domingo, 2 de novembro de 2008

A Estratégia Brasileira para Nacionalizar a Amazônia



Artur Andrade da Silva Machado

Até hoje, não foram poucos os acontecimentos interpretados como pressões externas para “internacionalizar” a Amazônia. O temor por uma “internacionalização” da Amazônia brasileira remonta ao final da década de 1950 e início da de 1960, quando foi fixado o Tratado da Antártida submetendo a região antártica ao julgo internacional. Na época, preocupado com a proteção das fronteiras nacionais, o governo brasileiro criou a Zona Franca de Manaus, com o intuito de integrar a Amazônia Ocidental às dinâmicas socioeconômicas nacionais. Desde muito antes, no entanto, o governo brasileiro já demonstrava preocupação com atuação de forças externas na região.
No primeiro semestre deste ano, em parte devido à saída de Marina, mas também devido a outros fatores (como o relatório lançado pelo Bird em abril que apontava o Brasil como o país que mais desmatou entre 2000 e 2005; e a divulgação das pessimistas cifras do desmatamento do Inpe em maio), a pressão para a “internacionalização” da Amazônia de fato aumentou. Não faltam fatos ilustrativos de tal pressão, como o artigo publicado pelo correspondente do New York Times no Rio de Janeiro; as recorrentes críticas ao Estado brasileiro pelas ONG internacionais; e a preocupação, por parte dos países desenvolvidos, com os efeitos colaterais de incentivar um programa de biocombustíveis nacional, demonstrada durante a visita da Chanceler alemã à Brasília e atribuída ao candidato à presidência dos EUA, Barack Obama, pelo embaixador do Brasil em Washington, Antônio Patriota.
No entanto, embora o debate travado em torno da Amazônia no plano internacional tenha de fato pendido para uma maior cobrança de responsabilidade por parte do Estado brasileiro, tal debate não é novo, mas está associado a uma popularização da temática ambiental, que desde a década de 1970 permanece incorporada à agenda política da comunidade internacional. As pressões internacionais sobre a gestão da Amazônia devem, portanto, ser entendidas como um processo que se estende no plano histórico e tende a se prolongar no futuro das relações internacionais do Brasil. Assim, o exercício que se faz mais válido agora é analisar como vem respondendo o Estado brasileiro a essas pressões em vias de assegurar e de legitimar sua soberania na região amazônica.
A esse respeito, seja por configurar um plano de ocupação da região, seja por representar demandas de setores oficiais por maiores ingerência e responsabilidade no trato de recursos naturais estratégicos, seja por reproduzir contestações populares à soberania brasileira na região, o trato das questões amazônicas por fontes externas sempre foi interpretado pelo governo brasileiro como ameaça aos interesses e à soberania nacionais. A leitura de ameaças à jurisdição nacional sobre a Amazônia brasileira foi responsável pela formulação de políticas públicas que visam vivificar uma região rica em recursos naturais, mas com baixa presença da população e do Estado nacionais. Nesse sentido, embora a Amazônia, devido a suas próprias possibilidades, constitua região de potencial estratégico para o desenvolvimento nacional, as ações do Estado em vias de incorporar a Amazônia à área de atuação estatal e às dinâmicas da população nacional respondem historicamente a uma percepção da necessidade de fazê-lo devido a incentivos externos. Sob essa perspectiva, é possível argumentar que é o governo do brasileiro, e não atores internacionais, que desenvolve uma estratégia para “nacionalizar” a região.
A primeira percepção de “ameaça” que forçou a uma mobilização da atenção do Estado para a região amazônica deriva de um plano norte-americano de ocupação da região em meados do século XIX. Tal plano, atribuído ao empreendedor Willian Troousdale, era pautado na transferência da população negra dos EUA para exploração de borracha e algodão amazônicos e derivava do mito do eldorado produtivo da região, formulado em artigos da marinha dos EUA em 1853. Nessa circunstância, o Estado norte-americano pressionou o Brasil para que este abrisse a navegação dos rios amazônicos em seu território às nações amigas. A resposta da diplomacia brasileira a esse episódio foi permitir estrategicamente a navegação de seus rios pelos países ribeirinhos superiores, protelando o pedido norte-americano até que fosse possível incentivar a ocupação da região com população nacional.
Em 1876, novamente a atenção do Estado brasileiro foi atraída para a região quando o inglês Henry Alexander Wickham levou mudas de seringueira para a Inglaterra de onde foram enviadas à Malásia e à África, o que destruiu o monopólio que o Brasil exercia sobre o comércio da borracha. Desde então o Estado preocupa-se com a “segurança” dos recursos naturais da região impondo multas pesadas pela extradição ilegal de produtos amazônicos e vendo com desconfiança a atuação de atores internacionais na região.
Mais uma vez, no começo do século XX, as pretensões bolivianas de arrendar grande área limítrofe do Brasil em seu território a uma corporação de capitalistas estrangeiros culminaram com intensa mobilização da diplomacia brasileira durante a gestão do Barão do Rio Branco, o que acabou por ampliar o território nacional sobre tal área com a aquisição do estado do Acre. Todavia, não obstante o advento de tais passagens, as preocupações estratégicas do Estado brasileiro estavam direcionadas historicamente para a região do Prata, característica que o Brasil herdara da diplomacia portuguesa de Dom João VI.
Foi somente com a ascensão da temática ambiental na agenda internacional durante a década de 1970 que a região amazônica passou a atrair atenção do Estado de maneira mais evidente. A partir de tal período, cada vez mais a Amazônia passou a ser entendida como um complexo ecológico transnacional estratégico para a manutenção de características ecológicas equilibradas nos níveis regional e planetário. Tal entendimento deriva das dimensões de tal complexo e da natureza das funções que ele desempenha. Em relação ao total dos recursos naturais planetários, a Amazônia reúne um terço das florestas tropicais úmidas, 50% da biodiversidade e 15% da água doce não congelada. Essas características lhe atribuem enorme peso na constituição do regime de chuvas da América do Sul, na possibilidade de desenvolvimento de conhecimento biológico e biogenético e na manutenção da temperatura da terrestre.
Assim, quando cresceu, na comunidade internacional, uma maior conscientização sobre a necessidade do uso sustentável dos recursos naturais já havia, naturalmente, uma crescente preocupação em combater o desmatamento florestal, o que pode ser atribuído à ativa participação das ONG na articulação dos Estados à causa ambiental. A tal conscientização corresponderam pressões externas para que a gestão de florestas tropicais passasse a ser objeto de deliberação da comunidade internacional e de aplicação do direito internacional, o que ocorreu, pela primeira vez, durante a Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992. Recentemente, o governo brasileiro foi trazido a debater a questão amazônica inclusive em cúpulas do G-8, ocasiões nas quais o ex-Premier inglês Tony Blair chegou a advogar a privatização da floresta.
Durante tal processo, já havia antecedentes da atuação do Estado brasileiro na região, estimulada pela percepção de ameaça externa à integridade do território nacional. Desde então, conforme aumentavam, em marcha cada vez mais densa, as pressões para a “internacionalização” da gestão da Amazônia, aumentava também a preocupação do Estado com a manutenção de sua soberania na região. Assim, o Estado, que passou a considerar a região como estratégica para garantir os seus interesses de defesa, respondeu às novas “ameaças à soberania” aumentando a presença do exército no local, instituição que passou a ser o principal veículo do Estado na região amazônica.
