segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Vinte anos depois do Césio



11/ 09/ 2007 - radioatividade

Vinte anos depois do Césio

Oyanarte Portilho
professor do Instituto de Física da Universidade de Brasília. É pós-doutor pela University of Arizona. Possui mestrado e doutorado em Física pelo Instituto de Física da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Atua na área de Física Nuclear.

Neste mês, 20 anos são contados desde quando a capital goiana foi sacudida por uma quase hecatombe. Os de boa memória recordam-se da sucessão de fatos e das conseqüências que daí advieram: sucateiros depararam-se com uma máquina que havia sido usada para radioterapia, abandonada num prédio em ruínas no centro da cidade. Continha, em seu invólucro de chumbo, uma fonte de césio-137. Não tiveram dúvidas em transportar a máquina até um ferro-velho, onde foi vendida. Após seu desmonte, o material radioativo ali contido tornou-se motivo de curiosidade para Devair – dono do ferro-velho – seus parentes e amigos, em vista da luz azulada que emitia. Dias decorreram, enquanto o material foi manuseado, esfregado no corpo, transportado em vidrinho, em saco de plástico e até ingerido.

Diante dos sintomas apresentados (náuseas, tonteiras e cefaléias, vermelhidão na pele e bolhas), vieram os primeiros diagnósticos equivocados, de dermatose ou reação alérgica a alimentos. Em seguida, a comprovação da síndrome aguda da radiação, o alarme, o confinamento no estádio, a remoção das 14 vítimas mais graves para o Rio de Janeiro, as manchetes correndo na imprensa de todo o mundo. Primeiros óbitos: a menina Leide das Neves e sua madrinha. Elas tiveram os caixões apedrejados ao adentrarem o cemitério por manifestantes que alegavam que os corpos transformariam o local em depósito de material radioativo. Note-se que Leide tornou-se uma intensa fonte radioativa ao ingerir pão com ovo, tendo as mãos sujas do pó de césio. Mais dois rapazes, funcionários de Devair, que efetivamente desmontaram a máquina, também vieram a falecer.

Uma entidade foi criada pelo governo estadual para oferecer acompanhamento médico e assistência social. Oficialmente houve, até hoje, 14 mortes decorrentes da contaminação, mas a Associação de Vítimas defende que esse número atinge 66. Não há dúvidas que essas pessoas devem receber acompanhamento permanente, pois é sabido que, enquanto a chance de aparecimento de leucemia torna-se irrelevante depois de 25 anos, a possibilidade para outros tumores tem tendência crescente entre 10 e 40 anos após a exposição excessiva.

Podemos nos perguntar de quem foi a culpa. Do ponto de vista judicial, foram condenados três médicos, proprietários do instituto onde a máquina funcionava, e o físico, tecnicamente responsável pela mesma. A pena foi cumprida em regime aberto, depois comutada para prestação de serviços à comunidade. Trata-se de uma pergunta de difícil resposta, pois há uma seqüência de ações (ou falta delas), cada qual contribuindo mais ou menos. Com certeza, cada indivíduo julga que cometeu um pequeno deslize que, encadeado a outros, levou a um desastre. Os sucateiros podem considerar que levaram um material reciclável, daqueles com os quais estavam acostumados a vender para sobreviver – guardadas as proporções – como latinhas de refrigerante, sem consciência do perigo que tinham em mãos, embora esse argumento nem sempre valha pois muitos correm risco calculado ao furtarem cabos de eletricidade. Os demais envolvidos, apesar de estarem em outro nível de esclarecimento, possivelmente terão lá suas justificativas.

O mais importante de tudo isso é tirar lições buscando-se minimizar a possibilidade de nova ocorrência. Sabe-se que havia um desleixo com relação a materiais radioativos. Fontes que se enfraqueciam eram simplesmente lançadas ao esgoto de hospitais e universidades. O pessoal da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), disponível para fiscalização, era irrisório. Espera-se que tenha havido desde então uma maior conscientização dessas pessoas e órgãos, construção de locais adequados para o armazenamento e adequação de recursos humanos.

Um outro tema atual é a conveniência do uso da energia nuclear para a geração de eletricidade. Nota-se mudança de postura por parte de alguns fundamentalistas da defesa do meio ambiente. Muitos estão considerando que vale mais correr o risco de acidente em uma usina do que continuar queimando descontroladamente combustíveis fósseis, já que as fontes alternativas nem sempre respondem à altura da demanda de cada país. As sociedades devem decidir sobre a questão. Sim, há riscos. Entre os engenhos produzidos pelo homem, nenhum é perfeito. Mas viver é perigoso – e não adianta ficarmos na cama, pois um terremoto pode atingir nossa casa. Uma boa regra seria dar um adendo à moral escotista, perguntando-se: "Que pecadilho deixei de cometer hoje?". E olho na posição das manetes.

Nenhum comentário:

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos