Cerca de 4 mil cavernas foram registradas no subsolo brasileiro, mas deve existir muito mais. Algumas estão na lista das maiores do mundo
A Toca da Boa Vista, na Bahia (foto do Salão dos Discos) é a maior caverna do Brasil, com 92,1 km. Ela pode ter uma ligação com a vizinha Barriguda. Se tiver, as duas podem formar um gigantesco sistema
Em cima, na superfície, vêem-se montanhas, planícies, cidades, fazendas plantações, fábricas. Embaixo , sob nossos pés, escondem-se galerias, salões, rios subterrâneos. Fazem parte de um Brasil quase sempre desconhecido dos brasileiros e muitas vezes pouco valorizado. nas páginas seguintes, vamos conhecer um pouco desse pedaço do país que é fonte de pesquisa, beleza e aventura. É um mundo no qual a luz quase não alcança e a natureza assume formas estranhas que inspiram mitos e, às vezes, fervor religioso. O Brasil tem 4 mil cavernas registradas, mas se acredita que existam muitas mais. Algumas, como a Toca da Boa Vista, em Campo Formoso (BA), ou a vizinha Toca da Barriguda, estão entre as maiores do mundo.
Água mole em pedra dura...
O velho ditado explica a formação das cavernas e seus ornamentos que parecem obras de arte criadas pela natureza
Martha San Juan
Pouca gente sabe, mas o território brasileiro é privilegiado em matéria de cavernas. E isso tem um motivo: rochas solúveis. “As cavernas são formadas quando a água cava um certo tipo de rocha”, explica o geólogo Ivo Karmann, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo. “Elas estão associadas a vários processos geológicos e climáticos que modelam o relevo da superfície, geralmente composto por rochas carbonáticas, como calcários e dolomitos.” Esse relevo chama-se cárstico, nome complicado cuja origem está na região calcária da fronteira entre a Eslovênia e a Itália. Onde ele ocorre, a ação da água da chuva, que se torna ácida ao absorver gás carbônico da atmosfera e do solo, pode formar buracos, abismos, cavernas e outras paisagens que os espeleólogos (especialistas em cavernas) chamam de sumidouros (quando um rio penetra no solo), ressurgências (quando sai), dolinas (depressões do terreno), lapiás (rochas de formas estranhas e furos) e espeleotemas –depósitos cristalinos dentro das grutas.
Na formação das cavernas, vale o velho ditado que diz “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Durante milhares de anos, a água penetra pelas fendas e fraturas das rochas, dissolvendo e abrindo condutos e galerias. À medida que essas galerias se alargam, mais água passa no local, abrindo mais espaço. Em regiões tropicais, como no Brasil, o processo de formação de cavernas é ainda mais intenso, pois recebe ajuda dos ácidos encontrados no solo e das chuvas que inundam grandes áreas. As galerias começam a ser preenchidas pelo ar, o fluxo da água torna-se um rio igual ao da superfície, o processo de erosão se acelera. Quando isso ocorre, começam os depósitos de minerais que formam os espeleotemas, como as estalactites (no teto) e estalagmites (no chão).
Enquanto vão tomando forma, as cavernas podem apresentar paisagens diferentes – teto baixo, galeria alta, trechos alagados, desmoronamentos, salões. A partir de um determinado momento, os rios subterrâneos podem deixar de correr por determinadas galerias, os espeleotemas, ou mesmo sedimentos trazidos pelas águas, tomam quase todo o espaço interno e a caverna entra na fase final de existência.
Espeleotemas e formações geológicas curiosas chamam a atenção nas cavernas brasileiras. Acima, uma flor de cristais de aragonita (mineral pouco solúvel na água) na Caverna Santana (Petar, SP)
Quem já visitou uma caverna ou ouviu falar em espeleotemas sabe que eles levam séculos para se formar. Quando formam um tubo, em cujo meio a água ainda circula, recebem o nome de “canudo de refresco”. Se o canudo fica entupido pelo crescimento de cristais, a água passa a escorrer pelas bordas dando origem a estalactites de formato cônico. Quando estalactites e estalagmites se juntam, formam uma coluna. Muitas vezes, a água apresenta uma camada de calcita que cresce como se fosse uma cortina.
Muitas cavernas apresentam pequenos rios e lagos carregados de minerais que também formam espeleotemas. Um dos mais bonitos é chamado de represa de travertinos porque forma barragens que represam a água, às vezes de vários metros de altura e de extensão. No seu interior, a água estagnada pode dar origem a espeleotemas que parecem jangadas. A calcita, mesmo material que deu origem a esses espeleotemas, forma a pérola de caverna, muito parecida com a pérola comum, a partir da acumulação desse material ao redor de um núcleo.