O corpo militar brasileiro atua na Amazônia em duas frentes: o Programa Calha Norte (PCN) e o Sistema de Vigilância Amazônico (SIVAN). A primeira delas segue os preceitos da tese da vivificação da fronteira, segundo a qual a posse (presença de facto) reforça o direito ao território; assemelhando-se, dessa maneira, à estratégia que a diplomacia brasileira concebeu em meados do século XIX quando tentou incentivar a ocupação da região com população nacional. O PCN procura, portanto, incentivar a migração de nacionais e o estabelecimento de atividades econômicas nas proximidades das fronteiras com cinco países ao norte, bem como nas calhas dos rios Amazonas e Solimões. Ao exército cabem as funções de fornecer a infra-estrutura mínima necessária para a ocupação e de monitorar tanto a navegação dos rios quanto pontos estratégicos da área coberta pelo programa.
Com o SIVAN, pretende o Estado brasileiro monitorar as fronteiras nacionais de forma a levantar informações para o combate de ameaças definidas a partir de uma noção ampliada do termo, que envolve atividades como o tráfico de ilícitos e o desmatamento. Na prática, as informações geradas pelo mecanismo permitem a monitoração de uma série de outras variáveis, como o uso de recursos hídricos e o uso e a ocupação do solo. Em relação ao uso do solo, o Estado monitora atividades como a aquisição de terras por estrangeiros e a mineração que ficam proibidas na faixa de fronteira (no Brasil equivalente a uma área de 150 km adentrando o território nacional a partir da linha de fronteira).
A despeito da atuação do exército na região, no entanto, a pressão da comunidade internacional pela “internacionalização” da Amazônia não cessou e apareceram novos atores transnacionais aos quais o exército não está preparado para combater. Assim, nesses momentos em que se reforçam as pressões internacionais, tem o Estado nova chance de corrigir os rumos das políticas para a região. Tais políticas dependerão da leitura que o Brasil fará do teor da pressão para a “internacionalização” da Amazônia. Nesse sentido, se por um lado não há nada que aponte, nas declarações oficiais, para a constituição de uma ameaça de invasão clássica, seja por parte de algum Estado especificamente, seja por parte da comunidade internacional como um todo; por outro, a leitura que faz o Estado de pressões desse tipo é historicamente tendenciosa a uma interpretação da questão como afronta aos interesses de defesa nacional.
No entanto, a estratégia brasileira para “nacionalizar” a Amazônia precisa ser revisada. Antes de escolher entre um tipo de política e outro, o ideal seria adotar medidas pensadas para que a comunidade internacional enxergue a soberania brasileira na região amazônica como legítima. Sob essa perspectiva, faz-se necessário, para avaliar a questão de maneira holista, segmentar as fontes de legitimidade em três facetas: uma legal, garantida por tratados; uma coercitiva, garantida pelo componente militar; e uma racional, garantida pelos retornos positivos a ela vinculados.
Em relação a uma legitimidade legal, o Brasil firmou tratados com todos os países lindeiros, gozando do privilégio de não reconhecer contentas em relação às fronteiras nacionais. Em relação a uma legitimidade coercitiva, ao mesmo tempo em que o cálculo estratégico estabelece que a Amazônia é região prioritária, apenas 10% do contingente militar foi enviado à região, ficando responsável pela proteção da metade do território nacional.
Finalmente, dentre essas facetas de legitimidade, a menos desenvolvida no caso brasileiro é a racional tendo em vista que a comunidade internacional não recebe os retornos que espera ao confiar a proteção do complexo amazônico ao governo brasileiro. Terá agora, o Estado brasileiro, nova chance de provar que essa região, tão cara à manutenção da estabilidade ecológica do planeta, está bem protegida sob sua jurisdição com o novo Fundo da Proteção Amazônica, criado no primeiro dia do mês e que conta com recursos de diversos países preocupados com a gestão responsável dos recursos naturais da floresta. Tal fundo representa uma insistência na confiança que deposita a comunidade internacional na capacidade brasileira de proteger seus recursos naturais, mas também indica que haverá ainda maior cobrança por ingerência e responsabilidade na gestão dos recursos amazônicos.

Artur Andrade da Silva Machado é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais - LARI (andradesmachado@gmail.com).

Nenhum comentário:

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos