segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

O Horror já não causa mais horror

edição 46 - Agosto 2007


Os últimos 70 anos trouxeram ao morticínio a planificação burocrática e a execução em escala industrial
por Luiz Marques

Biblioteca do Congresso, Washington

Ruínas remanescentes do bombardeio de Dresden, Alemanha, em fevereiro de 1945

A Segunda Guerra Mundial iniciou-se em 1936 com a guerra civil espanhola, que foi, de fato, uma guerra internacional. O uso pelos alemães de bombas incendiárias contra civis na Espanha prenuncia Dresden, Hiroshima e Nagasaki. Impressiona, contudo, a escalada vertiginosa da atrocidade, a se admitir que esta seja quantificável. Em Guernica, as estimativas vão de 200 a 1.700 mortos. Em fevereiro de 1945, Dresden, a “Florença do Elba”, recebe 7 mil toneladas de bombas que incendeiam a cidade e matam em 15 horas 35 mil civis. Segundo o “U.S. Strategic Bombing Survey” (1945), a aviação britânica despejou na Alemanha 1,35 milhão de toneladas de bombas, causando mais de 300 mil mortos e 780 mil feridos. Em 6 de agosto de 1945, em Hiroshima, a bomba de urânio 235, carinhosamente chamada pelos americanos de “Little Boy”, mata em horas 70 mil civis e continua matando outros 200 mil até o final do século XX. Três dias depois, “Fat Man”, de plutônio 239, é experimentada em Nagasaki, com um saldo imediato de 40 mil mortos e 120 mil até o final do século.

Ninguém desconhece essas cifras. Relembro-as apenas para observar como elas parecem módicas ao lado do que testemunhamos nos últimos 50 anos. Entre 1965 e 1973, os Estados Unidos despejaram no pequeno Vietnã 8 milhões de toneladas de bombas, três vezes mais que todos os bombardeios da Segunda Guerra Mundial e o equivalente a 300 toneladas por vietnamita, além de 72 milhões de litros de substâncias químicas letais, que ainda hoje afetam 650 mil pessoas, segundo um relatório de 2003. Além disso, o conhecimento mais circunstanciado dos campos nazistas e soviéticos, Suharto na Indonésia, Pol Pot no Camboja, os genocídios dos curdos e da ex-Iugoslávia, Ruanda, a Chechênia, o Sudão, o Chile, a Argentina, Israel e, de novo, os americanos no Laos (2 milhões de toneladas de bombas), Guatemala, Nicarágua, Afeganistão, Iraque e alhures (além da cumplicidade da CIA em alguns dos massacres acima referidos) tornaram o horror corriqueiro, e banal a idéia da ferocidade humana.

Obviamente o binômio guerra / atrocidade sempre existiu. Mas a “contribuição” dos últimos 70 anos (1937-2007) é específica, já que trouxe ao morticínio a planificação burocrática e a execução em escala industrial. Pode-se dizer, ademais, que nos últimos 20 anos emergem duas outras novidades: 1. a indiferença: os Horrores da guerra, de Goya, Guernica, de Picasso e Apocalypse now, de Coppola parecem definitivamente coisa do passado. Talvez por efeito de saturação e de superexposição à imagem (ao reality show), o Horror, em suma, não causa mais horror; 2. a percepção de que a atrocidade está ao alcance de todos. Não é mais prerrogativa de mentes monstruosas. As experiências de Philip Zimbardo (Stanford, 1971) e de Stanley Milgram (Yale, 1974) mostraram que pessoas “normais” tornam-se facilmente implacáveis torturadores. Dr. Jekyll não precisa mais de sua poção para se transformar em Mr. Hyde. Dormita em cada um de nós alguém que admitíamos existir somente no outro.

Luiz Marques é professor de história da arte medieval e moderna da Unicamp

Revista Historia Viva

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