Os espeleólogos também dão nomes a outras formações raras e belas das cavernas. São as flores e helictites criadas a partir da água que circula nos poros das rochas ou entre as fissuras sem chegar a formar gotas. Formam estruturas cristalinas que crescem para frente ou para cima, com aspecto retorcido ou emaranhados como “espaguetes” e constituem quase uma obra de arte natural.
Tanta beleza também tem uma importância científica, como mostra o trabalho de Ivo Karmann, especialista em analisar as mudanças de clima e vegetação ao longo de milhares de ano pela idade dos espeleotemas. A equipe do professor da USP estudou o carbonato de cálcio, matéria-prima de espeleotemas de uma caverna de Santa Catarina e outra de São Paulo, depositado durante 116 mil anos e notou que, durante esse período houve uma grande variação no regime de chuvas das regiões Sul e Sudeste do Brasil. “Como o crescimento da estalagmite é influenciado pela água da chuva, esse é o registro mais completo e contínuo já descoberto sobre o regime de chuvas nessa parte do Brasil”, afirma Karmann.
A maior parte das cavernas brasileiras está associada à presença de calcário e dolomitos do Grupo Bambuí, que se desenvolve do sul de Minas Gerais até o centro-oeste da Bahia, passando também pelo leste de Goiás. Outra área rica é chamada de Grupo Una e ocorre a partir da região central da Bahia até o norte do estado. No sul do Estado de São Paulo e no Paraná ficam o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar) e o Parque Estadual de Jacupiranga, onde está a Caverna do Diabo. Há ainda cavernas nos arredores da Serra da Bodoquena (MS), em Rondônia, Pará e Amazonas. Mais conhecidos, no entanto, são os calcários do Grupo Apodi, no Nordeste, e do Grupo Ubajara, que também forma um parque nacional no Ceará.
Pais das cavernas
Fauna corre perigo
Biólogos lutam contra o tempo para identificar novas espécies que se adaptaram à vida na escuridão das cavernas
Sérgio Adeodato
A poluição das nascentes, o desmatamento que causa erosão e leva barro para dentro dos rios, a contaminação dos lençóis subterrâneos e a visitação desordenada estão ameaçando a sobrevivência da delicada rede de espécies que vivem nas cavernas. “Algumas estão em processo de extinção”, lamenta a bióloga Eleonora Trajano, da Universidade de São Paulo, e uma das maiores especialistas em animais de caverna do Brasil. Ela cita como exemplo o Aegla microphthalma, um tatuí de água doce (pequeno crustáceo) nunca mais encontrado nas grutas do Vale do Ribeira, em São Paulo, afetado pelo impacto das mineradoras. “O mesmo acontece com os bagres cegos, que estão praticamente extintos”, afirma a pesquisadora.
Existem três categorias de animais que vivem em cavernas. Os trogloxenos habitam esses ambientes, mas também saem para o exterior para se alimentar e, em alguns casos, se reproduzir. É o caso dos morcegos. Mais de 30 espécies desses animais já foram registrados em cavernas brasileiras, mas calcula-se que existam muitas mais. Os troglófilos são espécies que completam todo o ciclo biológico dentro das cavernas mas também podem viver fora, como acontece com algumas espécies de aranhas, grilos e peixes. A categoria, porém, que mais atrai a curiosidade dos cientistas é a dos troglóbios – serem que desenvolveram mutações e só conseguem viver no ambiente subterrâneo. Com 20 espécies conhecidas, o Brasil destaca-se mundialmente pela riqueza em peixes troglóbios. Desse total, 16 estão sendo estudados sob a coordenação de Eleonora Trajano.
Entre essas espécies está o Stygichthys typhlops, popularmente conhecido como piabinha cega, que são peixes albinos que não têm olhos e vivem em poços de água subterrânea no município de Jaíba, norte de Minas Gerais. “Trata-se de uma das espécies mais modificadas e espetaculares, mas certamente irá desaparecer nos próximos 50 anos”, diz Eleonora. Segundo a pesquisadora, a causa da ameaça é o bombeamento de água do lençol freático para irrigar extensos cultivos de banana naquela região.
