrada (de alargamento e pavimentação) não escaparam aos protestos do condutor. Apesar destes protestos, e das muitas dificuldades de uma população empobrecida, a pequena república do sul do Cáucaso fazia notar o seu desejo de abertura, democratização e modernização.

Frente ao Parlamento, pequenos cartazes em cartão tosco afixados em postos de iluminação afirmavam que a adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) era prioridade de política externa. E à conversa com representantes oficiais, o discurso da ameaça sublinhava sempre as relações com a Federação Russa. Um passado não esquecido e cujos últimos desenvolvimentos vêm apenas avivar.

A compreensão dos acontecimentos deste verão quente remete para a contextualização mais lata de políticas e opções num conjunto de dinâmicas que terminaram numa espiral de violência. As relações entre a Geórgia e a Rússia têm sido difíceis desde a desagregação da União Soviética, com as declarações de independência da Abcázia e da Ossétia do Sul, não reconhecidas pelas autoridades centrais em Tbilisi, a complicarem o cenário. Mesmo a adesão tardia da pequena república à Comunidade de Estados Independentes (CEI), no Outono de 1993, acabou por resultar de pressão económica e política russa, mais do que da vontade expressa desta.

O curso pró-ocidental da Geórgia, com desejo manifesto de adesão às estruturas ocidentais, em particular a NATO e a União Europeia (UE), traduziu-se nos últimos anos na implementação de reformas várias nos sectores político, económico, social e militar. Apesar de grandes transformações, as dificuldades da transição não são pequenas, e os custos a diferentes níveis têm também sido substanciais. O Presidente Saakashvili, que assumiu os destinos do país após a Revolução Rosa, contando com amplo apoio ocidental, desenvolveu um estilo dinâmico de governação, onde por vezes a impaciência se tem revelado inimiga da morosidade inerente aos processos de consolidação democrática. Os discursos inflamados contra uma Rússia descrita como agressora e imperialista, e o aumento claro de intensidade nas referências à integração plena da Abcázia e da Ossétia do Sul no estado georgiano, num curto prazo, revelam as dificuldades no relacionamento bilateral com Moscovo, além de acentuarem as já muitas diferenças.

Em Abril de 2008, e na sequência de um processo negocial que já se arrasta há anos, Tbilisi apresentou às autoridades em Tskhinvali (Ossétia do Sul) uma nova proposta de partilha de poder, que mais uma vez foi recusada, pois o governo separatista apenas admite como solução o seu reconhecimento enquanto estado independente (assumindo-se como detentores de independência de facto, exigem o reconhecimento da sua independência de jure). A modernização das forças e equipamentos militares georgianos, conjugada com um discurso mais forte e insistente do presidente Saakashvili resultaram em confrontos na província separatista. A intensidade destes acabou por levar à intervenção das forças armadas georgianas na Ossétia do Sul. A esta seguiu-se a resposta de Moscovo, e o resto da história é conhecida.

Nesta medida de forças, o gigante incomparavelmente superior não perdeu a oportunidade de, sem margens para dúvida, demonstrar o seu poderio e fazer valer as suas afirmações quanto à extensão da sua influência no espaço ex-Soviético. Num contexto internacional de grande tensão, onde as relações da Rússia com a Europa e os Estados Unidos atravessam momentos difíceis, estes acontecimentos vieram adicionar instabilidade e incerteza á já grande complexidade existente. O descontentamento russo face às políticas de alargamento da NATO, ao apoio às “revoluções coloridas” no antigo espaço soviético, ao desenvolvimento do escudo de defesa anti-míssil, à intervenção norte-americana no Iraque e ao reconhecimento da independência do Kosovo, entre outros, fazia antever uma resposta russa para além da retórica habitual. Além do mais, as rivalidades existentes relativamente às políticas energéticas, com a diversificação de abastecimentos a significar genericamente a não inclusão da Rússia, como no caso do oleoduto que liga Baku no mar Cáspio ao porto turco de Ceyhan na Turquia através da Geórgia (o BTC), ou projectos em curso, como o da construção do gasoduto Nabucco, também este atravessando território georgiano e ligando as reservas da Eurásia à Europa (um projecto ainda em papel), têm-se revelados problemáticos. Aliás, este parece ser já um projecto comprometido face aos últimos desenvolvimentos e à forma como a Rússia se está a posicionar nesta área estratégica, sublinhando claramente que a sua posição não deve ser desconsiderada.

