domingo, 2 de novembro de 2008

O Brasil em um mundo de múltiplas geometrias





José Romero Pereira Júnior

Estudiosos de Relações Internacionais costumam se debruçar sobre a estrutura de poder vigente no mundo. Afinal, a depender da distribuição do poder e da forma como ele é exercido, em linhas gerais, em um determinado período, a ação dos mais variados países pode ser compreendida, pelo menos em parte, por sua relação com o eixo (ou eixos) mais importante(s) de poder no cenário internacional.
Ao longo da história, três foram os modelos tradicionais de distribuição de poder: o multipolar (com várias potências equivalentes, como na Europa do século XIX), o bipolar (com duas superpotências, como durante a Guerra Fria, entre EUA e União Soviética) e o unipolar (como se tende a considerar o período da supremacia romana ou, possivelmente, o período imediatamente posterior ao fim da Guerra Fria, com clara hegemonia norte-americana).
Nenhum desses modelos parece aplicar-se à cena internacional contemporânea. O crescente peso da transnacionalidade, das interconexões pessoais, dos agentes privados e de grandes países emergentes (como Brasil, Rússia, Índia e China - BRIC), para mencionar apenas alguns dos elementos mais marcantes da atual fase de globalização, sugere a emergência de um mundo de variadas geometrias no que tange à distribuição e exercício do poder. A disputa dos diversos atores, públicos e privados, por legitimidade e poder nos campos econômico, político, ambiental, social e cultural faz da dispersão a marca da contemporaneidade, resultando em diferentes equilíbrios de poder em cada uma dessas áreas.
Uma análise pragmática desse contexto impõe aos formuladores de política externa considerar a formação de alianças fundadas em interesses comuns, mas flexíveis, a ponto de permitirem o não engessamento da ação internacional do Estado decorrente de eventuais acordos políticos setoriais. Em linhas gerais, parte do desafio da política exterior contemporânea está em identificar interesses e objetivos em cada campo da atuação internacional do país e, com base neles (e não em alinhamentos pré-concebidos) e na análise do comportamento dos demais atores relevantes em cada cenário, trabalhar na construção de parcerias que possibilitem potencializar ganhos. Deve-se reconhecer, ademais, que a ação externa, pela própria natureza da ordem que parece emergir no início do século XXI, reduz (se não anula) a possibilidade de êxito duradouro que não se funde em movimento concertado, em particular no que tange à resolução dos problemas mais graves, sempre condicionados, em seu equacionamento, pela falta de controle possível por um só ator.
No campo militar, embora persista a supremacia dos EUA, vários são os exemplos de países que têm procurado, com maior ou menor sucesso, construir um espaço de autonomia próprio, que lhes assegure uma confortável margem de manobra em uma conjuntura que, repetidas vezes, parece perturbadoramente turbulenta. Enquadram-se, aqui, todas as potências médias e regionais (como, por exemplo, os BRIC, África do Sul e França) e os países com aspirações de liderança regional (como o Irã).
Para esses países em especial, uma estratégia de inserção nacional bem-sucedida pressupõe um reconhecimento claro da diversidade de cenários e desafios que se apresentam à política exterior nacional, bem como um profundo conhecimento da natureza do poder, em suas também várias dimensões (militar, econômica e branda).
A complementar o quadro mais amplo da alta política internacional, impõe considerar a persistência de conflitos das mais variadas naturezas (pois que se somam às rivalidades de tipo clássico, entre países, conflitos étnico-culturais, separatismos, crises humanitárias etc.) e a reversão da tendência iniciada ao final da Guerra Fria de diminuição dos gastos militares. De fato, após haverem se reduzido no final dos anos 1980 e praticamente se estabilizado em meados dos anos 1990, os gastos militares aumentaram consideravelmente no início do século XXI, acumulando alta de cerca de 45% desde 2001.
Em sua marcha rumo a uma posição de maior autonomia, o Brasil tem se utilizado freqüentemente de seu poder brando (grosso modo, sua capacidade de convencer seus interlocutores de que suas demandas são justas e, por vezes, de interesse geral), cabendo papel de destaque para a atuação da diplomacia neste campo - seja na construção de alianças (como no caso do G20, na Organização Mundial do Comércio), seja na consolidação de sua posição de liderança regional (via integração regional ou presença efetiva, como no caso do Haiti).
Merecem destaque, no modus operandi da diplomacia nacional, a consistência dada pelo histórico de respeito aos princípios do direito internacional, às instituições multilaterais, e a ênfase na busca por soluções concertadas; em particular, em um contexto internacional marcado pela crescente ineficácia - e o crescente repúdio - da ação unilateral. Há que se destacar, nesse sentido, que o tradicional modo de operar do Brasil no sistema internacional parece, em boa medida, adequado à nova realidade internacional e a um sistema marcado pelas múltiplas geometrias.
Nesse contexto de eficiência da ação diplomática conduzida pelo Itamaraty, tanto o poder militar quanto o econômico tem ocupado posição acessória, servindo a uma tradição de inserção pacífica que marca (com rara exceção) a trajetória internacional do país e contribui para sua permanência em posição de destaque - ainda que coadjuvante - nos principais foros internacionais.
O relativo sucesso da estratégia diplomática do Brasil não deve, porém, obscurecer a importância dos outros dois alicerces de uma inserção efetivamente autônoma no cenário internacional, hoje e sempre: o econômico e o militar.
Na esfera econômica, com clara vocação introspectiva, o Brasil continua a conviver com os desafios característicos de sua posição de nação emergente. A estabilização, a redução da vulnerabilidade externa e o maior e mais ativo engajamento na economia internacional (seja nos foros do tipo G8 + G5, seja em termos de ampliação dos fluxos comerciais e de investimentos) são sinais positivos que tendem a contribuir para a consolidação da posição do país como ator chave na gestão da economia política internacional. Ao mesmo tempo, parecem conferir maior estabilidade ao próprio processo de desenvolvimento nacional, recolocando o país na rota do crescimento sustentado - embora ainda dependente de um volúvel cenário internacional.
No campo militar, o país tem acompanhado também em seu entorno mais imediato, a América do Sul, a uma espécie de remilitarização da região, aliada a uma crescente efervescência nacionalista, propensa ao discurso inflamatório e confrontacionista. Esse novo quadro regional vem somar-se a um conjunto de potenciais ameaças que podem ser cristalizados na idéia de cobiça internacional (Amazônia, pré-sal etc.) e que tendem a constituir a matéria primeira de interesse para a área de Defesa.
Orientado pelo imperativo da segurança nacional, sem que se ceda à tentação de participar do grande jogo de hegemonias globais, são indispensáveis o domínio de tecnologias e a construção de capacidade própria no sentido de criar força dissuasória compatível com as dimensões do país, bem como habilitá-lo a participar, condizentemente, da cena internacional, quando para isso for chamado. Nesse sentido, a diversificação de parcerias, com transferência de tecnologia e troca de experiências, é elemento essencial na consolidação de um espaço de autonomia efetivo, em um cenário internacional marcado por sucessivas - e graves - crises.

José Romero Pereira Júnior é professor do Curso de Relações Internacionais da Universidade Católica de Brasília - UCB (romero@ucb.br).

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