Cavernas abrigam animais que saem para o exterior para se alimentar e depois retornam, como os morcegos da Limoeiro
A diversidade biológica das cavernas é sempre menor do que no ambiente externo, pois o alimento é escasso e a falta de luz torna difícil a sobrevivência. Mesmo assim, elas abrigam centenas de invertebrados, como aranhas, opiliões, grilos, baratas, besouros, mosquitos, além de escorpiões, caranguejos, minhocas, caramujos etc. Os cientistas estudam o comportamento dessas espécies e as mutações que sofreram para se adaptar a esses ambientes, com o objetivo, entre outros, de garantir a sua preservação. “A escuridão determina o desenvolvimento de habilidades especiais, como a orientação por meio do tato, da audição, do olfato e das vibrações para encontrar alimento e parceiros sexuais”, explica o zoólogo Pedro Gnaspini, também da USP. Os nutrientes provêm das fezes de morcego, da decomposição de animais mortos e de folhas e outros detritos vegetais transportados por rios ou água da chuva para dentro das cavernas.
Cemitério de fósseis
Cavernas podem abrigar ossos de animais que lá se refugiaram e revelar como era o ambiente no passado
Sérgio Adeodato
Chapada Diamantina, Bahia. Na caverna do Poço Azul, município de Nova Redenção, fósseis de vários animais foram resgatados a mais de 15 metros de profundidade pela equipe do pesquisador Castor Cartelle, diretor do Museu de Paleontologia da PUC de Belo Horizonte. Entre os achados, chama a atenção o esqueleto praticamente completo de uma preguiça gigante (animal que chegava a medir 4 metros de comprimento). No total, foram retirados do fundo do lago subterrâneo ossadas de 35 diferentes animais da megafauna do Pleistoceno, entre 2 milhões e 10 mil anos atrás. Além da preguiça (quatro espécies diferentes), foram encontrados fósseis de mastodontes, pampatérios (espécie de tatu) e texodontes (herbívoro de grande porte semelhante aos rinocerontes).
A descoberta, embora sensacional, não é de surpreender. Muitas cavernas brasileiras são riquíssimas em material fóssil pertencente à fauna já extinta. Ao longo do tempo, os rios subterrâneos e as enxurradas foram carregando ossos de animais para o interior das cavernas e lá, a salvo da chuva, do vento, do sol e da ação dos outros animais, os ossos foram preservados pelo processo de fossilização. Muitas vezes também os próprios animais se abrigaram no interior das cavernas para fugir dos predadores ou em busca de água. Lá morreram e vieram a ser localizados por espeleólogos ou paleontólogos nos nossos dias.
Para descobrir animais em regiões de acesso tão difícil, os pesquisadores se valem de informações de moradores locais ou de aventureiros e mergulhadores que exploram esses ambientes. No caso da pesquisa de Cartelle, o resgate dos esqueletos foi possível depois que o cinegrafista subaquático Túlio Schargel encontrou, por acaso, naquele local, um fóssil de proporções gigantes – a costela da preguiça. Oito anos depois, o mergulhador voltou à caverna acompanhado pela equipe do paleontólogo.
A descoberta de fósseis de animais da megafauna, que viveram no Brasil há milhares de anos, é comum nas cavernas. Ao lado, ossos de preguiça gigante descoberto em caverna na Serra da Capivara (PI)
Segundo Cartelle, analisados no conjunto, os ossos de animais mostram que o clima há milhares de anos era diferente do atual. “Muitos fósseis de carnívoros comprovam que esses animais não poderiam ter sobrevivido em ambiente dominado por pastagens como hoje”, afirmou. Cartelle agora coordena um grupo de técnicos que está separando e catalogando, com ajuda de peneiras, lupas e pinças, peças minúsculas – como dentes e pequenos ossos – retiradas da caverna junto com a terra. “O objetivo é identificar todas as espécies desse ‘cemitério’ e conhecer com mais detalhes a vida na época.”
Os primeiros habitantes
Não apenas restos de animais extintos foram encontrados nas cavernas brasileiras. Desde o final do século 19, o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880) já havia chamado a atenção para as ossadas humanas do chamado Homem da Lagoa Santa, que ele havia descoberto na caverna do Sumidouro, um dos sítios arqueológicos da região mineira de Lagoa Santa e que demonstravam a antiguidade do homem no continente. Mais recentemente, em 1975, um grupo de arqueólogos brasileiros e franceses encontrou na Lapa Vermelha IV, no município de Pedro Leopoldo, também na região de Lagoa Santa, partes do esqueleto de uma mulher que hoje aparece como um dos testemunhos mais antigos do povoamento humano nas Américas. Apelidada de Luzia, ela deve ter existido há 11 mil anos. Acredita-se que fazia parte de um bando de nômades coletores que viveram na região. A sua descoberta causou polêmica não apenas pela antiguidade. O crânio de Luzia e de outros, mais tarde descobertos nessas cavernas, mostram que os desbravadores iniciais da América tinham feições que lembram as dos atuais aborígenes da Austrália e negros da África. Eram, portanto, diferentes dos povos de origem asiática, normalmente descritos pelos antropólogos como sendo os primeiros humanos a fincar pé no continente.
Um mundo novo se revela
Vale a pena ouvir o relato das pessoas que se aventuram em cavernas de difícil acesso. Como esse, realizado na gruta de São Vicente 1, interior de Goiás
Peter Milko
Molhada até a alma, nossa equipe de nove espeleólogos vagava pelo rio São Vicente, passando frio e cansaço depois de seis horas ininterruptas de sobe e desce, põe corda, tira corda, instala escada de aço, atravessa água. Estávamos na caverna que tem o mesmo nome do rio, no Parque Estadual de Terra Ronca, a uns 30 metros abaixo da superfície do cerrado goiano – esturricado de sol e coberto de árvores secas e retorcidas. Nossa iluminação de gás acetileno e algumas lanternas eram a única luz na interminável escuridão da caverna que nos propusemos a explorar naquelas férias de julho.
E que caverna! Dentro de um túnel onde caberia duas linhas de metrô sobrepostas, corre o caudaloso rio São Vicente, cuja força podia arrastar qualquer um de nós, se não estivéssemos amarrados a uma corda. O barulho das águas, que formavam várias cachoeiras, era tamanho que a comunicação só podia ocorrer aos berros. Nosso objetivo era transpor a última cachoeira subterrânea, explorada pela equipe que lá havia estado antes, e fazer a ligação com a ressurgência (volta à superfície) – o rio São Vicente desaparece e volta num local de difícil acesso, bem abaixo, chamado Couro d’Antas. Junto, uma equipe de biólogos argentinos se propunha a fazer o levantamento da fauna local.
No caminho, resolvemos pegar um atalho longe do rio, percorrendo galerias superiores decoradas com estalagtites e outras formações surpreendentes. Depois de muito caminhar, tivemos a certeza de ter descoberto duas galerias novas que o mapa da expedição anterior não havia mostrado. O registro fotográfico, porém, teve de ser feito às pressas, pois o tempo de luz era restrito e dele dependia a nossa sobrevivência – quando um pouco menos da metade do combustível (e das pilhas) tivesse se consumido, era hora de dar a meia-volta. Enquanto isso, nossos tênis encharcados deixavam uma trilha lamacenta em vários escorrimentos de calcita branquinhos e reluzentes à nossa luz.
A curta parada para lanche, antes de mais uma travessia obrigatória do rio, acabou com o nosso último estoque de atum enlatado, frutas secas e bolachas. Já se ouvia o estrondo da água na nossa frente: a famosa cachoeira. Porém, a minha empolgação durou pouco: um passo em falso durante a travessia do rio havia me custado um belo corte na perna direita que levaria duas semanas para cicatrizar. Ainda bem que, com a emoção da hora, nem percebi direito o que tinha acontecido.
Minutos depois, nosso alpinista, Max Haim, começou a instalar pinos de segurança nas rochas, para se lançar adiante da cachoeira preso nas cordas, sem ser levado pela forte correnteza (estávamos a favor das águas). Com a chama de acetileno brilhando no capacete, ele podia ser visto sendo levado pelo rio, até onde os 40 metros de corda permitiram. Depois disso, o vapor d’água apagou a chama e foi preciso utilizar apenas a lanterna. Max parou numa plataforma fora d’água e tentou escalar as paredes laterais. Uma hora depois, deu a má notícia: não era possível seguir adiante em segurança. O rio fazia uma curva e aparecia uma nova cachoeira, ainda maior e mais estreita, e nosso tempo de retorno já estava se aproximando.
As galerias superiores da caverna foram exploradas pela equipe de espeleólogos. Sendo secas e com muitos ornamentos, elas contrastam com o túnel principal do rio, molhado e escorregadio. A cor vermelha é causada pelo óxido de ferro presente na calcita
Como voltar pelo mesmo caminho é sempre mais fácil, conseguimos chegar na entrada da caverna apenas três horas depois. Depois da escuridão total das últimas nove horas, os primeiros raios de sol que vimos refletir na água do rio foi um imenso alívio – mas também um show visual, como uma luz tênue no fim do túnel.
Os argentinos estavam especialmente exaustos, pois nunca haviam tido experiência semelhante em seu país, onde as cavernas são pequenas, apertadas, curtas. Mas estavam felizes pelos resultados faunísticos: vários grilos cegos coletados, parentes de aranha observados e até peixes localizados na escuridão total.
Nosso acampamento montado na boca da caverna parecia um hotel cinco-estrelas depois desse dia. Os sleepings coloridos estendidos na areia foram o destino de todos, logo após um jantar de macarrão com carne de soja no fogareiro.
Apesar de ter me perguntado naquele dia duas vezes o que estava fazendo sujo, molhado e com frio dentro de uma caverna do Planalto Central, logo veio aquela sensação agradável de “dever” cumprido, ao descobrir mais um pedaço desse misterioso mundo subterrâneo e vivenciar um ambiente no qual falta um elemento natural de nossas vidas: a luz.
O fascínio que elas exercem
O rico patrimônio cultural e científico das cavernas brasileiras se torna mais conhecido. Evoluem também as regras de exploração
Martha San Juan
Bom Jesus da Lapa é um lugar pobre às margens do São Francisco, que passa meses, ou às vezes anos, sem ver uma gota de chuva. Apesar disso, de agosto a outubro, milhares de romeiros enfrentam longas caminhadas para visitar o lugar, ou melhor para demonstrar sua devoção no Santuário do Bom Jesus – um labirinto subterrâneo no qual se escondem 12 capelas esculpidas pela natureza e abençoadas pela religião. Mais ao norte da Bahia, a Gruta dos Brejões, famosa pela sua entrada monumental (60 metros de largura) e pela presença dos romeiros, abriga, em seu interior, altar, cruzeiro e imagens de santos e locais de oferenda. Por sua vez, em Goiás, a gruta do Bom Jesus da Lapa de Terra Ronca recebe milhares de fiéis todos os anos.
No Brasil inteiro, grutas como essas da Bahia e de Goiás têm lugar de destaque na imaginação e nas crenças, o que leva, em determinadas épocas do ano, a população a montar barracas, celebrar missas, realizar casamentos, batizados e pagar promessas em seu interior. Talvez isso possa ser atribuído às sombras e aos mistérios que cercam as ornamentações e à total ausência de luz nos salões e galerias. Muito antes que as cavernas se tornassem destino de ecoturismo, elas já abrigavam viajantes, escravos fugidos, eremitas que contribuíram para aumentar as lendas sobre manifestações sobrenaturais e milagres no seu interior.
Apesar disso, não há quase descrições de cavernas durante os primeiros tempos de colonização do País, a não ser pelos relatos dos viajantes e naturalistas estrangeiros que começaram a chegar no final do século 19. Os primeiros mapeamentos sistemáticos foram feitos pela equipe do dinamarquês Peter Lund (1801-1880) em Minas Gerais, ainda deficientes e limitados às galerias e salões principais, onde, por sinal, ele encontrou fósseis de animais e dos habitantes pré-históricos do continente. Depois de Lund, no começo do século 20, o alemão Richard Krone explorou as cavidades do Vale do Ribeira, sul do Estado de São Paulo, como a Caverna do Diabo, e organizou o primeiro cadastro espeleológico do País.
Quando a espeleologia se organizou
Mas foi somente em meados do século 20 que os primeiros grupos de pesquisadores começaram a exploração sistemática e mapeamento de dezenas de cavernas em vários estados brasileiros. Esses grupos ganharam impulso a partir da década de 60 com a atuação de imigrantes, como Michel Le Bret, Pierre Martin e Guy Collet, que mapearam várias cavernas no sul de São Paulo. Foram também a fonte de inspiração da Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE) e de outros grupos que se seguiram.
“A preocupação passou a ser a manutenção do ecossistema das cavernas de modo que ele não fosse afetado pelos visitantes”, diz o químico Luiz Afonso Vaz de Figueiredo, coordenador da seção de educação ambiental e história da espeleologia da SBE. Ele conta que as primeiras grutas abertas ao turismo, como a Caverna do Diabo, no Vale do Ribeira, ou a Gruta de Maquiné, em Cordisburgo (MG), tiveram o seu ambiente alterado para a chegada dos visitantes e algumas de suas formações foram destruídas por falta de informação. “Nos dias de hoje, essas alterações não seriam realizadas diante da conscientização e legislação atuais”, afirma.
Revista Horizonte geográfico
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