quinta-feira, 26 de março de 2009

Terra devastada - O boom do petróleo no Canadá


Antes considerada cara e prejudicial ao ambiente, a areia betuminosa na província de Alberta virou aposta de bilhões de dólares.
Um dia em 1963, quando tinha 7 anos, Jim Boucher verificava com o avô uma série de armadilhas de caça alguns quilômetros ao sul da reserva indígena de Fort MacKay, à margem do rio Athabasca, no norte da província canadense de Alberta. Essa região faz parte da floresta boreal que se estende pelo Canadá, recobrindo mais de um terço do país. Em 1963, essa mata estava quase toda intocada. O governo ainda não construíra a estrada de cascalho até Fort MacKay, e só dava para chegar ali por meio de barcos ou, no inverno, em trenós puxados por cães. As tribos indígenas Chipewyan e Cree - Boucher é chipewyan - viviam isoladas do mundo. Para se alimentar, caçavam alces e bisões, pescavam percas e trutas salmonadas no rio Athabasca. Seus rendimentos vinham da venda de peles de castor e visom no entreposto de Fort MacKay, onde não havia gás, eletricidade, telefone ou água encanada. Todos esses serviços apenas seriam instalados nas décadas de 1970 e 1980.

Na memória de Boucher, porém, tudo começou a mudar naquele dia de 1963, na comprida trilha que seu avô usava para instalar as armadilhas, nas proximidades de um local conhecido como Mildred Lake. "São sendas que estão ali há milhares de anos", comentou Boucher no verão passado, sentado em seu espaçoso escritório com magnífica vista para Fort MacKay. Uma sacola com tacos de golfe está encostada num canto. No aparelho de som, toca baixinho uma peça de Mozart. "Naquele dia, topamos de repente com uma área desmatada. Era enorme. E ninguém tinha sido avisado. Nos anos 70, eles foram lá e derrubaram a cabana de meu avô - sem nenhum aviso ou discussão." Esse foi o primeiro contato de Boucher com o setor de exploração de areia betuminosa. Nos últimos anos, e com assombrosa rapidez, ele transformou por completo o nordeste da província de Alberta. Hoje Boucher está rodeado por essa atividade, na qual ele próprio acabou mergulhando de cabeça.

No local em que ficavam a sequência de armadilhas e a cabana, e também a floresta, agora há uma imensa mina a céu aberto. Ali a Syncrude, maior empresa petrolífera do Canadá, extrai do solo areia misturada com betume, com o uso de escavadeiras elétricas do tamanho de prédios de cinco andares, e em seguida separa o betume da areia com água quente e, às vezes, soda cáustica. Ao lado da mina, labaredas tremulam nas chaminés de uma "pré-refinaria", que faz o craqueamento do betume viscoso e o converte no chamado Syncrude Sweet Blend, um óleo cru sintético que depois é bombeado por oleodutos até refinarias situadas em Edmonton, a capital da província, Ontário e Estados Unidos. O lago Mildred foi suplantado por seu vizinho, a Bacia de Assentamento de Mildred Lake, um reservatório com 10 quilômetros quadrados que recebe os dejetos tóxicos de mineração. O dique de areia que o contém é, em termos de volume, um dos maiores em todo o mundo.

A Syncrude não é a única empresa a atuar na região. Num raio de 35 quilômetros em torno do escritório de Boucher, contam-se seis minas que produzem quase 750 mil barris de óleo cru sintético por dia. Outras estão sendo planejadas. Ali onde a camada de betume é profunda demais para ser explorada em lavras a céu aberto, as reservas são aquecidas no próprio local pela injeção de imensas quantidades de vapor d'água, que faz o betume liquefeito subir à superfície - é o chamado método in situ. Na última década, as petroleiras investiram na região mais de 50 bilhões de dólares, cerca de 20 bilhões apenas em 2008. Antes do colapso no preço do petróleo no fim de 2008, estavam previstos investimentos adicionais de mais de 100 bilhões de dólares nos próximos anos, com o objetivo de dobrar a produção de óleo cru até 2015 - a maior parte para ser transportada em novos oleodutos aos Estados Unidos. A crise econômica levou ao adiamento de muitos desses projetos de expansão, mas não restringiu as perspectivas de longo prazo. Em meados de novembro passado, a Agência Internacional de Energia divulgou um relatório no qual estimava que o preço do barril de petróleo será de 120 dólares em 2030 - valor que justificaria com folga o esforço necessário de extraí-lo da areia betuminosa.


Não há ouytro lugar do planeta com tanta movimentação de terra quanto na bacia do rio Athabasca. Nas lavras a céu aberto, para obter um único barril de petróleo, as empresas primeiro desmatam o terreno, depois removem, em média, 2 toneladas de turfa e terra que recobrem a camada de areia e em seguida retiram 2 toneladas da própria areia etuminosa. A seguir, é preciso aquecer vários barris de água para separar e "pré-refinar" o betume. Mais tarde, a água contaminada é lançada em imensos tanques, como aquele perto de Mildred Lake. Tais reservatórios cobrem uma área de 130 quilômetros quadrados. Em abril do ano passado, 500 patos que migravam confundiram uma dessas lagoas - em nova mina da Syncrude ao norte de Fort MacKay - com um refúgio hospitaleiro, pousaram na superfície viscosa e morreram. O incidente atraiu a atenção internacional - o Greenpeace invadiu uma instalação da Syncrude.

Os Estados Unidos importam mais petróleo do Canadá que de qualquer outro país: quase um quinto de todo seu suprimento externo, e cerca de metade desse petróleo canadense, é extraído da areia betuminosa. Tudo o que contribui para reduzir a dependência ao petróleo do Oriente Médio, diriam muitos americanos, é bem-vindo. No entanto, o processo de escavar e cozinhar areia betuminosa para obter um barril de óleo cru requer a emissão de até três vezes mais dióxido de carbono que o bombeamento de um barril num poço na Arábia Saudita. A areia betuminosa ainda contribui com parcela ínfima das emissões mundiais de CO2 - menos de um décimo de 1% -, mas, para muitos ambientalistas, esse é apenas o primeiro passo em um caminho que poderia levar ao aproveitamento de outras fontes de petróleo ainda mais poluentes, como o xisto betuminoso e o carvão mineral. "A exploração de areia betuminosa assinala um ponto decisivo para a América do Norte e o mundo", comenta Simon Dyer, do Pembina Institute, um grupo ambientalista canadense de posições moderadas e respeitadas. "Vamos começar a buscar fontes alternativas de energia ou nos aprofundar no uso das reservas menos usuais de petróleo? O fato de haver disposição em mover 4 toneladas de terreno para obter um único barril mostra que, na verdade, o mundo está esgotando outras fontes mais acessíveis."

E esse mundo sedento por petróleo chegou com toda a força a Fort MacKay. No entanto, a perspectiva de Jim Boucher, de um elegante prédio recém-construído na entrada do pequeno e assediado vilarejo, contém mais matizes de cinza do que se poderia esperar. "A escolha que fizemos é bem difícil", disse quando o visitei em meados do ano passado. Por muito tempo, as tribos indígenas da região tentaram em vão opor-se à atividade petrolífera. Mas agora, segundo Boucher, "estamos procurando ampliar a capacidade da comunidade em aproveitar essa chance". Boucher não é apenas o chefe da comunidade indígena de Fort MacKay mas também está à frente do Fort MacKay Group of Companies, uma empresa montada pela comunidade para fornecer serviços ao setor petroleiro, e que arrecadou 85 milhões de dólares em 2007. O desemprego é inferior a 5% na cidade, que conta com posto de saúde, centro recreativo para jovens e uma centena de novas residências de três quartos, alugadas por preços bem abaixo do mercado. E a comunidade indígena até mesmo está considerando a chance de explorar sua própria mina: afinal, ela é dona de 3,3 mil hectares de terras ricas em areia betuminosa no outro lado do rio, colada na lavra da Syncrude onde morreram os cerca de 500 patos no lago contaminado.