Nesta acção de resposta, a Rússia dá corpo à sua política externa multi-vectorial e multipolar, conceitos estes reforçados no novo documento de política externa, adoptado pelo Presidente Medvedev em Julho de 2008.1 Com um tom mais assertivo, a política externa russa é nestas duas vertentes definida em grande medida por oposição à primazia norte-americana. Numa lógica de afirmação de poder, o pragmatismo assertivo de Medved, num exercício de continuação da política externa de Vladimir Putin, reforça o princípio de que a CEI é uma área preferencial de intervenção, tendo menor flexibilidade negocial face ao envolvimento de terceiros.2 As críticas de Washington a Moscovo de violação da integridade territorial de um estado soberano e independente são ridicularizadas na Rússia, que justifica as suas acções com base na defesa dos direitos das populações da Ossétia do Sul, vítimas de genocídio e acções de limpeza étnica perpetradas pelos georgianos.3 Trocas de acusações e jogos de palavras que não são novos nestes contextos.

Além do mais, a permanência de forças de manutenção da paz russas, sob a égide da Comunidade de Estados Independentes em território da Ossétia do Sul, reforça este mesmo argumento de protecção, enquanto significando controlo e poder russo nesta região de grande importância estratégica. Como afirmava o Presidente russo Medvedev, “os abkazes e os ossétios não confiam em ninguém para além das tropas russas... Somos os únicos garantes de estabilidade na região”.4 Palavras que apontam para a permanência destas forças russas na Ossétia do Sul, tal como ficou vincado no acordo de cessar-fogo finalizado a 12 de Agosto. Mediado pelo presidente em exercício da UE, o Presidente francês Nicholas Sarkozy, o acordo assenta em seis princípios: cessar-fogo; compromisso de não retorno a hostilidades armadas; retirada de forças militares russas e georgianas para as posições anteriores ao conflito; medidas adicionais de segurança relacionadas com a manutenção das forças de manutenção da paz russas já no terreno, até decisão quanto a um contingente internacional; e conversações sobre o futuro estatuto da Ossétia do Sul e da Abcázia (ponto este que o Presidente georgiano recusou). De destacar é o facto de não ter sido incluída qualquer referência à integridade territorial da Geórgia, dura concessão de Tbilisi, e do ponto relativo às medidas de segurança relacionadas com as forças de paz russas, com uma formulação ampla o suficiente para permitir uma leitura e interpretação favorável aos objectivos russos. E Moscovo foi mais além: o reconhecimento da independência das repúblicas separatistas da Abcázia e da Ossétia do Sul parece ter sido o seu último movimento neste jogo afirmativo.

Os comentários do Presidente Saakashvili revelam uma oposição clara às intenções russas. “[A] Geórgia nunca cederá nenhum quilómetro quadrado do seu território; independentemente do que aconteça nunca aceitaremos anexação ou separação de partes do nosso território, com base em justificações de limpeza étnica e tentativas de enfraquecer a Geórgia e minar o nosso sistema democrático”.5 Mas a sua capacidade de acção é muito limitada. Além do mais, a sua integração na NATO está ainda por definir, apesar do Secretário Geral da organização, Jaap de Hoop Scheffer ter já reforçado que a adesão à Aliança Atlântica se mantém em aberto, e tendo mesmo avançado com a proposta de criação de um Conselho NATO-Geórgia.6 Sinais de apoio ao governo da Geórgia, mas que se concretizam apenas a nível político-diplomático. Aliás, as reacções a ocidente fizeram-se sentir essencialmente a este nível, com o equacionar de medidas sancionatórias sobre a Rússia a revelar a difícil conciliação entre interesses estratégicos e acções de contenção. A eventual suspensão da Rússia do formato G8 ou o retardar da sua entrada na Organização Mundial do Comércio são medidas de impacto muito limitado.

Além do mais, ficou de novo clara a ausência de uma estratégia de base ao relacionamento com a Rússia, cuja delineação é premente. E numa lógica de contenção, esta deve passar por princípios inclusivos assentes em interesses partilhados. A Rússia é um actor estratégico que na delineação de um mundo multipolar exige o reconhecimento do seu posicionamento e influência. A sua demonstração de força no Cáucaso do Sul, área de intersecção de grandes interesses estratégicos, é reflexo da sua política externa assertiva, do seu desejo de reconhecimento no sistema internacional, e de demonstração do seu poderio nesta mesma nova ordem.

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