26/ 04/ 2007 - TRABALHO
O mito do relógio de ponto
Mário César Ferreira
Professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da UnB. É psicólogo do trabalho, doutor em Ergonomia pela École Pratique des Hautes Etudes (Paris, França)
No cardápio de instrumentos de gestão, o relógio de ponto sempre ocupou lugar de destaque. Ele é fruto da Revolução Industrial e consolidou-se com enfoque taylorista de tempos e movimentos, da chamada “Administração Científica”. O controle de ponto de funcionários transformou-se em remédio milagroso para o controle de comportamento indesejado dos assalariados. Dois séculos de capitalismo industrial – ancorados no pressuposto de que “time is money” - deram origem a uma métrica da produção: cada produto representa "x" horas de trabalho. Todavia, mesmo no contexto industrial, o uso do marcador de ponto já começa a respirar os ares da flexibilidade e, paulatinamente, o novo padrão de competitividade globalizada vem recomendando aos empresários "virar o disco".
O relógio de ponto pode ser um instrumento eficaz de controle de horários (chegada, saída, intervalo, turnos) e gerenciamento de segurança e banco de horas, fornecendo relatórios que são verdadeiras “pedras preciosas” nas mãos de dirigentes e gestores. Com a revolução microeletrônica, o modelo top de linha destes marcadores combina informática e biometria, possibilitando identificar com segurança o usuário por meio do corpo humano (olhos, mãos, dedos). Os relógios biométricos produziram euforia em certos gestores: “agora quero ver funcionário emprestar seu cartão magnético para o colega!”.
O mito do relógio de ponto começa quando outros setores econômicos do mundo do trabalho – com destaque para as esferas do comércio, serviços e governo – importam de modo acrítico este instrumento de gestão como forma de controlar as horas trabalhadas de servidores e empregados. Leitor, você acredita, sinceramente, que o ponto é uma garantia de horas trabalhadas? Uma série de estudos e pesquisas indicam que o controle rígido de horário – típico de modelos de gestão do trabalho baseados exclusivamente em desempenho e resultado – estão na origem de uma série de indicadores críticos nas organizações, como doenças, acidentes, estresse, retrabalho, perda de qualidade, panes e rotatividade.
No caso do setor público, com destaque para o legislativo, imaginar que a adoção do ponto é uma panacéia, que leva os servidores a trabalharem, é como prescrever analgésico para dor de dente: alivia, mas não resolve o problema. Será que a postura gerencial de alguns dirigentes e gestores não é a principal avalista da ausência contumaz de parcela dos servidores? A adoção do relógio pode fazer com que estes passem a estar de corpo presente na repartição pública, mas isto, não necessariamente, significa trabalhar na acepção saudável do verbete. Trabalho também requer alma. Tem muita gente querendo entrar no serviço público, mas experimente perguntar a um concursado antigo, que trabalha em um ambiente onde há marcador de ponto, como anda a sua motivação para o trabalho. Busque saber se as tarefas, o local, as pessoas e, principalmente, os estilos gerenciais são fontes de felicidade. A insatisfação grassa. Eles logo descobrem que só estabilidade e salário razoável não garantem a tão valiosa motivação para o trabalho.
Na área governamental, garantir trabalho efetivo, acompanhado de prazer e saúde, requer, pelo menos, duas macromedidas. A primeira, é operar uma mudança de cultura organizacional revendo valores, crenças, ritos e mitos. Implica em operacionalizar o paradigma do exercício da função pública como espaço também da cidadania organizacional, transparência nas formas de gestão e, sobretudo, controle coletivo interno do planejamento de atividades e controle social pelos cidadãos-contribuintes. A segunda, é adotar um modelo de gestão participativa do trabalho que viabilize, por exemplo, a autonomia responsável na execução de tarefas, a criatividade, o desenvolvimento pessoal, o reconhecimento institucional de quem trabalha e as condições ambientais e instrumentais adequadas de trabalho.
Infelizmente, muitos gestores públicos pelo Brasil afora, sob a batuta de governantes despreparados, querem transformar a repartição pública em unidade industrial e importam modelos de gestão voltados para a produtividade exacerbada. Eles ainda não compreenderam que as atividades do setor público não visam o mercado, mas a sociedade e a promoção da cidadania.
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