Enquanto conta tudo isso, Boucher mordisca pedaços de uma truta que está sobre a mesa de reuniões, ao lado de janelas com uma vista panorâmica do rio - apesar disso, Boucher não sabe de onde fora pescada. "Posso garantir uma coisa", diz ele. "Do Athabasca é que não foi."

Sem o rio não existiria exploração de areia betuminosa. Ao longo de dezenas de milhões de anos, suas águas levaram embora bilhões de metros cúbicos de sedimentos que recobriam a camada de betume, colocando-o assim ao alcance das escavadeiras - e, em alguns locais, na própria superfície. Nos dias quentes de verão, ao longo do Athabasca, o betume escorre das margens e confere um brilho oleoso a suas águas. Os primeiros mercadores de pele relataram tal fenômeno e também que os nativos usavam a areia para calafetar as canoas. Sob temperatura normal, o betume é viscoso, mas abaixo de 10ºC fica tão duro quanto um disco de hóquei, como sempre dizem os canadenses. Em algum ponto do passado, contudo, era igual ao petróleo leve, o mesmo líquido que, há quase um século, as companhias petrolíferas vêm bombeando de reservas profundas no sul da província de Alberta. Dezenas de milhões de anos atrás, de acordo com geólogos, grande volume desse petróleo foi empurrado na direção nordeste, talvez devido a um soerguimento das Montanhas Rochosas. Durante esse processo ele acabou subindo à superfície, ao longo de camadas inclinadas de sedimentos, até que, no fim, alcançou profundidades rasas e frias o bastante para proliferação de bactérias. E foram elas que transformaram o petróleo em betume.

O governo da província de Alberta avalia que os três principais depósitos de areia betuminosa em seu território, dos quais o do Athabasca é o maior, contêm 173 bilhões de barris de petróleo cujo aproveitamento seria economicamente viável hoje. "O tamanho disso, no contexto mundial, é assombroso", comenta Rick George, principal executivo da Suncor, empresa que, em 1967, abriu a primeira mina na região do rio Athabasca. Em 2003, quando o Oil & Gas Journal acrescentou as areias betuminosas de Alberta a sua lista de reservas comprovadas, isso alçou o Canadá ao segundo lugar, atrás apenas da Arábia Saudita, entre todos os países produtores de petróleo. As reservas comprovadas de areia betuminosa são oito vezes maiores que todas as reservas americanas. "E as estimativas só tendem a subir", diz George. Segundo dados da Comissão de Recursos e Conservação de Energia da província de Alberta, mais de 300 bilhões de barris de petróleo podem ser retirados das areias betuminosas - com isso, a capacidade total das reservas chega a 1,7 trilhão de barris.

A extração é um processo simples, mas nada fácil. As escavadeiras elétricas possuem dentes de aço reforçado que pesam 1 tonelada e, como esses dentes se enterram na escura e abrasiva areia sete dias por semana, 365 dias por ano, eles se desgastam a cada um ou dois dias. Por isso, é preciso um soldador que faça um trabalho odontológico nesses dinossauros, recuperando suas coroas. Os gigantescos caminhões basculantes que circulam pela mina, transportando cargas de 400 toneladas das escavadeiras até um triturador de rochas, queimam 190 litros de diesel por hora. E é preciso usar uma empilhadeira na hora de trocar seus pneus, que não duram mais que seis meses. A cada dia, no vale do Athabasca, 1 milhão de toneladas de areia saem desses trituradores e são misturadas a mais de 200 mil toneladas de água que precisam ser aquecidas, normalmente a 80ºC, para a separação do betume viscoso. Nas "pré-refinarias", o betume volta a ser aquecido, por volta de 480ºC, e submetido a uma pressão superior a 100 atmosferas - só desse modo é possível romper as moléculas complexas e subtrair o carbono ou devolver o hidrogênio consumido pelas bactérias eras atrás. É assim que se conseguem os hidrocarbonetos leves que necessitamos para encher o tanque de nossos carros. O processo requer assombrosa quantidade de energia. Na extração feita no próprio local em que está o betume - o chamado método in situ -, que é a única maneira de alcançar 80% daqueles 173 bilhões de barris, a energia empregada é o dobro da utilizada na lavra a céu aberto, devido ao uso de tanto vapor d'água.

A maior parte da energia para aquecer a água ou produzir o vapor vem da queima de gás natural, que também fornece hidrogênio para o processamento inicial. Por ser rico em hidrogênio e quase desprovido de impurezas, o gás natural é o combustível fóssil menos sujo, que libera menor quantidade de carbono e outros poluentes na atmosfera. Segundo os críticos, na exploração de areia betuminosa há desperdício do combustível limpo para se produzir o mais poluente - seria o equivalente a transformar ouro em chumbo. Tal argumentação faz sentido em termos ambientais, "mas não em termos econômicos", diz o físico David Keith, da Universidade de Calgary. Cada barril de óleo cru sintético contém cinco vezes mais energia que o gás natural usado em sua produção, além de estar em estado líquido, bem mais valioso. "Essa história de transformar ouro em chumbo é uma bobagem. Em nossa sociedade, ouro são os combustíveis líquidos que podem ser bombeados", avalia.

Boa parte das emissões de carbono desses combustíveis vem do escapamento dos veículos que os queimam. De acordo com o critério "do poço ao tanque dos veículos", a areia betuminosa é apenas de 15% a 40% mais poluente que o petróleo convencional. Mas a conta mais alta de carbono continua sendo uma desvantagem, tanto para o ambiente como para a imagem pública. Em junho do ano passado, o governador de Alberta, Ed Stelmach, anunciou que, para lidar com as emissões adicionais, a província pretende gastar mais de 1,5 bilhão de dólares no desenvolvimento de tecnologias de captura de dióxido de carbono e seu armazenamento no subsolo - uma estratégia que vem sendo considerada como uma solução para conter as mudanças climáticas. Até 2020, de acordo com o plano, as emissões de carbono da província vão ser estabilizadas e, até 2050, reduzidas em 15% em relação aos níveis de 2005. Esse é um corte bem menor que o recomendado pelos cientistas. No entanto, ainda é maior que a redução proposta pelo governo dos Estados Unidos, por exemplo.

Uma medida que Stelmach se recusa a tomar é "pisar no freio" da explosiva atividade de aproveitamento da areia betuminosa. O surto é uma bonança para a economia da província e do país. Os habitantes sabem o que significa esse ciclo de expansão e retração econômicas. No último colapso nos preços do barril de petróleo, na década de 80, a província levou dez anos para voltar a crescer. As areias betuminosas cobrem uma área equivalente à do estado do Amapá, e o governo provincial já negociou concessões para a metade desse território, incluindo todos os 3 512 quilômetros quadrados que podem ser explorados com lavras. E até hoje jamais interferiu, por motivos ambientais ou quaisquer outros, no desenvolvimento das concessões.

A bordo de um helicóptero, é evidente o impacto no vale do Athabasca. Logo após decolar em Fort McMurray, tomando o rumo norte e seguindo a margem leste do rio, vê-se a mina Millennium, da Suncor. É um dia ventoso, e as colunas de poeira que se elevam das rodas dos caminhões se juntam em uma única nuvem que bloqueia a visão de parte da mina. Mais ao norte, além de um pequeno trecho de mata intocada, uma nuvem semelhante ergue-se da lavra seguinte, a mina Steepbank, também da Suncor. Mais além há duas outras minas e, atravessando o rio, mais duas. Ao longe, o vapor, a fumaça e as labaredas de gás das chaminés das instalações da Syncrude e da Suncor - lembrando os "sombrios engenhos satânicos" do poeta inglês William Blake - são ainda assim uma visão fascinante.

No entanto, vistas do ar, as lavras logo ficam para trás. Voando baixo sobre o rio, e assustando um filhote de alce que cruza um afluente estreito, o biólogo Preston McEachern e eu seguimos para noroeste na direção dos montes Birch, percorrendo vasta extensão de mata intacta. A floresta boreal canadense estende-se por 5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 75% permanecem inexplorados. Até hoje, as lavras de areia betuminosa já transformaram 420 quilômetros quadrados - um centésimo de 1% da área total - em pó, terra e lagoas de dejetos. O aumento da exploração in situ pode afetar uma área bem maior. Ambientalistas e biólogos preocupam-se com a possibilidade de a fragmentação crescente da mata, promovida por madeireiras e mineradoras, colocar em risco a sobrevivência de renas e outros animais. "A floresta boreal, tal como a conhecemos, pode desaparecer em uma geração se não houver mudanças importantes nas políticas atuais", diz Steve Kallick, diretor da organização Pew Boreal Campaign.

Segundo McEachern, que trabalha no Alberta Environment, órgão responsável pela política ambiental da província, a grande prioridade é resolver o problema dos depósitos de resíduos. As minas lançam os dejetos nas lagoas, explica ele, porque não têm permissão para jogar no Athabasca e também porque precisam reaproveitar a água. Depois que a mistura de resíduos espessa e pardacenta é lançada nos canos de descarga, a areia logo se separa, formando o dique de contenção do reservatório. O betume residual vai para a superfície do líquido. Todavia, as partículas menores de argila e sedimentos levam vários anos para se precipitar e, quando isso ocorre, formam uma gosma com consistência de iogurte. Esses resíduos finais estão contaminados por substâncias tóxicas, como o ácido naftênico e os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAP), e levariam séculos para serem neutralizados pela natureza. De acordo com os termos de suas concessões, as empresas têm a obrigação de recuperar esses depósitos de resíduos, mas já desrespeitaram vários dos prazos para fazer isso, e ainda não recuperaram nenhum reservatório.

No mais antigo e conhecido deles, o reservatório Pond 1, da Suncor, os resíduos são contidos por um dique de areia compactada que se eleva 100 metros acima da superfície do vale e está guarnecido de pinheiros. Já ocorreram vazamentos ali e, de acordo com simulação feita por hidrogeólogos na Universidade de Waterloo, estima-se que 2 litros de água contaminada podem estar chegando ao rio a cada segundo.

O governo de Alberta assegura que o rio não está contaminado - que tudo o que se encontra nele ou em seu delta, no lago Athabasca, é originário dos vazamentos naturais de betume. O rio passa através das areias betuminosas a jusante das lavras e, enquanto o helicóptero zune poucos metros acima dele, McEachern aponta vários locais em que os barrancos estão enegrecidos e a água, oleosa. "Há um aumento de vários metais à medida que nos movemos para a foz", diz. "E isso é natural - é o curso normal do processo geológico. Já se constatou a presença de mercúrio nos peixes do lago Athabasca - desde a década de 90 estamos monitorando isso. Há HAP nos sedimentos do delta. E isso ocorre porque o rio vai erodindo as areias betuminosas."

O ceticismo, porém, é a tônica dos cientistas independentes - para não mencionar quem vive a jusante das lavras na comunidade indígena de Fort Chipewyan, às margens do lago Athabasca. "É inconcebível que se movimente toda essa quantidade de betume e não haja nenhum efeito", comenta o toxicologista Peter Hodson, especializado em populações de peixes. De fato, um estudo feito pela Environment Canada, o órgão ambiental do governo canadense, comprovou os efeitos sobre os peixes do rio Steepbank, que passa ao lado de uma lavra da Suncor e desemboca no Athabasca. Perto da mina, os animais coletados em 1999 e 2000, por George Tetreault, apresentavam um nível de atividade cinco vezes maior de uma enzima no fígado responsável pela digestão de toxinas - medida empregada para constatar a presença de poluentes -, em comparação com os peixes capturados próximo a um vazamento natural de betume no Steepbank.

Em 2006, John O'Connor, clínico-geral que atende num posto de saúde em Fort Chip, contou a uma rádio que, nos últimos anos, vira cinco casos de colangiocarcinoma - câncer das vias biliares encontrado na proporção de um caso a cada 100 mil. Em torno de mil pessoas moram em Fort Chip, o que torna improvável até mesmo um único caso. O'Connor não conseguiu atrair o interesse das autoridades médicas no surto cancerígeno, mas sua entrevista à rádio teve ampla repercussão. Dois dos cinco casos de O'Connor foram confirmados por biópsias; os outros três pacientes haviam apresentado os mesmos sintomas, mas faleceram antes que se fizessem os exames. (Em uma tomografia, o colangiocarcinoma pode ser confundido com outros tipos de câncer, como o do fígado e o do pâncreas.)

Numa noite de inverno, quando Jim Boucher ainda era menino, na mesma época em que teve início a exploração das areias betuminosas, ele voltava sozinho de trenó para a cabana de seus avós após ter ido a Fort MacKay. Era um percurso de 30 quilômetros, e a temperatura estava a -20ºC. À luz da Lua, Boucher topou com um bando de lagópodes, uma espécie de faisão branco, na neve. Ele abateu umas 50 dessas aves, amontoou-as no trenó e levou-as para casa. Quatro décadas depois, sentado em sua cadeira de presidente, vestindo calça de algodão branco e camisa polo também branca, ele lembra do orgulho que, naquela noite, viu estampado no rosto da avó. "Aquele era outro mundo espiritual", diz Boucher. "Para mim, aquele mundo existiria para sempre." Agora ele conta essa história toda vez que lhe perguntam sobre o futuro das areias betuminosas e o papel de seu povo nesse futuro.

Uma pesquisa realizada pelo Pembina Institute em 2007 revelou que 71% dos habitantes de Alberta eram favoráveis a uma ideia que o governo da província sempre rejeitou a priori: a imposição de uma moratória sobre os novos projetos de exploração até que sejam apaziguadas as preocupações com o ambiente. "Acredito que, quando o governo tenta interferir no mercado, não acontece nada de bom", afirmou o governador Stelmach diante de um grupo de executivos do setor petroleiro naquele mesmo ano. "O sistema de livre mercado resolverá isso."

Mas o mercado não leva em conta os efeitos das lavras no rio, na floresta ou nas pessoas que ali vivem, a menos que seja forçado a isso. Tampouco, se nada lhe for cobrado, vai levar em conta os efeitos da exploração no clima. Jim Boucher colaborou com as companhias de petróleo a fim de proporcionar nova economia a seu povo, que substituísse aquela que haviam perdido, que garantisse o futuro das crianças que nunca mais iriam caçar aves sob o luar. Ele tem consciência do preço que teve de ser pago. "É uma luta para equilibrar as necessidades de hoje e as de amanhã, quando se pensa no ambiente em que vamos viver", diz Boucher. Na região norte da província de Alberta, a questão de como alcançar tal equilíbrio foi colocada nas mãos do mercado, e uma das respostas dele foi deixar de lado o futuro. O amanhã não é de sua conta.

No entanto, vistas do ar, as lavras logo ficam para trás. Voando baixo sobre o rio, e assustando um filhote de alce que cruza um afluente estreito, o biólogo Preston McEachern e eu seguimos para noroeste na direção dos montes Birch, percorrendo vasta extensão de mata intacta. A floresta boreal canadense estende-se por 5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 75% permanecem inexplorados. Até hoje, as lavras de areia betuminosa já transformaram 420 quilômetros quadrados - um centésimo de 1% da área total - em pó, terra e lagoas de dejetos. O aumento da exploração in situ pode afetar uma área bem maior. Ambientalistas e biólogos preocupam-se com a possibilidade de a fragmentação crescente da mata, promovida por madeireiras e mineradoras, colocar em risco a sobrevivência de renas e outros animais. "A floresta boreal, tal como a conhecemos, pode desaparecer em uma geração se não houver mudanças importantes nas políticas atuais", diz Steve Kallick, diretor da organização Pew Boreal Campaign.

Segundo McEachern, que trabalha no Alberta Environment, órgão responsável pela política ambiental da província, a grande prioridade é resolver o problema dos depósitos de resíduos. As minas lançam os dejetos nas lagoas, explica ele, porque não têm permissão para jogar no Athabasca e também porque precisam reaproveitar a água. Depois que a mistura de resíduos espessa e pardacenta é lançada nos canos de descarga, a areia logo se separa, formando o dique de contenção do reservatório. O betume residual vai para a superfície do líquido. Todavia, as partículas menores de argila e sedimentos levam vários anos para se precipitar e, quando isso ocorre, formam uma gosma com consistência de iogurte. Esses resíduos finais estão contaminados por substâncias tóxicas, como o ácido naftênico e os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAP), e levariam séculos para serem neutralizados pela natureza. De acordo com os termos de suas concessões, as empresas têm a obrigação de recuperar esses depósitos de resíduos, mas já desrespeitaram vários dos prazos para fazer isso, e ainda não recuperaram nenhum reservatório.

No mais antigo e conhecido deles, o reservatório Pond 1, da Suncor, os resíduos são contidos por um dique de areia compactada que se eleva 100 metros acima da superfície do vale e está guarnecido de pinheiros. Já ocorreram vazamentos ali e, de acordo com simulação feita por hidrogeólogos na Universidade de Waterloo, estima-se que 2 litros de água contaminada podem estar chegando ao rio a cada segundo.

O governo de Alberta assegura que o rio não está contaminado - que tudo o que se encontra nele ou em seu delta, no lago Athabasca, é originário dos vazamentos naturais de betume. O rio passa através das areias betuminosas a jusante das lavras e, enquanto o helicóptero zune poucos metros acima dele, McEachern aponta vários locais em que os barrancos estão enegrecidos e a água, oleosa. "Há um aumento de vários metais à medida que nos movemos para a foz", diz. "E isso é natural - é o curso normal do processo geológico. Já se constatou a presença de mercúrio nos peixes do lago Athabasca - desde a década de 90 estamos monitorando isso. Há HAP nos sedimentos do delta. E isso ocorre porque o rio vai erodindo as areias betuminosas."

O ceticismo, porém, é a tônica dos cientistas independentes - para não mencionar quem vive a jusante das lavras na comunidade indígena de Fort Chipewyan, às margens do lago Athabasca. "É inconcebível que se movimente toda essa quantidade de betume e não haja nenhum efeito", comenta o toxicologista Peter Hodson, especializado em populações de peixes. De fato, um estudo feito pela Environment Canada, o órgão ambiental do governo canadense, comprovou os efeitos sobre os peixes do rio Steepbank, que passa ao lado de uma lavra da Suncor e desemboca no Athabasca. Perto da mina, os animais coletados em 1999 e 2000, por George Tetreault, apresentavam um nível de atividade cinco vezes maior de uma enzima no fígado responsável pela digestão de toxinas - medida empregada para constatar a presença de poluentes -, em comparação com os peixes capturados próximo a um vazamento natural de betume no Steepbank.

Em 2006, John O'Connor, clínico-geral que atende num posto de saúde em Fort Chip, contou a uma rádio que, nos últimos anos, vira cinco casos de colangiocarcinoma - câncer das vias biliares encontrado na proporção de um caso a cada 100 mil. Em torno de mil pessoas moram em Fort Chip, o que torna improvável até mesmo um único caso. O'Connor não conseguiu atrair o interesse das autoridades médicas no surto cancerígeno, mas sua entrevista à rádio teve ampla repercussão. Dois dos cinco casos de O'Connor foram confirmados por biópsias; os outros três pacientes haviam apresentado os mesmos sintomas, mas faleceram antes que se fizessem os exames. (Em uma tomografia, o colangiocarcinoma pode ser confundido com outros tipos de câncer, como o do fígado e o do pâncreas.)

Numa noite de inverno, quando Jim Boucher ainda era menino, na mesma época em que teve início a exploração das areias betuminosas, ele voltava sozinho de trenó para a cabana de seus avós após ter ido a Fort MacKay. Era um percurso de 30 quilômetros, e a temperatura estava a -20ºC. À luz da Lua, Boucher topou com um bando de lagópodes, uma espécie de faisão branco, na neve. Ele abateu umas 50 dessas aves, amontoou-as no trenó e levou-as para casa. Quatro décadas depois, sentado em sua cadeira de presidente, vestindo calça de algodão branco e camisa polo também branca, ele lembra do orgulho que, naquela noite, viu estampado no rosto da avó. "Aquele era outro mundo espiritual", diz Boucher. "Para mim, aquele mundo existiria para sempre." Agora ele conta essa história toda vez que lhe perguntam sobre o futuro das areias betuminosas e o papel de seu povo nesse futuro.

Uma pesquisa realizada pelo Pembina Institute em 2007 revelou que 71% dos habitantes de Alberta eram favoráveis a uma ideia que o governo da província sempre rejeitou a priori: a imposição de uma moratória sobre os novos projetos de exploração até que sejam apaziguadas as preocupações com o ambiente. "Acredito que, quando o governo tenta interferir no mercado, não acontece nada de bom", afirmou o governador Stelmach diante de um grupo de executivos do setor petroleiro naquele mesmo ano. "O sistema de livre mercado resolverá isso."

Mas o mercado não leva em conta os efeitos das lavras no rio, na floresta ou nas pessoas que ali vivem, a menos que seja forçado a isso. Tampouco, se nada lhe for cobrado, vai levar em conta os efeitos da exploração no clima. Jim Boucher colaborou com as companhias de petróleo a fim de proporcionar nova economia a seu povo, que substituísse aquela que haviam perdido, que garantisse o futuro das crianças que nunca mais iriam caçar aves sob o luar. Ele tem consciência do preço que teve de ser pago. "É uma luta para equilibrar as necessidades de hoje e as de amanhã, quando se pensa no ambiente em que vamos viver", diz Boucher. Na região norte da província de Alberta, a questão de como alcançar tal equilíbrio foi colocada nas mãos do mercado, e uma das respostas dele foi deixar de lado o futuro. O amanhã não é de sua conta.


Por: Robert Kunzig Foto: Peter Essick
Publicado em 03/2009
National Geographic Edição 108

5 comentários:

Anônimo disse...

Oi Eduardo...!
Gostei muito de como escreveu este seu artigo.
Poi é..., se o progresso acontecesse concomitantemente com medidas eficazes, para evitar danos ambientais, seria o ideal...
Mas o homem não é perfeito e sequer pensa em melhorar, buscando a perfeição (já que é a meta de um cristão, até a sua morte).
A ganância do homem o faz meter os pés pela cabeça. Quando ele possui o dom para negócios, na maioria das vezes, não quer saber de ajudar o próximo, mas apenas em ganhar mais dinheiro; doações apenas se for compensatória no abatimento do IR...rs
(segue)

Anônimo disse...

Agora, por exemplo, no caso do Brasil, ele possui a maior bacia hidrográfica do mundo, descobriu mais petróleo no nordeste do país e o tal pré-sal, entretanto, não possui capital para competir com as grandes potências do mercado exterior. Depende da Venezuela, da Bolívia e faz às vontades dos EUA...
Mesmo com todos os seus recursos naturais, o Brasil está matando a floresta amazônica e esgotando essas outras riquezas naturais. Ou seja, é um país rico em minérios e está se consumindo, o que é pior, em prol de outros países.
(segue)

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Daqui a alguns anos, o Brasil estará pior do que essa crise, estará vendido por inteiro, sem um "tostão" para "arrumar", recuperar os seus recursos naturais. Adeus sustentabilidade de consumo...
No caso do Brasil, ele se vende para ter $, pois não tem nada para aplicar em seu próprio proveito. O pouco que tem é desviado para o paraíso fiscal...
Enfim..., no caso do Brasil..., ele é ganancioso sem verba para conseguir conquistar. É cego, engana bem.
Bom, existe o outro lado da moeda..., afinal política é tendenciosa naturalmente....
Beijossss,
Ana Lúcia.

Cleisson disse...

Oi Eduardo
Primeiramente parabens pelo blog ,eu o acompanho e sempre encontro muita coisa interessante.
Recebe um selo e quero compartilha-lo com os blogs que mais me identifico na internet e o seu é claro está entre eles.
Parabéns!!
http://planetadobem.blogspot.com/2009/03/seu-blog-e-fabuloso.html

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