A Responsabilidade histórica sobre um projeto duvidoso
Carlos Bernardo Mascarenhas Alves (*)
26 de Fevereiro de 2008
O projeto de transposição do rio São Francisco continua na ordem do dia. Muito tem sido dito sobre a inviabilidade do projeto, agora denominado “Projeto de Integração da Bacia do São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional”. São posições variadas, calcadas em argumentos técnicos, sentimentalismos, denúncias de vantagens políticas e beneficiamentos econômicos. Mas minha intenção é ocupar este espaço para falar dos peixes. Antes, porém, quero fazer algumas observações.
Para tirar as dúvidas
Enumero aqui os 10 pontos duvidosos que precisam ser considerados, antes que se cometa a irresponsabilidade de um erro histórico pelo qual os brasileiros vão pagar muito caro:
1- Adensamento - O projeto incentiva o adensamento humano em uma região árida, inóspita. Isso acarretaria a necessidade de mais água no futuro.
2 - Custo da obra- O custo inicial estimado de R$ 4,5 bi pode alcançar US$ 10 bi em 15 anos. Importante: tudo isto com recursos próprios, porque o atual governo não conseguiria financiamento externo, pois os organismos internacionais já se posicionaram contra o projeto.
3 - Gestão eficiente - Especialistas afirmam ser possível aumentar a oferta de água local apenas com a interligação mais eficiente dos açudes existentes, coleta e armazenamento de água de chuva, e perfuração de poços artesianos. Se não há água para as épocas de seca mais severa, confirma-se que a capacidade suporte do ambiente está esgotada ou próxima de seu limite.
4 - Consumo de energia - A necessidade de elevação da água por meio de potentes bombas (160m de altura no Eixo Norte e de cerca de 300m no Eixo Leste) consumirá porção relevante da energia produzida na região.
5 - Real volume de água - Existem dúvidas sobre o real volume a ser bombeado: será retirado um volume constante de 26 m3/s, que passará a 127 m3/s, caso a barragem de Sobradinho alcance seu nível máximo e houver vertimento.
6 - Dança de números de vazões - Uma pergunta: ou há uma superestimação do equipamento, que usaria apenas a quinta parte de sua capacidade, ou não há garantias não seriam utilizados os 127 m3/s da capacidade total? Existe uma verdadeira “dança dos números” em relação às vazões. Para os leigos, fica apenas a confusão!
7 - Limite de outorgas - Recente documento da ANA diz que, até 2005, o somatório das outorgas concedidas para captação na bacia alcançava 635,7 m³/s, ou seja, já se ultrapassou o limite de 360 m³/s de vazão máxima alocável/outorgável.
8 -Destina da água - Apesar de o governo afirmar que o projeto visa exclusivamente o abastecimento humano, sabe-se que também interessa às fazendas de camarões e de criação de tilápias, e aos grupos produtores de frutas irrigadas, além de empreiteiras e fornecedores de materiais para a obra .
9 - Risco de favelização - Mesmo desconsiderando tudo o que foi dito, os 720km de canais a céu aberto certamente serão ocupados pela população carente. Há risco de uma favelização dos canais, trazendo junto o lixo e esgotos. A perda da qualidade da água é iminente, sem falar da evaporação.
10 - Impactos dos Peixes - Dos 44 impactos listados no RIMA, somente 11 são considerados positivos, e há muitas incertezas, como um tema negligenciado até o presente: a fauna de peixes. O grande público está alheio a essa discussão, por desinformação.
A fauna de peixes
foto: Margi Moss - Projeto Brasil das Águas
A fauna de peixes da bacia do rio São Francisco é composta potencialmente por 250 a 300 espécies. Cerca de 200 dessas já são conhecidas e formalmente descritas na literatura técnica. As bacias receptoras possuem fauna muito mais pobre, com apenas 53 espécies nativas e alto grau de endemismo (23 espécies ou 43%).
O projeto da transposição estará submetendo a fauna das bacias receptoras a outro impacto, talvez irreversível, com potencial extinção de espécies endêmicas. Com o projeto, há possibilidade de introdução de centenas de espécies em bacias onde ocorrem somente algumas dezenas. Esses peixes serão “captados” no São Francisco, através de ovos, larvas e formas jovens. Sabe-se que a segunda maior causa para extinção de espécies e perda de biodiversidade é a introdução de espécies exóticas pelas mãos do homem.
No Brasil, a introdução de espécies exóticas é crime previsto em lei. Dessa forma, o projeto estará submetendo a fauna das bacias receptoras a outro impacto, talvez irreversível, com potencial extinção de espécies endêmicas.
Os estudos realizados prevêem alguma forma de controle dos peixes que passariam pelas bombas, mas o sistema não está definido. Filtração, controle com espécies carnívoras nos canais, barreiras elétricas, etc.
A filtração de grandes volumes de água é extremamente dispendiosa. Uma barreira elétrica pode matar peixes, mas seria desgastante para o governo assumir que pratica tal ação. Pior ainda, é retirar do São Francisco, cuja produção pesqueira está em colapso, ovos, larvas, alevinos e jovens que poderiam se tornar adultos.
Há a possibilidade de uma outra transposição vir a compensar o rio São Francisco, no futuro, pelas águas que lhe serão subtraídas: a transposição do Tocantins. Pelos mesmos motivos, seria outra tragédia ambiental de maiores proporções. Tenho o dever de trazer esse assunto à tona para a avaliação de viabilidade da transposição. A bacia do Tocantins-Araguaia é mais rica que a do São Francisco. Nesse caso estamos falando na introdução de 400 a 500 espécies de peixes numa bacia que possui entre 250 e 300. Fico tranqüilo por externar essa opinião e prevenir que no futuro digam que esse tema nunca tenha sido colocado à mesa. Espero que essas informações sejam úteis para dar base ao julgamento do Projeto pelos cidadãos brasileiros.
(*) Carlos Bernardo Mascarenhas Alves é biólogo
Coordenador do Subprojeto S.O.S. Rio das Velhas –
Projeto Manuelzão
Coordenador Câmara Técnica de Planos, Programas e Projetos (CBHSF)
http://www.folhadomeio.com.br/publix/fma/folha/2008/02/peixes185.html
Nova Juazeiro
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