quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Cultivo responsável

Cultivo responsável

A moratória da soja, destinada a controlar a devastação da Amazônia Legal, trouxe o tema da conservação ambiental para a pauta dos produtores

Texto: Sérgio Oliveira


A lua cheia está nítida no meio da tarde. O céu, de um azul profundo, contrasta com a terra nua, pronta para ser semeada. A contemplação é interrompida por um sacolejo: a caminhonete deixa a Rodovia Cuiabá-Santarém, nas proximidades de Sinop, norte do Mato Grosso, e envereda por uma estradinha de terra. Ao volante, Adelmo Zuanazzi, proprietário da Fazenda Luiza, de 1.400 hectares, aponta para o mato: “Essa área não me dá nenhum retorno econômico. O manejo (corte seletivo de árvores) já foi feito pelo antigo proprietário e só meus netos poderão extrair madeira novamente. Mas eu tenho de cuidar para não entrar fogo, para não tirarem lenha, e não ganho nada com isso. Só despesa”.

Pela manhã, o fazendeiro havia participado de um evento promovido pela Fundação Mato Grosso e pela Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja-MT) em Sinop. O assunto, debatido por pesquisadores de instituições de pesquisa e convidados, foi – como não poderia deixar de ser – a próxima safra de soja, balizada por perspectivas de excelentes preços, alta expressiva dos custos de produção e por três fatores que têm tirado o sono dos produtores nas fronteiras agrícolas: infra-estrutura precária, endividamento elevado e a grita dos ambientalistas contra o avanço da soja no bioma amazônico.

Naquele mesmo dia, em Brasília, a Associação das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), algumas organizações não-governamentais e o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, assinavam um documento que prorroga por mais um ano a moratória da soja, cuja primeira edição, em junho de 2006, estabeleceu que as indústrias não comprariam o grão de áreas do bioma amazônico desmatadas a partir daquela data. A reedição da medida trouxe mais polêmica no complexo cenário da fronteira agrícola mato-grossense.

Resultados promissores


Agricultores de Sinop plantam milho na entressafra (maio a setembro). A maioria não mantém as reservas como manda a lei
Para o presidente da Abiove, Carlo Lovatelli, que alinhavou a primeira versão da moratória com representantes das ONGs ambientalistas, a medida foi necessária porque o mercado internacional estava pressionado pelas constantes denúncias de devastação da floresta amazônica para plantio de soja e isso já se refletia negativamente nos negócios das empresas. “A partir da moratória, tivemos mais paz”, diz Lovatelli.

Nesse período, afirma o presidente da Abiove, cresceu o reconhecimento, entre parte dos participantes do processo – produtores, indústria, comércio –, de que o desmatamento no bioma amazônico tem de ser evitado, particularmente o desmatamento ilegal. A questão está ligada ao tema mais amplo do aquecimento global e da conservação da Amazônia. O Brasil detém 19% das florestas intactas do planeta, porém, desde a década de 1970, cerca de 67 milhões de hectares, o equivalente a 17% da Amazônia original, já foram destruídos. E a perda das florestas é o principal motivo pelo qual o país está entre os cinco países que mais contribuem para o lançamento de gases na atmosfera responsáveis pelo aquecimento global.

A percepção de que a expansão do cultivo de soja na Amazônia pode estar colaborando com esse quadro afastou os compradores e contribuiu para o sucesso da moratória. “O monitoramento por satélite nos dois anos da medida mostrou áreas de desmate de cerca de 39 mil hectares em 193 polígonos, mas em nenhuma das propriedades tinha soja”, comemora Lovatelli.

A engenheira agrônoma Tatiana de Carvalho, militante do Greenpeace, afirma que ainda é cedo para comemorar. Ela acredita que há necessidade de estender a moratória por mais um ano porque as áreas, depois de desmatadas, ficam, no mínimo, dois sem poder ser cultivadas com soja. Este ano, portanto, com os bons preços do grão no mercado internacional, plantar o produto é uma tentação. “O avanço do desmatamento está fora de controle”, informa Tatiana. “Noventa por cento é ilegal, segundo dados da ONG Imazon. Apesar do engajamento do Ministério do Meio Ambiente, é preciso recursos para o recadastramento das propriedades. Enquanto essa situação perdurar, a moratória é necessária.”

Para tentar resolver o problema, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, propõe a expansão da moratória para todas as atividades produtivas da Amazônia – outros tipos de cultivo agrícola, madeira, pecuária – com total apoio do Greenpeace. “Enquanto todas as propriedades não estiverem cadastradas, não pode haver autorização para desmate”, afirma Tatiana.


O efeito sobre as fazendas

Quem seria diretamente afetado pela moratória – os fazendeiros, como Adelmo Zuanazzi –, alegam que não foram ouvidos. Catarinense de Concórdia, ele chegou em Sinop em 1975, aos 16 anos, para montar uma marcenaria com a mãe e os cinco irmãos. Em 1986, conseguiram comprar terras, muito baratas, para plantar. O Banco do Brasil financiava tudo, inclusive o desmate. À época, o Código Florestal permitia ao proprietário desmatar 50% das áreas de floresta e 80% do cerrado. Sem fiscalização eficiente e ignorando a necessidade de preservação, muita gente fez mais do que isso.


As terras que os irmãos Zuanazzi adquiriram já haviam sido, em parte, desmatadas. Quando a tecnologia da cultura de soja chegou à região, Zuanazzi foi um dos pioneiros no plantio. Levou alguns tombos no correr dos anos, mas no balanço geral conseguiu construir seu patrimônio. Para ele, a moratória de 2006 e a prorrogação de agora não alteram muito a situação da fazenda. “Não fosse a Medida Provisória 2.166 (que altera para 80% a área de reserva legal no bioma amazônico), aquele talhão de mata da entrada da fazenda talvez já estivesse incorporado ao sistema produtivo”, diz.

A mesma experiência de Antônio Galvan, presidente do Sindicato Rural de Sinop. Para ele, “a moratória foi desnecessária. Ninguém aqui veio reclamar que sua soja foi barrada na indústria”. Ele admite, no entanto, que o embate ambiental travado no Estado do Mato Grosso ajuda a criar uma consciência ecológica entre os produtores.

Hoje, segundo Galvan, os agricultores de Sinop não estão dispostos a abrir novas áreas – embora reivindiquem esse direito – seja pela imposição legal, seja porque os custos são proibitivos, seja porque perceberam que os recursos naturais são seu maior patrimônio. “O produtor já está consciente da necessidade de preservação, não é uma medida como a moratória que vai mudar alguma coisa”, afirma Glauber Silveira, presidente da Aprosoja-MT. “Punição leva à ilegalidade.”

Para Silveira, mais do que a moratória, é necessário ter ações que contribuam para a fiscalização, regularização fundiária e, a partir daí, formas de compensar o produtor que não desmatar, mesmo tendo o direito segundo a lei. O produtor rural Eurides Ceni, gaúcho de Erechim e mais conhecido em Sinop por ser pai do goleiro do São Paulo, Rogério Ceni, concorda. Para ele, o efeito prático da moratória foi reter os investimentos na região, desvalorizar as propriedades e mergulhar o norte mato-grossense num clima de incerteza



A safra de soja, ue ocorre de outubro a abril, está totalmente mecanizada, com um dos maiores rendimentos do mundo
Nesses novos tempos, os produtores mudaram seu vocabulário. Falam em utilização de pastagens degradadas para produzir grãos, utilização de técnicas conservacionistas como o plantio direto, melhoria da gestão e agregação de valor à agroindústria para se manter em atividade sem desmatar. O que significa que a discussão levantada pela moratória ao menos teve o efeito benéfico de difundir, entre os segmentos ligados ao agronegócio, o conceito de que é possível produzir mais com preservação ambiental. Tanto que, nos eventos mais importantes, relativos à agropecuária, a palavra sustentabilidade tornou-se obrigatória. Da parte das ONGs, cresce a compreensão de que fazer um jogo de pressão contra os produtores, como diz a engenheira agrônoma Tatiana de Carvalho, “não leva a nada”. Vale, nesse caso, a máxima de que “é conversando que as pessoas se entendem”.


“A gente não tinha consciência do que estava fazendo”

Lucas do Rio Verde, na região central do Mato Grosso, é o único município do estado que apresenta suas 670 propriedades referenciadas por satélite, tendo aprovado uma legislação para áreas de preservação permanente (APPs) mais restrita do que o Código Florestal. O município também tem seu passivo ambiental minuciosamente mapeado: são 2.783 hectares de APPs degradadas e cerca de 30 mil hectares de reservas legais a serem compensadas. Além disso, o município possui mais de 650 nascentes e 2 mil quilômetros de rios em seu território.

Essas informações só puderam ser obtidas por causa de uma união rara entre prefeitura, produtores rurais, empresas locais e a organização não-governamental TNC (The Nature Conservancy), responsável pelo projeto Lucas do Rio Verde Legal, que completou um ano em junho de 2008. “Tudo começou depois de uma viagem à Europa, quando percebi que os europeus estavam preocupados quanto à procedência dos produtos cultivados na região da Amazônia Legal”, conta o prefeito Marino Franz, técnico agrícola catarinense que se mudou para a região nos anos 80, quando Lucas ainda era um projeto de assentamento do Incra.

Crítico da atual política ambiental, Franz diz que “os órgãos públicos passam tempo demais atribuindo punições; é preciso começar a resolver os problemas”. Foi assim que ele entrou em contato com a TNC, Sadia, Syngenta e Fiagril para que fossem investidos R$ 500 mil no projeto de georreferenciamento das propriedades. Com os dados à mão, começou o trabalho. Os proprietários, como Darci Eichlt, receberam as imagens de satélite de suas terras com marcações sobre a área a ser reflorestada. Agora se espera que, com a assessoria técnica da TNC, cada produtor seja capaz de replantar a mata nativa degradada para assim obter a licença que garante serem as atividades realizadas nas propriedades dentro das normas de exploração florestal.

Ainda há muito a ser feito em boa parte das fazendas, mas, pelo menos, existe a intenção de se adequar à legislação. “Todos os dias eu recebo uns dez produtores, que me procuram para pedir explicações sobre o processo de regularização”, cita Giovanni Mallmann, especialista em conservação da TNC. Antônio Ferreira Bueno é um deles. Ele chegou em Lucas em 1982, com a primeira leva de imigrantes do Incra. “Tivemos de abrir a mata”, conta. “Na época, havia até um rumor de que, quem não abrisse, perderia o lote. A gente não tinha consciência do que estava fazendo.”

O representante da TNC, Henrique Santos, coloca o papel da entidade como um facilitador. “As leis atuais permitem uma gama de interpretações, dificultando a adaptação do produtor”, explica. “Nosso objetivo é servir como um suporte técnico aos projetos de recuperação do meio ambiente.”
Entre as propostas está a aquisição de uma grande área de mata nativa na região para compensar a perda de 30 mil hectares de reservas legais no local. A aquisição seria feita em regime de condomínio entre todos os produtores e as terras transformadas em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). (Flávio Bonanome) .

Revista Horizonte Geográfico

http://www.edhorizonte.com.br/revista/index.php?acao=exibirMateria&obj=Site&materia[id_materia]=314&edicao[id_edicao]=41

Nenhum comentário:

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos