terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Polêmica: índios que são bóias-frias

nº 388
jul/ago 2008
Com o sucesso do etanol, cresce recrutamento de cortadores de cana nas aldeias

ANDRÉ CAMPOS

Foto: Divulgação


Alimentação deficiente, banheiros entupidos e alojamentos precários. Esse foi, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o panorama encontrado na usina de álcool Debrasa, em Brasilândia (MS), durante fiscalização coordenada pelo órgão em novembro de 2007. Nos dormitórios dos cortadores de cana, havia superlotação, mofo e restos de comida pelo chão. Segundo os fiscais, também faltava água para o banho e os salários estavam atrasados. Mais de mil trabalhadores tiveram seus contratos rescindidos devido às condições verificadas.

Oito meses antes, o MTE já havia encontrado problemas em outra usina de Mato Grosso do Sul. Na Destilaria Centro-Oeste Iguatemi (Dcoil), uma diligência flagrou trabalhadores sem carteira assinada, sem equipamentos de segurança e, mais uma vez, em alojamentos superlotados. Em 2007, os dois casos foram, na contabilidade do ministério, a segunda e a terceira maiores libertações efetuadas em território nacional de pessoas em condição análoga à de escravos – crime que, no Código Penal, abrange tanto situações de trabalho degradante, como as descritas, quanto de restrição à liberdade de ir e vir.

Além da localização geográfica, outra característica une as duas usinas: o emprego maciço de mão-de-obra indígena. Na Dcoil, 150 dos resgatados eram terenas ou guaranis. Já na Debrasa, todos eram índios. O Ministério Público do Trabalho (MPT) estima em 10 mil os aldeados que labutam nos canaviais do estado. Juntamente com bóias-frias trazidos do nordeste, são a principal força de trabalho utilizada pelo setor sucroalcooleiro local.

A história dessa relação remonta à década de 1980, quando o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) alavancou a produção de cana-de-açúcar em terras sul-mato-grossenses. Já naquela época, havia índios cortando cana nas lavouras. Desde então, a regulação dessa mão-de-obra específica desafia o poder público. Trata-se de uma empreitada complexa, devido às peculiaridades culturais e jurídicas da situação dos indígenas.

E, para além das questões trabalhistas, permanece um debate mais profundo e incômodo: até que ponto a atividade pode ser considerada uma alternativa digna para os habitantes das aldeias locais? E até que ponto, na verdade, ela não seria parte dos problemas que hoje assolam essas comunidades?

Relações ancestrais

Nos primeiros anos, informalidade e improviso eram a tônica no recrutamento dos indígenas que partiam das aldeias rumo aos canaviais, distantes centenas de quilômetros. Levados em grupos de algumas dezenas, lá trabalhavam por cerca de dois meses. A contratação era negociada verbalmente pelo líder do grupo, o "cabeçante" – em geral, um índio mais versado na cultura do homem branco. Em alguns casos, os postos locais da Fundação Nacional do Índio (Funai) estabeleciam regras pontuais e cobravam taxas comunitárias sobre os contratos firmados.

Cícero Rufino Pereira, procurador do Trabalho em Mato Grosso do Sul, descreve como "verdadeiro trabalho escravo" a situação desses indígenas na década de 1980. Ficavam, diz ele, em barracões de lona, onde bebiam água dos rios junto com os animais. Além disso, era rotina também a presença de crianças no corte da cana. "Em diversas ocasiões, a usina pagava e o cabeçante desviava o dinheiro. E muitas vezes a usina não pagava, enrolava mesmo", conta.

Devido a pressões de diversas entidades, houve algumas melhorias na década seguinte. Mas a carteira de trabalho só viria em 1999, ao ser firmado o Pacto do Trabalhador Indígena no estado. Alvo de muita polêmica, o registro formal teve resistência de usineiros e setores da Funai. O questionamento da plena autonomia individual desses trabalhadores, amparado no próprio Estatuto do Índio – que sujeita à tutela da União aqueles "ainda não integrados à comunhão nacional" –, embasou argumentos de quem se opôs à adoção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Por fim, prevaleceu a carteira assinada, adotada junto com um modelo de contrato por equipe, que prevê no máximo 70 dias para o retorno dos índios às aldeias, de modo a favorecer a continuidade da vida comunitária. Também ficou estabelecido o pagamento dos ganhos apenas no final da empreitada – para garantir, em tese, que o dinheiro chegue às famílias, face à realidade de alcoolismo e outros excessos, freqüentes nessas jornadas.

De acordo com Pereira, no entanto, o respeito aos preceitos do pacto ainda hoje é deficiente. Nos últimos anos, diligências do MPT têm gerado indenizações por danos morais quando constatadas irregularidades na contratação, segurança e alojamentos. No entanto, o procurador não generaliza os problemas do setor. Segundo ele, destilarias recém-chegadas têm mostrado boa vontade em se adequar à realidade do trabalho indígena. "Tanto é que o índio prefere trabalhar nas usinas novas", argumenta. Devido à proximidade de algumas delas às aldeias, os cortadores voltam diariamente às suas casas – novidade que agrada as comunidades.

Em novembro, quando a Debrasa foi autuada, a Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (CBAA), dona da destilaria, questionou os procedimentos da fiscalização. "Estranhamente, os representantes da empresa foram impedidos de acompanhar a ação", afirma nota da companhia, que negou ainda a existência de quaisquer indícios de trabalho análogo à escravidão.

No final da década de 1990, as novas regras trabalhistas levaram a Debrasa a intensificar a mecanização das colheitas. "Diante do apelo das autoridades, voltamos a contratar índios justamente por nossa preocupação social. Estamos ‘pagando o pato’ por causa disso", afirmou à agência de notícias Repórter Brasil o presidente da CBAA e do Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool de Mato Grosso do Sul (Sindal/MS), José Pessoa de Queiroz Bisneto.

A reportagem procurou representantes do Sindal/MS para ouvir mais detalhadamente a versão dos usineiros sobre a evolução do trabalho indígena no setor, mas não obteve retorno.

Novos horizontes

Atualmente, 11 usinas sucroalcooleiras estão em plena atividade em Mato Grosso do Sul. Com o boom do etanol, contudo, elevaram-se enormemente as perspectivas de crescimento do setor. Em dezembro de 2007, o governo estadual anunciou benefícios fiscais a 43 novos empreendimentos do gênero – 16 dos quais já estão sendo implantados. Essas iniciativas serão responsáveis, de acordo com o Executivo, por 76 mil novos empregos até 2012.

Alegando a necessidade de vetar subsídios a quem explora trabalhadores, o deputado estadual Pedro Kemp (PT-MS) apresentou este ano um projeto de lei que impede a concessão de benefícios fiscais a empregadores flagrados usando mão-de-obra análoga à escravidão. Devido aos incentivos, o orçamento estadual prevê, já para 2008, uma renúncia de R$ 48,5 milhões em impostos sobre empresas de álcool combustível.

"O estado precisa de um instrumento jurídico para inibir o trabalho escravo, já que estamos em vias de receber muitas indústrias", alega Kemp. Em abril, sua proposta foi rejeitada pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) da Assembléia Legislativa. Agora, ele analisa propor uma emenda à constituição estadual com igual teor.

Nesse contexto expansionista, o recrudescimento de antigas formas de exploração, alimentado pela disputa de mão-de-obra, preocupa Pereira. "Há denúncia de cabeçantes que estariam aliciando menores de idade para que peguem a carteira de outros índios, troquem a foto e vão cortar cana", revela.

Um crime nas dependências da Dcoil, em dezembro de 2006, trouxe novamente à tona a questão do trabalho infantil. Na ocasião, um rapaz registrado na usina como Devir Fernandes, de 24 anos, foi morto por outro indígena após uma discussão. Posteriormente, descobriu-se que a vítima era outra pessoa – um jovem de 15 anos. A destilaria refuta responsabilidade sobre o caso. "Se houve crimes de falsificação de documentos e falsidade ideológica, estes não foram cometidos pela empresa", alega Wilson Marques, assessor jurídico da Dcoil.

Impacto nas comunidades

Nas usinas de Mato Grosso do Sul, a mão-de-obra indígena é recrutada entre os índios terenas e, principalmente, em comunidades guaranis – cujos membros se subdividem em dois grupos étnicos, nhandevas e caiouás, perfazendo cerca de 40 mil pessoas.

Trabalhar fora das aldeias é realidade antiga para os guaranis. No fim do século 19, instalou-se em seu território tradicional, no sul do estado, a Companhia Matte Laranjeira, que utilizou o serviço de indivíduos dessa etnia – então atraídos por roupas e ferramentas – na coleta da erva-mate nativa. A partir da década de 1940, destaca-se a participação deles na derrubada de matas e na atividade de roçar pastagens. Tal situação começaria a mudar 30 anos depois, quando a expansão do agronegócio mecanizado e a quase extinção de áreas ainda por desmatar reduziram a oferta de trabalho no campo. É quando surge o setor sucroalcooleiro, de longe a principal alternativa de assalariamento atual.

Para Antônio Brand, coordenador do Programa Kaiowá/Guarani da Universidade Católica Dom Bosco, não é apenas dinheiro o que motiva o engajamento dos indígenas nessas empreitadas externas. O aspecto coletivo das atividades tem, segundo ele, um apelo significativo para os guaranis. "É uma aventura, de certa forma, especialmente para os mais jovens", observa.

No entanto, diz Brand, o corte da cana traz uma diferença fundamental em relação a outras atividades do passado – já que, após retornar das usinas, não raro os indígenas ficam apenas alguns dias nas aldeias, partindo em seguida para uma nova empreitada. "Antes, iam trabalhar uma semana, dez dias, e depois voltavam. Agora, é cada vez mais uma dedicação exclusiva", explica.

Nesse contexto, um dos efeitos mais evidentes é a diminuição das roças internas. A vida em reservas superpovoadas, com terras cada vez menos produtivas devido ao uso excessivo, contribui para o desestímulo ao plantio e reforça a opção pelo assalariamento em tempo integral, bem como a dependência de outros elementos externos – políticas de cestas básicas, por exemplo.

A distribuição da renda da cana-de-açúcar, por sua vez, é problemática. Muitas vezes, o dinheiro permanece apenas nas mãos dos homens, financiando um consumo de álcool que, com freqüência assustadora, surge associado a brigas, assassinatos e desestruturação familiar. Além disso, a prolongada ausência masculina motiva desentendimentos conjugais.

Por conta dessa conjuntura, Egon Heck, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no estado – entidade ligada à Igreja Católica –, afirma haver uma ligação íntima entre o trabalho nas usinas e as violências que hoje assolam as comunidades guaranis – famosas pelos alarmantes índices de homicídios, suicídios e subnutrição infantil. "Não é uma alternativa de vida, é uma alternativa que mata", acrescenta.

Há, além disso, o próprio impacto físico da atividade. De acordo com Zelik Trajber, coordenador técnico da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) em Dourados (MS), problemas de coluna e outras patologias ósseas e musculares – sem mencionar os acidentes com o facão – são uma rotina entre os trabalhadores indígenas. "É muito violento, o cortador não agüenta 35 anos para depois se aposentar", atesta.

Segundo Laurentino Rodrigues, cabeçante na reserva guarani de Dourados, houve, nos últimos anos, uma melhoria das condições de trabalho nas destilarias. Apesar disso, ele acredita que a opção pelo corte da cana é, na verdade, uma falta de alternativa. "Não temos escolha. Quase não temos terra", argumenta. E, quando o assunto é terra, a própria vida nos canaviais coloca-se, de certo modo, como entrave às mobilizações políticas. "Levar o índio para a usina é um jeito de tirá-lo da luta por demarcação", acredita Otoniel Ricardo, liderança comunitária na aldeia de Caarapó (MS).

A terra

Entre 1915 e 1928, foram criadas em Mato Grosso do Sul oito reservas para os caiouás e os nhandevas. O objetivo, pautado pela lógica de integrar os índios à sociedade, era ali reassentar os nativos espalhados pela região – e tornar tais locais verdadeiros bolsões de mão-de-obra. Dessa forma, liberavam-se as demais terras para a colonização.

De fato, nas décadas seguintes, para lá foram sendo gradualmente levados os guaranis que ainda viviam nas florestas. Atualmente, vivem na reserva de Dourados, a mais populosa do estado, cerca de 13 mil pessoas. Tais números a tornam a área demarcada com maior concentração de indígenas no país. Nem mesmo do crescimento urbano ela escapou, e hoje está lado a lado com a cidade de mesmo nome.

Jorge da Silva, de 53 anos, rezador caiouá nascido em Dourados, relata a transformação do cotidiano local. "Antigamente, a gente comia as coisas da nossa origem, caça e peixe. Agora, isso acabou", reflete. A disposição atual da aldeia, quase uma favela rural, é, segundo ele, razão de muitos conflitos – motivados inclusive pela convivência imposta de etnias distintas, já que lá foram colocadas também famílias terenas. "Agora é parede com parede, e o índio não gosta. Assim começam as brigas."

Para Brand, o agrupamento nessas reservas criou uma "realidade inadministrável" sob a ótica guarani. "Toda a organização tradicional, da economia e da religião, está centrada em núcleos macrofamiliares de 200 ou 300 pessoas no máximo", descreve. "É impossível para um guarani pensar em se organizar num ajuntamento tão grande."

Além das oito reservas demarcadas até 1928 – que perfazem um total de 18 mil hectares, onde vivem mais de 80% dos guaranis do estado – há outros 22 mil hectares conquistados em mobilizações a partir da década de 1980. Existem, também, 63 mil hectares já identificados em favor desses índios, mas cuja posse ainda não ocorreu, por exemplo, devido a ações na Justiça contra a demarcação.

O diretor-secretário da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Dácio Queiroz, classifica como "nada mais que ideológica" a atuação da Funai na identificação de terras indígenas. "São pessoas comprometidas em ver os índios, a qualquer preço, retomando o Brasil", vocifera. Ex-prefeito de Antônio João (MS), ele próprio é parte em litígio que envolve guaranis – a área caiouá Ñande Ru Marangatu, homologada em 2005, incide sobre fazenda de sua posse, mas uma decisão judicial mantém as terras com os fazendeiros. A Famasul afirma que, à luz da Constituição, não podem ser reconhecidos como território indígena aldeamentos extintos, mesmo que em passado recente – fato que inviabilizaria diversas reivindicações atuais.

Dácio Queiroz contesta ainda a política indigenista brasileira. "A Famasul entende que o índio está sendo reduzido à condição de uma sub-raça, uma espécie de reserva humana para estudos antropológicos", afirma. Na esteira do setor sucroalcooleiro, ele defende a expansão da mão-de-obra indígena para outras atividades, dentro de uma política de inclusão. "O que eles não merecem é o que o Cimi e a Funai praticam, o segregacionismo e a subcondição."

"Esperamos a capacitação e a integração de índios na agricultura brasileira", reforça Leôncio Brito, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários e Indígenas da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Em solo sul-mato-grossense, ele cita a área homologada aos cadiuéus – 538 mil hectares onde vivem cerca de 1,2 mil índios – para questionar a relação entre terras e qualidade de vida. "Será que o índice de desenvolvimento humano deles condiz com a riqueza da qual são donos?", indaga.

Brand vê com desconfiança a idéia de que o mercado de trabalho é a saída para as comunidades guaranis – inclusive porque, segundo ele, a demanda local por mão-de-obra é muito restrita. "Considerando o preconceito contra os povos indígenas, eles estarão sempre em uma situação muito inferior nessa disputa", acredita.

Heck, por sua vez, enfatiza que políticas de integração não podem se opor ao legítimo desejo de autonomia dos índios, que anseiam pela reconstrução do tekoha – palavra guarani que designa o território onde é possível viver o modo de ser da etnia, preservando relações familiares, econômicas e culturais específicas. Num momento em que o homem repensa sua relação com o planeta, ele defende ainda a importância de respeitar modelos distintos de desenvolvimento. "Em vez de torná-los como nós, deveríamos aprender com os guaranis."
Revista Problemas Brasileiros
http://sescsp.uol.com.br/sesc/frame_uol.asp?pag=revistas/pb/index.htm

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