quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A vida no campo de refugiados

A vida no campo de refugiados

Kakuma, no noroeste do Quênia, reúne pessoas que escaparam de conflitos sangrentos em países africanos. A vida das crianças ali nascidas é recriada, em foto e texto, por jovens refugiados

Meu nome é Geedi. Eu sou somali, mas nunca estive na Somália. Eu tenho um pai, mas eu nunca o vi. Eu não moro em uma aldeia, nem em uma cidade. Eu moro em um campo de refugiados. Não existem cercas de verdade ao redor do lugar onde moro. Mas eu nunca saí daqui.
Abdullah e Zekaria jogam fàh, tendo a terra seca como tabuleiro, pedrinhas como peões e os olhares vagos de suas mães como torcida. Ao riscar com o dedo as linhas do quadrado, os dois meninos repetem o gesto ancestral de seus antepassados, dos avós, dos pais... Os mesmos gestos, as mesmas linhas retas do mais tradicional jogo da Somália, a pátria que não chegaram a conhecer. Abdullah e Zekaria têm 10 anos, estão na sétima série, falam três línguas, mas não têm pátria, pois nasceram e vivem no limbo de um campo de refugiados.


Bem, antes de chegar aqui, eu vivi em outros campos de refugiados no Quênia, como o campo de Utange, onde nasci, Marafa e Dadaab. Mas eu não me lembro desses lugares, pois era muito pequeno quando estive por lá. Eu só me lembro de longas estradas e muita gente andando. Talvez seja por isso que minha mãe me chamou de Geedi, "aquele nascido em movimento". Mas agora eu moro em Kakuma e vou à escola aqui. Será que isso quer dizer que Kakuma é meu lar?

“O que me deixa triste é que essas crianças nunca conheceram a liberdade, já que nasceram entre essas cercas invisíveis”, constata com pesar outro jovem refugiado somali, Adam Jama, de 19 anos, com a experiência de quem escapou da guerra em sua terra e passou por sete campos de refugiados.


Às vezes, minha mãe me olha como se procurasse entender como eu sobrevivi. Mas eu sobrevivi e ela e meu irmão também. E agora já estou na quarta série, falo inglês e swahili e sou um dos melhores alunos da turma. Apesar disso, minha mãe não parece feliz. Eu a ajudo a buscar água e fico com ela na fila para receber rações duas vezes por mês, mas mesmo assim, ela continua com o olhar triste


Localizado em uma área semi-árida e desolada no noroeste do Quênia, o campo de Kakuma, administrado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, foi criado em 1992 para receber 20 mil refugiados do Sudão. Atualmente, ali vivem 90 mil pessoas provenientes do Sudão, Uganda, Burundi, Ruanda, República Democrática do Congo, Somália e Etiópia. Constituem um mundo de línguas, culturas e deuses diversos, sobrevivendo em uma terra inóspita, na qual são proibidos de trabalhar ou cultivar e dependem da ajuda humanitária para se alimentar e educar suas crianças. A maior parte delas nascida no exílio, sem ter visto jamais o país que aprenderam a chamar de terra natal.


Às vezes, seu olhar cego me persegue. Eu posso estar brincando ou dividindo a comida com meus amigos, mas seus olhos tristes estão sempre comigo. Gostaria de poder fazê-la feliz. Talvez o que faça de um lugar o lar seja o sorriso da sua mãe e seu pai voltando para casa com dinheiro para comprar comida. Mas minha mãe quase nunca sorri e meu pai foi morto na guerra da Somália há muito tempo


Após tantos anos em situação provisória, os refugiados de Kakuma vivem à espera de um acordo de paz em seus países de origem ou da oportunidade de recomeçar a vida em um terceiro país, enquanto sonham com um futuro.


Minha mãe diz que na cidade de onde viemos, nós tínhamos uma loja e vivíamos em uma casa de tijolos. Tínhamos dinheiro para comprar comida e legumes no jardim. Mas ela também conta que, na longa jornada fugindo da guerra, ela e meu irmão passaram muita fome. Eles catavam folhas nas árvores como as cabras fazem por aqui. Eu não gosto de pensar na minha mãe comendo como uma cabra.


Para estimular a expressão pessoal e coletiva entre os jovens de Kakuma, a artista plástica e fotógrafa Marie Ange Bordas desenvolveu, com a organização não-governamental Filmaid International, uma série de oficinas de vídeo, som e fotografia. Um dos resultados do projeto foi a fotonovela On the Move (Em Movimento), elaborada por quatro alunos que criaram uma história ficcional sobre as crianças nascidas no campo. Dois desses jovens, o somali Adam Jama e o sudanês Peter Yak Tap, fugiram de suas casas após presenciarem a morte de seus familiares. O sudanês Bior Meschack teve mais sorte, seu pai conseguiu escapar e vieram juntos para Kakuma, onde viveram até 2005 quando foram reassentados na Austrália. O mais velho do grupo, Dereje Kassahun, foi obrigado a deixar a Etiópia por motivos políticos


Essa é a razão pela qual no fim de cada mês, quando nossas rações estão quase acabando, e os “dias negros” se aproximam, eu ajudo meu tio no mercado para conseguir um pouco de comida extra.
A história que você verá nas páginas seguintes foi criada por eles a partir da observação sensível da realidade das crianças no campo de Kakuma. Para ilustra-la, o grupo elaborou e cuidadosamente fotografou cada cena com a colaboração do pequeno Abdullah e seus amigos. Assim, Abdullah transformou-se em Geeddi, o pequeno somali cujo nome significa “aquele nascido em movimento”. Zekaria e seus amigos representaram a si mesmos em cenas cotidianas, tão triviais quanto eloqüentes.


Às vezes, eu gosto de subir nas pedras mais altas atrás da nossa comunidade. De lá, eu posso ver os barrancos de barro de Kakuma se espalhando na terra nua. Eu vejo o rio seco e os meninos de Turkana cuidando de suas cabras, as mulheres carregando madeira para o fogo na cabeça. Eu vejo o campo de futebol e o pátio da escola, tudo sempre coberto por uma camada constante de poeira.


Kakuma é um lugar enorme, com milhares de pessoas de diferentes lugares. Em seus países, alguns eram pessoas importantes no governo, advogados ou professores, outros tinham terras e rebanhos. Mas aqui a poeira cobre a todos da mesma maneira. Aqui somos todos iguais sob o sol escaldante. A maioria dos homens não trabalha, as mulheres não podem plantar seus legumes e nós, as crianças, nos perguntamos o que vamos fazer quando acabarmos a escola.


Será que um dia voltaremos para as nossas pátrias? Será que um dia viveremos em paz? Será que poderemos continuar nossos estudos? Será que um dia seremos só crianças ... e não mais crianças refugiadas? Meu nome é Geedi, aquele nascido em movimento.
Revista Horizonte Geográfico

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